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A Ira dos Ventos: fantasia surreal em projeto interativo e transmídia

Obra da artista visual Talessak, já financiada via Catarse, é uma HQ com conteúdos complementares como animação, vídeos e trilha sonora original

Por THIAGO CARDIM

Scott McCloud, um dos maiores estudiosos contemporâneos do mundo dos gibis, sempre defendeu, desde os idos dos WWW e @s, que fazer histórias em quadrinhos para serem lidas na internet deveria ser um processo de se pensar O MEIO. De nada adiantaria fazer um gibi online cujo único recurso é virar as páginas, com quadros dispostos e funcionando narrativamente da mesma forma que um gibi impresso – justamente quando existem tantas funcionalidades possíveis, desde próprio o scroll do navegador até os famigerados recursos multimídia…

Mas é fato que TAMBÉM existe o inverso. Afinal, aquele gibizinho de papel mesmo, vida real, que tá na sua mão, poderia TRANQUILAMENTE conversar com seu celular, seu computador, seu tablet… Basta querer. Aqui mesmo no Gibizilla a gente já te apresentou ao projeto Mata-Mata, que é conto, é podcast, é música. Isso é o tal do transmídia, que o escritor e especialista em projetos do gênero, Jeff Gomez, descreve como sendo uma narrativa que acontece em várias plataformas, de modo coordenado. “Cada plataforma comunica algo que se acrescenta à narrativa da plataforma principal, que é chamada de nave-mãe”. Em resumo, é contar histórias em múltiplas plataformas de mídia, com elementos originais e característicos a cada uma dando contribuições novas para a trama e ampliando o envolvimento dos fãs com a obra.

É exatamente isso que a paulistana Talessa Kuguimiya, mais conhecida como Talessak, artista visual, quadrinista e roteirista, está fazendo com seu A Ira dos Ventos, projeto recentemente financiado coletivamente via Catarse.

Em papo exclusivo com a gente, ela mesma explica a ideia por trás da iniciativa: um projeto gráfico multimídia que conta a história de um jovem chamado Zani. “Ele se perde em uma floresta fantástica e encontra misteriosos ningyõs, bonecos inspirados no teatro de bonecos, Bunrako, que passam a acompanhá-lo. O jovem precisa encontrar uma saída daquele lugar, mas sabe que terá que descobrir os segredos daquela floresta para que possa voltar para casa”, conta.

Calma, calma, vamos lá. Quem é a Talessak mesmo…?

Ah, tá, você quer dar dois passos atrás. Tá bom, a gente te conta. Em 2011, ela produziu Yayá, curta animado sobre a vida marcada por tragédias de Sebastiana de Melo Freire que foi lançado na Semana de Arte e Cultura da USP e passou a fazer parte do acervo da Casa de Dona Yayá (CPC-USP). Ou seja, já tá ligado que ela também é do rolê audiovisual. Mas nunca deixou os gibis de lado, é bom que se diga.

“De forma independente, produzi e publiquei a série em quatro volumes Memories, indicada ao 31º prêmio HQMIX na categoria melhor minissérie, em 2019”, relembra a autora. Ela também foi responsável por Cinco Vermelhos, indicada ao 35º Troféu Angelo Agostini na categoria Melhor Desenhista, também em 2019.

Em seu currículo mais recente, constam ainda Sobre Trilhos, uma graphic novel que foi resultado de projeto contemplado pelo Edital de 2018 do ProAC, do Governo do Estado de São Paulo, e Caminhos da Bruma, HQ lançada pela Editora Noir. “Minha última publicação foi Deimos e Phobos, lançada no fim do ano passado, em 2020”. 

Ficou claro? Pois voltemos pra Ira dos Ventos, então!

Estamos falando, essencialmente de uma aventura fantástica e surrealista com arte e narrativa inspiradas na cultura e tradição dos períodos Heian e Kamakura do Japão. A trama, que mistura elementos e conceitos do teatro Noh (forma clássica de teatro profissional japonês que combina canto, performance corporal, música e poesia), é uma homenagem à cultura japonesa, que permeou a formação e educação da quadrinista. “Essa aproximação ocorreu naturalmente desde criança através dos meus pais e dos meus avós, laços que sempre tiveram grande importância e influência na minha vida e nos meus trabalhos”.

Ela fez questão, no entanto, de manter também outro aspecto da cultura nipônica, que é a coexistência da tradição e da modernidade. “O fato de utilizar QRcodes em Ira dos Ventos, como em trabalhos anteriores, foi uma maneira de trazer esse aspecto na forma de apresentar o conteúdo, do moderno (transmídia/virtual) com o tradicional (livro físico)”. Além disso, nesta HQ em específico, ela também faz a conexão na técnica, que traz pintura digital mas com as estampas das vestimentas do concept art em colagem e pintura em nanquim e aquarela. “A ideia foi seguir o efeito visual criado no concept para a ferramenta digital, como a textura e a volumetria do tecido”, explica.

Os QRcodes, inseridos ao longo das páginas, oferecem ao leitor acesso a conteúdos complementares como animação, vídeos e trilha sonora original criados especialmente para a HQ.  “Os conteúdos, tanto do quadrinho como o da animação, são pensados simultaneamente. As imagens surgem para mim de forma natural e fluída”, revela ela, sobre seu processo criativo. “Claro, como parte do processo há a ‘edição’, acrescentar, desenvolver, escolher. Os ajustes são sempre necessários e são realizados na finalização do projeto”.    

Vamos falar mais processo de trabalho!

Opa, vamos sim! Na real, Talessak diz que seu processo é um pouco excêntrico e muito intuitivo, com um ritmo próprio. “Depende muito da técnica e do tipo de superfície (papel, tela, etc) escolhidos para realizar a arte. O processo e a dinâmica dos trabalhos mudam de acordo com isso”, conta. Mas de qualquer maneira, a produção de uma página pode demorar horas, considerando que ela realiza sozinha desde o concept até a finalização da página. “Geralmente todo o processo (roteiro, páginas, acabamento, balonização, edição, animação, trilha sonora, impressão) demora, em média, de 4 a 7 meses, mas já tive casos que executei em 3 meses”.

No caso de Cinco Vermelhos, a produção foi um pouco mais ágil, apesar do processo e das técnicas serem mais complexas. “Foi preciso pensar muito bem a cena antes de pintar no papel, pois segui o conceito da técnica de Sumi-ê (técnica ancestral de desenho monocromático, baseado no uso da tinta nanquim). Qualquer ‘erro’, a página precisaria ser refeita por inteiro”.

Já as ilustrações de Sobre Trilhos foram feitas em aquarela com páginas coloridas, em um processo mais demorado, já que há uma preocupação maior com a harmonização da paleta de cores e o tempo de acabamento. “Em Deimos e Phobos, eu utilizei a técnica de pastel seco com tinta acrílica sobre papel preto em formato A2. Esse projeto também foi muito interessante na execução, pois o pastel seco é um material com características muito peculiares”.

No mais recente, Ira dos Ventos, a artista, apesar de ter utilizado uma técnica digital, diferente de outras produções até então, teve uma fase de acabamento bem mais demorada. “Optei por uma finalização mais delicada e clean”.

Dá uma olhada aqui no teaser pra ter um gostinho de como ficou o resultado final de Ira dos Ventos.