Os 30 anos do clássico RPG Vampiro: A Máscara
Descontinuado originalmente em 2004, RPG que foi uma verdadeira febre na década de 1990 completa três décadas tentando retomar o interesse dos fãs antigos e ainda trazer uma nova leva de seguidores
Por THIAGO CARDIM
No dia 4 de julho de 1991, na tradicionalíssima Origins Game Fair, convenção anual de jogos realizada que acontece anualmente em Columbus, Ohio, a editora White Wolf lançou um título que entrou para a história dos RPGs de mesa – tratava-se de Vampire: The Masquerade, o pontapé inicial do chamado World of Darkness.
Toda pessoa que, como eu, jogava RPG nos anos 1990, não deve ter passado despercebida por este blockbuster dos role-playing games, conhecido por aqui como Vampiro: A Máscara, na popular tradução da Devir.
Desenvolvido pelo designer de jogos Mark Rein-Hagen, um dos criadores de Ars Magica, para a White Wolf Publishing (que, muitos anos mais tarde, cederia os direitos de seus RPGs de mesa para a Onyx), Vampiro: A Máscara foi o primeiro jogo de um universo compartilhado que logo se ampliaria com jogos focados em outras criaturas sobrenaturais como Lobisomens, Magos, Fantasmas, Fadas, Múmias e Demônios.
Também foi o título inaugural do chamado sistema Storyteller. Muito mais simples do que as muitas tabelas que sempre caracterizaram o D&D e o GURPS, ele consistia em rolagens de dados combinando atributos (físicos, mentais e sociais) com algum tipo de habilidade específica. Numa luta, por exemplo, poderia ser força + briga para bater ou, quem sabe, destreza + esquiva para desviar da porrada. E tudo medido com bolinhas que iam de 1 (fraco) a 5 (excepcional).
Além disso, duas diferenças fundamentais ajudaram a quebrar um paradigma para quem estava acostumado com o Dungeons & Dragons tradicional: os dados não eram os clássicos de 20 lados, mas sim de 10; e o Mestre passou a ser chamado de Narrador.
Falando um tantinho sobre ambientação…
O tema do jogo era relativamente simples: os vampiros estão entre nós. Eles vivem numa sociedade nos bastidores do mundo dos humanos há milênios – desde Caim, filho de Adão e Eva, que se tornou a primeira criatura da noite quando matou o irmão Abel – manipulando cada um de nossos passos em seus jogos de poder.
Eles são caçadores vorazes, provocantes, sensuais, envolventes. Têm poderes sobrenaturais, as chamadas disciplinas, correntes de aprendizado e desenvolvimento destas forças. E também ficam numa constante luta por sua humanidade (um dos itens mais fundamentais da planilha, aliás), evitando que sua fome os leve a um estado batizado de frenesi e que os torna cada vez menos humanos e cada vez mais bestiais, capazes de cometer o pecado dos pecados: a diablerie, o processo de se alimentar (e, neste processo, matá-lo) de um outro vampiro.
Divididos em clãs com características muito próprias – dos anárquicos Brujah aos aristocráticos Ventrue, passando pelos misteriosos Tremere, pelos selvagens Gangrel, pelos alucinados Malkavianos, pelos performáticos Toreador e pelos assustadores Nosferatu, isso só pra ficar nos sete clássicos – e vindos de diferentes gerações que definem a força de seu sangue, eles têm uma única regra que jamais pode ser quebrada: a Máscara. Eles jamais podem se revelar para um humano. E devem tomar muito cuidado antes de escolher quem serão as suas crias, aqueles que vão passar pelo processo do Abraço – quando o mortal morre, bebe o sangue de um vampiro e se torna, ele mesmo, um imortal, um recém-chegado chamado de neófito.
Apesar de ser claramente uma versão modernizada da obra de Anne Rice com uma pegada mais gótica/punk, Vampiro: A Máscara teve também a sua dose de influência nas versões de vampiros que vimos por aí algum tempo depois – quem se acostumou à ambientação do RPG com certeza reconhece seus elementos nos filmes da franquia Anjos da Noite (Underworld) e mesmo na série True Blood, por exemplo.
