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Os Filhos de Anansi: uma ÓTIMA notícia e um questionamento pertinente

Sim, este livro do Neil Gaiman (do qual gostamos mais até do que de Deuses Americanos) vai virar série, com o próprio autor como showrunner, o que é MUITO legal. Mas temos que discutir a questão Orlando Jones.

Por THIAGO CARDIM

Pouco depois de confirmar que a série The Good Omens (aka Belas Maldições, conforme título nacional da obra original) vai ter uma segunda temporada, trazendo uma trama com os personagens completamente inédita já que tudo que tinha no livro que escreveu com Terry Pratchett foi usado na temporada 1, eis que Neil Gaiman revelou recentemente MAIS UM projeto de série baseada em sua obra – junto com a adaptação de Sandman pro Netflix, já em andamento, dá pra dizer que o moço tá com a agenda bem da lotada…

O projeto que vinha sendo mantido em segredo, no caso, é Anansi Boys, adaptação do romance best-seller lançado no Brasil como Os Filhos de Anansi (e, sem exagero, um dos livros DA VIDA deste que vos escreve). A produção, uma série limitada de seis episódios, vai estrear exclusivamente no Amazon Prime Video em mais de 240 países e territórios. E detalhe que as filmagens começam na Escócia ainda este ano.

Na história, conhecemos Charlie “Fat Charlie” Nancy, um jovem que está acostumado a ser envergonhado por seu pai distante. Mas quando seu pai morre, ele descobre que seu pai era um deus trapaceiro chamado Anansi. E, pra completar o pacote, também ganha de brinde um irmão que nunca soube que existiu. Agora o tal Spider, seu irmão, chega pra tornar sua vida mais interessante, mas também igualmente muito mais perigosa (e mais cheia de som, já que as muitas referências musicais, de jazz e afins, dão à obra uma trilha sonora própria e cheia de personalidade).

Lembremos aqui que Anansi (também conhecido como Ananse ou Kwake Ananse) é um deus da mitologia axante – que também pode ser grafada Axânti ou Achanti – que se refere aos povos de Gana, na África Ocidental. O deus mais importante neste panteão é Niame (ou Nyame), o onisciente e onipotente Deus Céu. E é justamente ele que acaba sendo trapaceado pelo esperto e manipulador Anansi, uma aranha que percorria o mundo em sua teia sólida. E foi ele quem conseguiu, com um belo dum ardil, libertar as histórias, guardadas em um baú de madeira no céu – tornando um dos maiores contadores de histórias do mundo.

“Histórias são como teias, conectadas fio a fio, e cada uma segue até o centro, porque o centro é o fim. Cada pessoa é um fio da história

Os Filhos de Anansi começou a tomar forma por volta de 1996, a partir de uma conversa que tive com Lenny Henry (ator e comediante britânico) sobre escrever uma história que era diversa e fazia parte da cultura que ambos amamos”, revela Gaiman no comunicado oficial sobre a série. “Escrevi um romance, um livro alegre e engraçado (assim espero) sobre um deus morto e seus dois filhos, sobre pássaros e fantasmas e bestas e policiais, baseado em contos caribenhos e africanos. Foi meu primeiro best-seller número um no New York Times, e acabou se tornando um livro amado e premiado”.

Gaiman e Henry serão, além de roteiristas, também produtores executivos, ao lado de Hanelle M. Culpepper, Hilary Bevan Jones, Richard Fee e Douglas Mackinnon – este último, aliás, foi justamente o diretor dos episódios de The Good Omens. O papel de showrunner será dividido entre a dupla Gaiman e Mackinnon. Já se sabe que Culpepper (de Star Trek: Picard) vai dirigir o episódio piloto.

A produção é da Amazon Studios, em parceria com The Blank Corporation, Endor Productions e RED Production Company. “Anansi Boys como uma série de TV demorou muito para chegar – comecei a trabalhar com Endor e RED para fazê-lo há mais de uma década”, revela Gaiman. “Precisávamos que o Amazon Prime Video viesse a bordo e abraçasse nossa visão, precisávamos de um diretor líder com a arte e visão de Hanelle Culpepper, precisávamos da magia criativa e técnica de Douglas Mackinnon (que descobriu como poderíamos ultrapassar os limites do possível para filmar uma história ambientada em todo o mundo em um enorme estúdio fora de Edimburgo), e precisávamos do resto dos talentos incríveis que ninguém conhece ainda”.

Existe, no entanto, uma questão fundamental a ser discutida aqui. American Gods (Deuses Americanos), a série, também baseada em um livro de Gaiman, foi cancelada. Isso talvez você já saiba. O que talvez não se lembre é que a segunda temporada foi marcada justamente por uma performance BRILHANTE do ator Orlando Jones justamente como o deus africano Anansi. E o que aconteceu entre o final da segunda e o começo da terceira temporada é, no mínimo, deplorável.

