Fazendo amigos e enfrentando alienígenas
Para fazer uma continuação com a mesma leveza e doçura de “Como Fazer Amigos e Enfrentar Fantasmas”, a dupla de amigos Gustavo Borges e Eric Peleias mais uma vez se debruçou sobre suas próprias infâncias, resultando em uma obra que passa longe da nostalgia gratuita
Por THIAGO CARDIM
“Saudades de algo, de um estado, de uma forma de existência que se deixou de ter; desejo de voltar ao passado”. Esta definição da palavra “nostalgia” nem parece, assim, numa primeira leitura, algo preocupante – mas quando a gente lembra do nível de toxicidade dos comportamentos de alguns fãs de cultura pop supostamente em nome da “nostalgia”, confesso que me dá uma dorzinha no coração e um nó nas tripas sequer ouvir qualquer menção similar…
Justamente por isso, aliás, não deixa de ser prazeroso quando pinta um projeto que faz uso da nostalgia não como uma âncora, a nostalgia pela nostalgia, uma maratona de referências que estão lá apenas para mexer com os saudosistas e mal conseguem cobrir um verdadeiro buraco narrativo. É o caso de Como Fazer Amigos e Enfrentar Alienígenas, que a dupla Gustavo Borges e Eric Peleias conseguiu financiar via Catarse – atingindo 100% da meta em apenas dois dias. Nostalgia à serviço da história e dos personagens – e não o contrário.
“O Gustavo e eu somos autores de quadrinhos e designers por formação”, explica Eric, num papo exclusivo com o Gibizilla. “Começamos a publicar mais ou mesmo na mesma época e fazemos nossos trabalhos individualmente e com outros parceiros”. Mas eles já eram amigos, em especial depois de uma viagem de trabalho ao Canadá, quando decidiram ENFIM fazer um quadrinho juntos. Surgiria Até o Fim, em 2017.
Em 2019, a dupla queria muito contar mais alguma história junta, porém dessa vez com tom de aventura, leve e repleta de alegria, sem perder a sinceridade da vida. Logo eles começaram a relembrar das suas próprias infâncias e os fantasmas que enfrentaram. Dessa conversa, surgiram os materiais iniciais que se transformaram na história da Olívia e do Leo, narrador de uma trama na qual o mundo real é tão importante quanto o sobrenatural.
“Discutimos algumas ideias até chegar ao conceito do que viria a ser Como Fazer Amigos e Enfrentar Fantasmas, que saiu naquele mesmo ano e acabou vencendo alguns prêmios”, explica o quadrinista. A história é sobre esses meninos na década de 1990 que enfrentam fenômenos sobrenaturais enquanto lidam com problemas pessoais. E sim, o aspecto nostálgico, que serve para ambientar a história, está JUSTAMENTE aí. Tanto no original quanto na continuação.
O coautor reforça que, sim, Como Fazer Amigos e Enfrentar Alienígenas tem coisas das suas infâncias, mas já está cada vez mais difícil descobrir o que veio de onde, especialmente no segundo livro. Por exemplo: tem um personagem novo, o Saturno, que começou inspirado na relação que Eric teve com um cão e aí entrou a experiência do Gustavo com os cães dele. “Acaba que agora é basicamente uma coisa nova e própria da história. É bem divertido ver o que surge e pensar no que motivou a ideia inicial”.
Um novo desafio, mas ainda fazendo amigos
Eric lembra que, claro, o mundo todo mudou muito não só dos anos 1990 pra cá, mas entre um livro e outro. “Nós procuramos seguir a essência da história e o espírito do que tínhamos para contar. Agora estamos mais íntimos dos personagens porque já convivemos mais com eles. Parecem mais tridimensionais, como velhos amigos. O Gustavo costuma brincar que já vai ficar com saudades deles e eu digo que consigo imaginar como seria a vida desses meninos até a fase adulta, por exemplo”, brinca. “Neste livro, mesmo, já dá pra ver eles um pouquinho mais maduros, como se o leitor estivesse crescendo junto com Leo e Olívia”.
O Arthur é o novo membro do grupo, um garoto que adora dinossauros e rochas. “Ele tem um comportamento muito peculiar e fundamental para a trama. Falar muito mais sobre ele pode estragar as surpresas que preparamos para os leitores, mas podemos adiantar que o arco dele na história é uma das nossas partes favoritas”.
Na verdade, as sementes deste segundo livro surgiram enquanto eles faziam o primeiro livro – os quadrinistas viram que tinham mais para contar com o tema e personagens que encontraram. “A vontade de continuar convivendo com eles e ver o que mais eles fariam era bem grande e deixamos anotado isso para um futuro em que tivéssemos agenda. Como a recepção dos leitores e da crítica foi positiva, nos animamos em começar uma continuação no ano de 2020, antes do que imaginávamos”.
Mas como a pandemia mexeu com todo mundo, em especial pela questão do isolamento, originalmente eles pensaram em fazer APENAS uma webcomic juntos, algo que as pessoas pudessem acompanhar de graça em suas casas, em segurança. “O plano era fazer um livro completo dividido em tiras e um dia, quem sabe, imprimir. Desde que anunciamos a ideia, já vieram pedidos (até alguns exigiram) uma versão impressa, o que nos motivou a fazer uma campanha de financiamento enquanto seguimos postando as páginas em nossos perfis do Instagram”.
Eric ainda reafirma que, sim, ambos estão muito felizes em poder contar essa história para as pessoas e ainda saber que muitos querem ter em suas casas uma versão FÍSICA para ler e reler. “Afetou um pouquinho nosso trabalho, já que a responsabilidade aumenta. Agora tem gente esperando, temos que concluir tudo. Também decidimos que vamos continuar postando tudo, mas programamos para que os apoiadores vão receber seus livros bem antes da conclusão das postagens”.
E em meio a este processo bem colaborativo, as ideias podem e costumam vir de todos os lados. Um deles cria, o outro melhora, o primeiro passa a limpo e por aí vai. “Tanto que não creditamos texto ou arte, já que ambos participam de tudo em algum momento”.
Nós não estamos sozinhos
A frase, que os dois criadores entendem que permeia a obra, pode causar um tanto de confusão – já que, em uma publicação com “alienígenas” no título, pode ser que venha aí um pouco da energia dos teóricos de conspirações. Mas, em pleno 2021, já deu de dar ouvidos pra esta galera aí e eles esperam que essa mensagem vá um pouco além.
“Essa é uma história sobre os alienígenas e alienados, reais e fantásticos”, dizem eles, no material oficial de divulgação. “Esperamos muito que esse convite à nostalgia dos anos 1990, e aquela infância cheia de aventura sobrenatural, te traga tanta felicidade quanto trás para nós. Afinal, é sobre isso. Felicidade e pessoas. É para isso que contamos histórias”.
Mas essa história acaba aqui? Ou teremos novos desdobramentos em breve? Eric dá a letra. “Ainda é muito cedo para falarmos em mais continuações, não sabemos nem se as pessoas vão gostar do que preparamos, mas seria lindo poder conviver um pouquinho mais com Leo, Olívia e nossos amigos da cidade de Neblina”.