As muitas versões da vampirada
Além da versão inaugural, Vampiro: A Máscara teve duas revisões: uma segunda versão em 1992 (com mudanças pontuais) e a “edição revisada” de 1998 – esta última, marcada por uma espécie de reboot cronológico e posterior relançamento da maior parte do material suplementar (como os livros de clã) em nova versão. Em 1998, a White Wolf soltaria ainda um spin-off chamado Vampire: The Dark Ages, que era todo ambientado na Idade Média, um de seus poucos êxitos em uma época na qual as coisas começaram a apertar.
Em 2004, no entanto, A Máscara foi descontinuado, para dar lugar a um novo Mundo das Trevas, que começou com Vampire: The Requiem.
Não se tratava de uma continuação: na verdade, a intenção da White Wolf com Requiem era aproveitar apenas o espírito do original, mas mudar completamente o rumo da prosa para tentar cair no gosto de uma nova geração de fãs. Embora elementos de A Máscara tenham sido aproveitados, Requiem tentou ser um pouco mais caçada sobrenatural, com um quê mais místico/religioso, e se distanciar um pouco do lado dos jogos políticos por comida e território.
E por mais que até a New Line Cinema tenha se empolgado com o conceito e adquirido os direitos para transformar o jogo em filme (que nunca saiu do plano dos sonhos), Requiem não conseguiu, nem de longe, o sucesso de seu antecessor.
O caminho para a volta d’A Máscara começaria a ser pavimentado só em 2011, quando o jogo completou seus 20 anos de existência e a White Wolf lançou uma edição especial comemorativa. A tal edição de duas décadas não tinha nada de muito novo a não ser uma revisão das regras e um compêndio com uma porrada de material que, antes, tinha sido lançado espalhado por uma cacetada de suplementos. Mas fez um baita barulho e despertou os fãs de seu torpor (pega esta referência aê, mano).
Além das versões para card game (Vampire: The Eternal Struggle) e para live-action, o RPG jogado ao vivo, com fantasias e fora da mesa (Mind’s Eye Theatre: The Masquerade), Vampiro se espalhou por outros cantos do universo da cultura pop. Virou uma adaptação em HQ pela Moonstone Books, um disco de trilha sonora chamado Music from the Succubus Club (Dancing Ferret Discs), um montão de livros de ficção estrelando cada um dos clãs, dois joguinhos da Activision (Vampire: The Masquerade – Redemption e Vampire: The Masquerade – Bloodlines) e até uma série de TV de vida curtíssima – a pavorosa Kindred: The Embraced, produzida pelo mesmo Aaron Spelling de Barrados no Baile.
A tal da 5a edição
Também conhecida como V5, a tão aguardada edição de número 5 de Vampiro: A Máscara, de volta à ideia original e deixando o reboot de Requiem de lado, chegou em 2018 e foi cocriada pelo trio Martin Ericsson (lead storyteller), Karim Muammar (playtest designer e editor-chefe) e Kenneth Hite (lead designer). Era o retorno definitivo depois dos novos rumos da White Wolf.
A gente explica, caso você não esteja ligado – a White Wolf e a empresa Islandesa CCP Games, responsável pelo MMO Eve Online, se fundiram. A ideia seria então criar um MMORPG totalmente inspirado no novo Mundo das Trevas. Mas, em 2011, o mercado não tava indo muito bem, uma porrada de gente foi pra rua e o jogo foi oficialmente cancelado. Enquanto isso, no ano seguinte, Richard Thomas, ex-diretor criativo da WW, foi lá e fundou a Onyx Path, uma nova editora que além de seus produtos proprietários (como Pugmire) também se especializou em produzir materiais licenciados para RPGs de mesa. Adivinha com quem eles logo foram fechar contrato? Mas claro, com a White Wolf.