E vale BASTANTE a discussão aqui.

O caso Orlando Jones

Eu gostei BEM da primeira temporada de American Gods, embora o ritmo seja realmente um tanto lento DEMAIS. Penso que o tom da segunda temporada, mesmo com a permanência turbulenta do showrunner Jesse Alexander, que se manteve no cargo no lugar da dupla Bryan Fuller & Michael Green pelo menos no começo dos trabalhos, foi um tanto melhor. Tudo bem que, quando a guerra foi finalmente declarada entre Novos e Velhos Deuses, se passaram alguns poucos episódios e, póin, toma outra embarrigada.

O visual tava lindo, é preciso admitir, um DESBUNDE, mas acho que só a partir do episódio 6 é que o negócio engrenou MESMO, numa pegada quase de ANTOLOGIA. Histórias de fato conectadas por uma trama maior, mas que funcionariam sozinhas, tipo a do Donar/Thor ou mesmo o flashback de Mad Sweeney. Seria um bom caminho. Mas não aconteceu.

Uma coisa que ficou claríssima, no entanto, ali no finalzinho da temporada 2, era que o melhor caminho seria ampliar AINDA MAIS os papéis de dois dos personagens que roubaram a cena: Bilquis (Yetide Badaki), a Rainha de Sabá, senhora do amor e reverenciada com o sexo, e o Mr. Nancy/Anansi de Orlando Jones.

“Escravidão é um culto”, diz ele, num monólogo magnífico diante de Bilquis e de outro deus de pele negra, Mr.Ibis (Demore Barnes). Se ESTE fosse o real caminho, tudo ali, soco na cara, talvez ESTA série, talvez ESTA temporada, tivesse tido pelo menos um pouco do impacto que Watchmen acabou tendo na HBO. Mas… adivinha só. Não, não rolou. Porque, na terceira e última temporada, não teve Anansi. Nem Mr. Nancy. E nem Orlando Jones. Mas os motivos são BEM mais complexos do que uma mera negociação de bastidores.

Em dezembro de 2019, num tom absolutamente putaço da vida, Jones fez uso de seu Twitter para publicar um vídeo no qual deixa claro que foi demitido da série no dia 10 de setembro de 2019 (ele falou 2018, mas depois se corrigiu aqui). “Não deixe estes desgraçados dizerem que amam o Mr. Nancy: eles não amam”, afirma.

Evitando citar nomes, ele afirma com ironia que o novo showrunner da série é nascido em Connecticut e estudou em Yale, o que significa que ele é muito esperto. “Ele acha que a atitude furiosa ‘chega desta merda’ do Mr. Nancy passa a mensagem errada para os negros da América. Este cara branco se senta em sua cadeira, tomando decisões, e tenho certeza que ele tem muitos melhores amigos negros ao seu lado, servindo de conselheiros, todos deixando claro que se ele não se livrar deste deus furioso, Mr. Nancy vai causar um levante do tipo Denmark Vesey [carpinteiro acusado de fomentar uma revolta entre escravos em Charleston, Carolina do Sul, no ano de 1822] no país”.

Na sequência, ele agradece Neil Gaiman, autor do livro original, por ter escrito a obra, ter permitido que ele interpretasse o personagem e por ter aberto a porta para que Jones se tornasse roteirista/produtor nesta segunda temporada. E também estende seu muito obrigado a Fuller/Green e, obviamente, aos fãs. “Isso sempre foi pra vocês, espero que tenham gostado tanto quanto eu gostei de fazer. Nos vemos em breve”.

Bom, por mais que Orlando Jones não tenha dado nomes aos bois, a gente dá: ele está se referindo a Charles “Chic” Eglee, que assumiu o cargo de showrunner na terceira temporada, depois de passar pelo papel de produtor executivo em séries como The Walking Dead, Hemlock Grove e Dexter. Fontes ouvidas pelo Deadline davam conta de que o clima entre Eglee e Jones, antes da produção de fato começar, não era dos melhores. O motivo? Justamente a definição de qual seria o papel do ator POR TRÁS das câmeras.

Para a Variety, Jones contou que o próprio Gaiman pediu que ele escrevesse uma “bíblia” para o personagem, uma espécie de guia do que fazer do ponto de vista de roteiro — o que o fez não apenas ganhar o cargo de “produtor consultor” na temporada 2 como também alguém que cuidava dos diálogos de Nancy e de outros personagens, especialmente os não-brancos, tais quais Bilquis, Salim (Omid Abtahi), Jinn (Mousa Kraish) e Sam Black Crow (Devery Jacobs).

