A armada dos porcos cegos
Surgido das cinzas da lendária banda de punk rock nacional Blind Pigs, o grupo Armada mantém a bandeira (preta) hasteada, passando longe do “emcimadomurismo” e sem medo de se posicionar
Por THIAGO CARDIM
“Sonhos grandes, realidade pequena. Mas não vou parar de lutar”. Este trecho de uma das canções do Blind Pigs, Não Vou Parar de Lutar, pode ser usado para descrever a própria trajetória da banda. O quarteto paulistano, que em 1992 se meteu a montar um combo punk rock mesmo sem ninguém saber tocar muito bem, incorporou 100% o espírito do “faça você mesmo” e lançou, entre 1997 e 2004, quatro discos, incluindo o ao vivo Suor, Cerveja e Sangue.
Aí, apesar de fazerem uma “pausa por tempo indeterminado” em 2005, nunca pararam de lutar MESMO. Um ano depois, viria a fase “Porcos Cegos”, com nome traduzido e gravando em português. Acabaram em 2008, voltaram à ativa como Blind Pigs em 2011, sumiram de novo, aí retomaram a porradaria dois anos depois para celebrar o aniversário de 20 anos e, com a morte do guitarrista Fabiano e a saída definitiva do Gordo, o outro guitarrista, eis que o Blind Pigs acabou de vez.
Quer dizer, quase isso.
Henrike Baliú (voz) e Mauro Tracco (baixo), integrantes originais do Blind Pigs, continuaram lutando. Ao lado de Alexandre Galindo (guitarra) e Arnaldo Rogano (bateria), que tocaram com a banda durante muito tempo, eles quiseram ser em frente com um novo projeto. Injetando sangue novo neste rolê, chegou o segundo guitarrista, Ricardo Galano, da banda Não Há Mais Volta. Pronto, o Armada tava pronto para levantar âncora.
Ainda independentes, incorporaram os elementos da pirataria no conceito da banda – tanto é que o primeiro EP, autointitulado, lançado lá em 2017, trazia a canção Bandeira Negra, inspirada em um livro inglês de 1724 sobre roubos e crimes de piratas notórios. A música acabou servindo de batismo para o primeiro disco dos caras, que saiu em 2018 e conta com as inusitadas participações especiais de Sérgio Reis e Kiko Zambianchi.
Uma banda nas trincheiras dos gibis
Acabou que, apesar do Gibizilla também ter a sua veia musical (no menu superior, não por acaso, tem uma área de “música” porque o assunto também nos é muito apreciado), o Armada veio parar por aqui justamente por causa dos quadrinhos. Porque, em dezembro de 2019, eles lançaram um EP da canção Nas Trincheiras. E o lyric video da faixa, que você assiste logo acima, é todo inspirado na linguagem dos quadrinhos de guerra.
“Sempre fui muito fã de HQs. Quando era moleque, morando nos EUA nos anos 1980, lia religiosamente a HQ do G.I. Joe (Comandos em Ação), e de vez em quando pegava umas HQs de guerra da DC, mais especificamente, G.I. Combat e Sgt. Rock, ambas sobre as aventuras do Sargento Rock e seu batalhão Easy Company na Segunda Guerra Mundial”, conta Henrike, num papo exclusivo com o nosso site.
Ele explica que escreveu a letra da música em cima da melodia que o guitarrista Galano criou. “Lembro até que fiz a letra inteira durante meu treino de natação na piscina da ACM! Hahahaha! Saí da piscina com a letra inteira na cabeça”, conta. “Fui pro chuveiro, me troquei, peguei o celular e comecei a digitar pra não esquecer. Como a letra é sobre a perda da inocência de um jovem soldado na Guerra, pensei em usar HQs do Sgt. Rock para ilustrar o vídeo”. BINGO.
E já com os quadrinhos do Sargento Rock na minha cabeça, especialmente aqueles desenhados pelo gênio Joe Kubert nos anos 1970 e 1980, lá foi ele visitar a Loja Monstra, local especializado em gibis na cidade de São Paulo – e que, além de ficar no bairro onde o Henrike, ainda é de propriedade de um grande amigo do músico, o figuraça e queridíssimo Gui Lorandi. “Ele me deu a dica de um site com várias HQs antigas em alta definição. Aí foi um trabalho árduo, pois pesquisei mais de cem revistas do Sgt. Rock, página por página, para encontrar os desenhos perfeitos para o vídeo”. O frontman salvou quadro por quadro e aí passou para o Paulo Rocker, artista que faz as artes da Armada.
Paulo então mudou os balões de fala, colocou um ou outro detalhe a mais… Depois disso, Henrike e o baixista Mauro Tracco montaram quadro a quadro as páginas e um amigo fez a edição final. “Foi cansativo, mas o resultado ficou exatamente como eu queria”.
Henrike mesmo é fã da parada – por exemplo, ele adora Batman, especialmente a fase dos anos 1980 e 1990, com o desfile de clássicos como Ano Um, Asilo Arkham, O Messias, O Cavaleiro das Trevas, A Piada Mortal, A Queda do Morcego (aí um pouco menos, hahahaha) e as histórias desenhadas pelo falecido Norm Breyfogle. “Meu artista favorito do vigilante de Gotham”, diz.