Mas em 2015, a Paradox Interactive levou Onyx e White Wolf num pacotão, incluindo todo o seu catálogo. Demorou, mas a tão prometida V5 acabou enfim acontecendo.
Embora o clima tenha sido mantido, os criadores aproveitaram para dar uma bela atualizada no chamado metaplot (a ambientação geral, leia-se, a história que percorre todos os livros) – começando pelo fato de que múltiplas agências federais em diferentes países descobriram que os vampiros existem e perceberam o poder que exercem nas políticas e finanças globais. Então, estes grupos formam em segredo (claro) uma nova unidade com a Sociedade de Leopoldo (organização católica de caçadores de criaturas sobrenaturais) e criam a Firstlight, dando início à chamada Segunda Inquisição.
Um de seus primeiros grandes ataques, devastador, foi usando drones para acabar com a Capela de Viena, um dos mais importantes QGs dos Tremere em todo o planeta. As muitas mortes definitivas de vampiros da linhagem impediram a conexão de novos Laços de Sangue e fizeram com que eles se dividissem em quatro casas – Tremere (ainda alinhada com a Camarilla, a organização hierarquizada responsável pelas regras da comunidade, incluindo a Máscara), Ipsissimus (alinhada com os anarquistas), Carna e Goratrix (jogadores das antigas devem se lembrar deste nome…).
Boa parte dos clãs tradicionais foram mantidos, mas rolaram algumas modificações – os Assamitas agora são os Banu Haqim, enquanto The Ministry é a nova organização dos Seguidores de Set (que se adaptam à mitologia e ao folclore de cada local, ao invés de apenas cultural um deus egípcio, o que de fato parecia bem esquisito). Além disso, os clãs mais ligados à figura da morte, como Samedi, Giovanni e Capadócios, agora fazem parte de uma única organização – Hecata.
Uma parada MUITO legal, todavia, é que esta quinta edição e seus respectivos livros de apoio foram aos poucos corrigindo questões bastante problemáticas relativas à algumas das linhas de vampiros, sejam os Setitas retratando os árabes como fanáticos cultistas, os Assamitas como matadores cuja pele ficava mais escura à medida que se tornavam mais cruéis ou mesmo os Ravnos que davam a entender que todo o povo cigano deveria ser entendido como um enganador, um trapaceiro, um ladrão em potencial.
No caso deste último, por exemplo, a ideia de revitalização fora de um estereótipo racista veio no chamado V5 Companion. Agora, ao invés de ter uma conexão cultural e racial, podemos ter Ravnos com os mais diferentes backgrounds, justamente porque eles estão ligados não aos ciganos e demais povos nômades – mas sim ao arquétipo das entidades mitológicas conhecidas por serem enganadoras. Entre os nórdicos temos Loki, dos africanos vem o Anansi, no hinduísmo o deus-macano Hanuman…
A ideia é, de fato, MUITO legal mesmo. <3
Falando um pouco sobre futuro
Uma novidade já anunciada, e que deve sair ainda este ano, é o battle royale Bloodhunt, jogo desenvolvido pela Sharkmob para ser jogado gratuitamente, inicialmente com foco no Windows. Vai ser um quebra-pau nos telhados e nas ruas da cidade de Praga, capital da República Tcheca, logo depois de uma reunião vampírica que se transforma numa guerra entre clãs e acaba envolvendo até os caras da Segunda Inquisição.
Embora os jogadores precisem, como no RPG de mesa, esconder suas identidades dos humanos, mantendo a Máscara, eles podem escolher lutar sozinhos ou em grupos, utilizando armas de fogo, armas brancas e mesmo um pacotão de habilidades das criaturas da noite, tipo superforça e supervelocidade.