“Quando apareci pra gravar a temporada 2, não tinham escrito nada pro Mr. Nancy ainda. Então, sentei na cadeira de roteirista e escrevi”, conta ele. Portanto, era de esperar que ele voltasse pra temporada 3 e, segundo o ator, tanto a Fremantle quanto a Starz, emissora que exibia a série lá fora, estavam em contato com seu agente para renegociar seu acordo como ator e produtor. “Em agosto do ano passado, eles ficaram em silêncio por três ou quatro semanas. Mas eu estava fazendo trabalhos de divulgação pra American Gods em nome do Starz. Não tinha razão para acreditar que eu não faria o que eles tinham dito que eu faria, que era escrever, produzir e atuar no programa”. Mas no tal dia 10 de setembro, veio a ligação. E detalhe: Orlando estava escalado para dividir um painel com o ator Ricky Whittle (que vivia o protagonista Shadow Moon) naquele mesmo mês em plena Salt Lake City Comic-Con.

Obviamente que a produtora, a Fremantle, não ia deixar a coisa evoluir deste jeito e rapidamente soltou um comunicado oficial, dizendo que a trama de American Gods mudou e evoluiu de maneira contínua para refletir a mitologia complexa do material original. “Optamos por não manter o Sr.Jones porque Mr. Nancy, da mesma forma que outros personagens, não aparece na parte do livro na qual nos focaremos ao longo da terceira temporada. Mas diversos novos personagens, muitos dos quais já foram até anunciados, serão introduzidos ao mundo de Shadow Moon e vão continuar a contribuir para o legado da série como uma das mais diversas da televisão”.

Quando alguém bate no peito pra dizer que sua série é “uma das mais diversas da televisão”, digamos que coisa boa não vem por aí, né…?

“Por que nunca tiveram uma conversa comigo sobre isso?”

Sim, a terceira temporada se focou na parte do livro referente à Lakeside, a cidade fria na qual Shadow Moon resolve se esconder dos Novos Deuses — mas vamos lá: livro é livro, série é série, né? Quantas e quantas vezes já falamos sobre isso mesmo (quem me conhece do JUDÃO.com.br já deve até estar cansado de escutar)? Pois se eles fizeram um monte de outras alterações para que a narrativa seriada funcionasse melhor, caralhos, qual seria o problema de pegar algo que tava funcionando um BOCADO e trazer praquele lugar?

Jones também questiona esta justificativa. “Vocês tentam fazer soar como se fosse uma ‘opção’, mas eu fui demitido, eu entendi”, disse ele. “Mas eu também fui tirado das minhas outras funções, que podia continuar desenvolvendo. Se era este o caso, por que não me falaram isso meses atrás? Por que me tiraram todo o trabalho? Por que nunca tiveram uma conversa comigo sobre isso? (…) Não entendo. Não fiz nada. Fiz meu trabalho, nada além disso. E não invadi à força a sala de roteiristas. Me pediram para fazer parte dela”.

Ele reforça que não chegou pra trabalhar na 2a temporada com nada disso em mente. “Não cheguei com a expectativa de que a tarefa de escrever meu próprio personagem ficaria em minhas mãos, nem esperaria que Neil me pedisse isso, nem que alguém fosse ficar bravo com isso”. E completa: “Agora fingir que isso é sobre algum tipo de cenário criativo é realmente um insulto. Minha esperança é que ninguém se encontre nesta situação, de ficar no hiato de 19 meses sem trabalho, e aí ser demitido no último minuto”. Apesar de repetir que gostaria de ter sido tratado com mais respeito, ele sabe que é um privilegiado e que seus filhos não estão em jaulas como as crianças de refugiados nos EUA. “Mas seria bom receber um ‘obrigado’ e seria ótimo ter sido pago. Ninguém precisa passar por isso. Por fazer seu trabalho”.

Este “não saber”, por sinal, foi JUSTAMENTE a coisa que mais incomodou Orlando Jones, que ficou aguardando a informação oficial durante meses. “Eu acreditava que, em algum momento, alguém diria que eu não estaria na temporada 3. E imaginei que alguém me procuraria pra alinhar ou haveria algum tipo de comunicado pra imprensa ou algo assim”.

Quando um vídeo com o diálogo de Anansi sobre racismo começou novamente a viralizar nas redes sociais por conta de novas e contínuas cagadas raciais envolvendo o ex-presidente Donald Trump, Jones começou a receber centenas de mensagens em suas redes sociais, de gente dizendo que o ama, que usou aquele trecho em suas aulas na escola. “Para ser honesto, eu chorei. Sentei e chorei porque eu sabia que não estaria lá. Isso é loucura, porque a pessoa que eles odiariam seria eu. Eu não queria estar num cenário em que alguém paga seus suados dólares pela terceira temporada de American Gods e aí descobre que não estou lá. Isso é simplesmente errado”.