Para ele, que teve a sorte de ser adolescente e acompanhar petardos como Watchmen, Sandman, A Queda de Murdock, Eu, Wolverine e Elektra Assassina saindo nas bancas, aquela foi uma época incrível – mas hoje, sem ficar preso ao passado, ele curte bastante materiais como Hellboy, Black Hammer, Umbrella Academy e Astro City. “Te digo que com certeza a cultura pop exerce uma influência grande nas minhas letras. Por exemplo, na época do Blind Pigs, minha ex-banda, fiz a letra da música Victory inspirada na HQ V de Vingança“.
Tá puxado ser punk no Brasil…
Da mesma forma que nos disseram os caras do Faca Preta, não dá pra uma banda que se rotule como “punk rock”, não importando a sonoridade para a qual resolva puxar, ficar calada num momento como este. É, você sabe do que a gente tá falando, com a tropa de canalhas que ocupam os corredores do Palácio do Planalto.
“É obrigação se pronunciar contra esse desgoverno de direita que está acabando com nosso país. Essa é a minha opinião”, sentencia Henrike. O Gibizilla, conforme já ficou claro em outras ocasiões, concorda em gênero, número e grau. Por mais que uma galera do próprio meio punk esteja saindo do bueiro pra defender governo fascista, né…? “É muito desgosto. Triste fim”, afirma ele.
Não dá pra falar de desgoverno e não falar de pandemia, nossa grande preocupação do momento. “Estamos com um disco pronto, só falta colocar a voz. O lançamento dele obviamente foi adiado. Mas sem pressa, não podemos nem dar show, então estamos indo com calma”, revela o músico. “Fizemos alguns vídeos na pandemia, não chegamos a ficar parados”.
Não ficaram parados mesmo: um dos lançamentos foi a faixa Três Acordes, Um Amor e Uma Cerveja, música curta e divertida que é uma versão do Ack, grupo punk rock carioca dos anos 1990.
A ideia da regravação veio depois do convite para participar do festival online Punk Rock Bash, realizado em homenagem às bandas brasileiras dos anos 90. Os caras pensaram até em tocar alguma coisa do Blind Pigs, mas acharam óbvio demais. Então, veio a ideia do Ack. “Eu e o Fábio Seidl, baixista e vocalista, somos primos irmãos, crescemos juntos escutando as mesmas bandas, lendo os mesmos quadrinhos e montamos bandas na mesma época. Tocamos juntos, participamos dos discos um do outro e sempre fomos muito próximos”, explica.
Além disso, eles lançaram a sua primeira canção em inglês, The Rebel Sound, como parte de uma edição especial da já tradicional coletânea Oi! This is streetpunk!, dos selos americanos Pirates Press Records e LSM Vinyl. Os brasileiros foram a única banda participante da América Latina – e, segundo Henrike, se inspiraram na sua banda favorita. “Os Forgotten Rebels nunca tiveram o reconhecimento merecido. São pioneiros do punk no Canadá, estão na ativa desde 1977. Não estão no Hall da Fama do Rock ‘n’ Roll, mas foram os responsáveis por me fazer querer ter uma banda punk quando era moleque. Já estava na hora de fazer uma letra que mostrasse a importância deles na minha vida”, explica.
Antes da homenagem, o Bling Pigs já tinha gravado versões dos canadenses, o que inclusive rendeu um belo elogio do vocalista Mickey DeSadist, durante o documentário do norte-americano Douglas Crawford, The Punks are Alright: “Cara, eles tocam melhor que a gente”.
E 2021 ainda começou com testamento…
Não, não, calma, o Armada não acabou. Na real, os planos pro disco novo continuam. Mas este período de quarentena serviu para que os caras lançassem aquele que é considerado o último testamento do Blind Pigs. Trata-se de Lights Out, gravado entre 2013 e 2015, antes da banda anunciar o seu fim em 2016, compila o espólio derradeiro de uma das referências do punk nacional.
A produção ficou a cargo de Átila Ardanuy – para os mais atentos, irmão de Edu Ardanuy, ex-guitarrista do Dr.Sin. “Eu gosto mesmo é de escrever em português, me expresso melhor na minha língua nativa, mas os discos do Blind Pigs estavam saindo no exterior, então a banda achou que seria válido escrever algumas em inglês”, conta Henrike.
Além de três composições próprias, o álbum traz cinco covers: Real Enemy (The Business), Misguided Memories (The Freeze), New Generation (Zero Boys), God Damn Job (The Replacements) e a faixa-título Lights Out (Angry Samoans). “Todas as bandas que gravamos foram bandas cruciais para nossa formação musical. Era o que a gente escutava quando montamos o Blind Pigs”, diz.
Isso significa, portanto, que o Blind Pigs tem chances de voltar à ativa? “Hoje eu digo que não. Eu, o Mauro, o Galindo e o Arnaldo estamos felizes com a Armada. Sei que o Gordo está feliz também com O Preço, mas é aquela coisa, ‘nunca diga nunca’”.