Além disso, nesta corrida desenfreada de Hollywood para encontrar a próxima grande franquia que pode virar uma trilogia de filmes pros cinemas ou, quem sabe, um bocado de séries de TV para abastecer os serviços de streaming da vez, era de se esperar que alguém fosse se interessar pelo Mundo das Trevas capitaneado por Vampiro. E a Hivemind foi lá e garantiu os direitos de adaptação, com a belíssima assinatura de quem já cuidou das transposições de The Witcher e The Expanse pras telinhas. À frente do projeto (que muito provavelmente deve ser uma série, mas ainda não se descarta a possibilidade de TAMBÉM virar filme – seja no singular ou no plural) está o casal Eric Heisserer (de Sombra e Ossos) e Christine Boylan (da mais recente adaptação do Justiceiro, no Netflix).
A única promessa, até o momento, é manter a INCLUSÃO que a ambientação dos jogos sempre tentou trazer, étnica, de gênero e de orientação sexual. Ótima notícia, embora a gente já saiba de antemão que um monte de machinho que fazia personagem bombado de força pra sair dando porrada no jogo talvez vá ficar revoltado…
Um depoimento pessoal
Aqui no Brasil, Vampiro foi um sucesso estrondoso. Arriscaria dizer, aliás, que foi um dos principais disseminadores da prática do RPG a partir do começo dos anos 1990, atraindo um público que originalmente não se interessaria pelos ambientes de fantasia medieval que eram o padrão em outros sistemas. Nas convenções e encontros de RPG, Vampiro era a maioria e suas mesas eram disputadas à tapa.
Eu mesmo, nas terras de Santos, um adolescente do alto dos meus 13 anos de idade, já tinha lido O Senhor dos Anéis, já tinha jogado livros-jogos (saudades Encontro Marcado com o M.E.D.O. e A Cidadela do Caos), já tinha jogado GURPS… mas admito que só me tornei RPGista de fato quando comecei a jogar Vampiro.
Foi quando comecei a comprar uma porrada de livros. Quando comecei a montar histórias de personagens tão longas e profundas que poderiam facilmente se tornar um livro. Quando montei um grupo fixo de jogo – aquele que jogava todas as sextas-feiras, madrugada adentro, alimentado à base de pizza fria e esfihas baratas.
Aliás, acho engraçadão alguns bróders das antigas, longínquos parceiros do RPG, desdenhando de Vampiro depois de tanto tempo…
Ué, por acaso Vampiro é coisa de moleque de 14 anos e quando, você cresce, resolve que só pode jogar D&D? Tipo metal que “ai, eu ouvia quando era adolescente, agora cresci e virei indie”? O tema ficou “infectado” pelas “meninas adolescentes” que amam “Crepúsculo e Vampire Diaries” (sério, eu li isso no Facebook de um conhecido)? Nada disso – e, vamos lá, ZERO problemas com Crepúsculo e The Vampire Diaries, vá, minha gente.
Eu ainda adoro a ambientação de Vampiro. A estrutura de clãs, os jogos de poder, o horror pessoal, cara, ainda acho que dá pra contar grandes histórias. Acho que tudo depende do olhar do Mestre/Narrador. Fico pensando, agora que tô mais velho, mais maduro, outra experiência de vida, eu teria capacidade de contar outro tipo de história naquele mundo. Um tipo de história BEM mais legal.
Tô até disposto, de verdade, a tirar da gaveta uma aventura em Las Vegas que tenho prontinha pra mestrar e que acabou nunca rolando porque, bem, todos os jogadores (eu incluído) viraram um bando de adultos chatos que casaram e agora têm que se preocupar com contas para pagar (true story, acontece com todo mundo).
Minha vida mudou MUITO. Vejamos como este novo olhar se encaixa neste jogo.
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Osvaldo Jonathan
Ótimo texto.
Falando apenas sobre um trecho, eu ainda tenho esperança de ver um boa série sobre o jogo. Eu acredito que Vampiro tenha alguns componentes que facilitem essa adaptação.
Everton Barboza
Cara, baita texto. Me identifiquei muito!!! Eu mo auge dos meus 39 anos, depois de uns 20 anos sem jogar, retornei no ano passado motivados pela triste imposiçãp.do isolamento. Jogando com broders de vários estados de forma online (discord). Jogamos vampire e não me arrependo nem um pouquinho por ter voltado, muito pelo contrário!!!!
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