O ator disse que sentiu que, em algum momento, teria que dizer algo. E então, repetiu aquilo que lhe foi dito nas negociações. “Tudo que posso dizer é o que me disseram. E o que me disseram é que aquela era a mensagem errada para os negros da América, que o novo showrunner sabe escrever sobre a perspectiva de um homem negro”. Vale repetir, caso não tenha ficado claro: Chic Eglee é branco. “Ele disse isso com todas as palavras, para todo mundo”.

Jones conta ainda que, no mesmo dia, trocou uma ideia com a atriz Gabrielle Union, que coincidentemente também estava enfrentando uma batalha com a Fremantle, que é uma das empresas que produzem o America’s Got Talent — o show de talentos no qual Gabrielle era jurada. Ela levantou acusações de que o ambiente era tóxico e “racialmente insensível”, o que envolveu uma piada racista do convidado especial Jay Leno (que acabou não indo ao ar), um participante que quase teve um black face exibido (e a própria Gabrielle foi lá falar com os produtores sobre como aquilo era errado) e comentários sobre como seus penteados eram “muito negros” para o público do programa. Resultado? A jovem passou a carregar a pecha de “difícil”. Simon Cowell, inclusive, teria dito que se ela tinha algum problema sobre o AGT, deveria procurar a ele diretamente, e não à Fremantle ou à NBC.

“Isso é exatamente o que a Gabrielle está descrevendo”, afirmou Orlando Jones. “Estou literalmente tentando salvar os caras deles mesmos, porque eles têm estes personagens em mãos e não querem fazer nada com eles. Mas aí quer me dizer que se preocupa com a comunidade LGBTQI+, por exemplo… Então me ajude a entender como. Como eu sou seu inimigo? E foi desta forma que ela se sentiu. Ambos dissemos que isso não tinha relação com dinheiro. É sobre as pessoas que virão depois de nós, como elas vão se encontrar na mesma posição”.

A situação envolvendo Orlando Jones é só mais uma numa produção com situações bastante controversas, dadas as múltiplas trocas de showrunners: Fuller & Green saíram, no meio de uma bagunça que, segundo consta, envolveu diferenças criativas com o próprio Gaiman e uma briga por aumento de orçamento com a Fremantle. Quando Jesse Alexander foi escalado, muita gente esperava que o cara fosse colocar ordem na casa, mas sua participação durou pouco e ele foi sendo colocado de lado, sem que ninguém soubesse ao certo muito bem QUEM estava no comando das rédeas. A chegada de Eglee poderia ter trazido a tão sonhada estabilidade… mas quem viu a terceira temporada de American Gods sabe que tá na cara que não foi o que rolou.

Não temos o canal Starz aqui envolvido com Anansi Boys, tampouco a Fremantle. E o anúncio oficial da produção da série deixa claro que se trata de “uma história autônoma, não uma sequência ou spin-off do romance American Gods de Gaiman”. É, de fato, um bom jeito de tentar distanciar as duas produções, embora, da mesma forma que aconteceu quando o livro saiu, difícil evitar criar uma conexão quando se tem Gaiman + Anansi na equação.

Todavia, é importante deixar claro que eles usam a expressão DIVERSIDADE e os adjetivos DIVERSO e DIVERSIFICADO algumas muitas vezes quando falam sobre Anansi Boys. Estamos falando de uma série estrelada por um deus negro e seus dois filhos negros. Era de se esperar, portanto. Mas estas questões que aconteceram em American Gods devem SIM servir de lição.

Douglas Mackinnon e Gaiman, os dois showrunners, são homens brancos. Lenny Henry, no entanto, é um homem negro. E Hanelle M. Culpepper é uma mulher negra. O quanto eles vão ter de autonomia para poder discutir o jeito que os personagens são apresentados? Uma ótima pergunta, que só quem está nos bastidores conseguiria responder.  

“Adoro ter um elenco e uma equipe devidamente diversificados para contar essa história alegre!”, diz o próprio Henry. “O que é ótimo é que toda a produção está ouvindo e garantindo que a inclusão está acontecendo e está sendo vista para ser feita”. Culpepper faz questão de reforçar que Anansi Boys é “uma história atraente e contemporânea envolvida em uma mitologia única e poderosa da diáspora negra”. Tá aí.

Seria LINDO se eles realmente cumprissem isso. E, de alguma forma, ajudassem a fazer justiça ao Anansi anterior, Orlando Jones – que, não, até o momento não está confirmado na série (nem ele e nem ninguém do elenco, leia-se).

Seria um tipo de justiça poética, absolutamente necessária em um caso como este. Vejamos.