O Evangelho Segundo Carlos Zéfiro
Batemos um papo com Gonçalo Junior, jornalista responsável pela recém-lançada biografia do autor dos quadrinhos eróticos batizados de “catecismos”, que crava: “nosso Crumb duas décadas antes”
Por THIAGO CARDIM
(originalmente publicado no JUDAO.COM.BR)
Pra muita gente hoje na faixa dos 30 e poucos anos, o primeiro contato direto com a obra de um certo Carlos Zéfiro foi mesmo no encarte de Barulhinho Bom, de 1996, talvez o mais famoso álbum da discografia de Marisa Monte. Mas a própria cantora foi impactada, isso sim, pelo trabalho original de Zéfiro, um autor de revistas em quadrinhos totalmente underground e que mostravam tramas de sexo explícito em uma época de total repressão sexual, ali entre as décadas de 1950 e 1970.
“Não lembro como chegou a mim, mas vi quando ainda era garota, devia ter uns 15 anos”, afirmou ela, em entrevista pra Folha de S.Paulo, na época de lançamento do disco. As revistinhas pornográficas, batizadas de catecismos, foram obra de um insuspeito funcionário público de nome Alcides Caminha. Trabalhando no setor de imigração do Ministério do Trabalho, Alcides fazia questão de manter sua outra identidade em segredo de praticamente todo mundo, inclusive da família. Autodidata, era a partir de sua casinha em Anchieta, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, que escrevia e desenhava os gibis que tinham de 24 a 32 páginas, todas em preto e branco.
Os cerca de 500 catecismos que Zéfiro produziu (com títulos pitorescos como Aventuras de João Cavalo, A Fogosa, Cobra Criada e A Filha da Minha Amante), e que no fim chegaram a ter tiragens de surpreendentes 30.000 exemplares, eram distribuídos nas bancas quase como um segredo daqueles bem guardados. Vendidos às escondidas primeiro no Rio de Janeiro e depois, obviamente, se espalhando por grande parte do Brasil, graças ao sucesso e à pirataria. No fim, em seu ápice, como os gibis eram impressos sem fotolito nas mais diferentes gráficas em muitos estados, para despistar as investigações, era natural que surgissem dezenas de imitadores. Zéfiro acabou se tornando uma multidão de Zéfiros. Mas apenas um era o verdadeiro.
De qualquer maneira, os catecismos eram praticamente o único contato com o sexo que tinham os adolescentes da época, obrigados a lutar contra a verdadeira muralha de informação que lhes impunham educadores, líderes religiosos e, óbvio, as entidades conservadoras da época da ditadura militar — que o caçou implacavelmente mas nunca conseguiu descobrir seu alter-ego até 1991, quando enfim topou rasgar a fantasia num papo com Juca Kfouri, na época editor da revista Playboy brasileira.
“Eu queria, mais uma vez, explorar e denunciar a censura no Brasil”, afirma o jornalista Gonçalo Junior, que depois de biografar nomes como Assis Valente, Rubem Alves e o cantor Evaldo Braga, resolveu contar a história de Carlos Zéfiro no livro O Deus da Sacanagem. Estudioso especializado em quadrinhos, ele também é autor do seminal A Guerra dos Gibis, obra indispensável publicada em 2004 sobre a formação do mercado editorial brasileiro e a censura nos quadrinhos. “Todos os meus livros sobre quadrinhos tratam do tema censura. Por isso, sempre esbarrei no nome de Zéfiro como um personagem nesse universo de repressão”, explica.
No caso de Carlos Zéfiro, portanto, ele relembra que a censura é ainda mais de caráter moral. “Quando ele se tornou conhecido na década de 1950, vivíamos numa democracia, mas a influência das igrejas no sentido de reprimir o sexo era intensa. Depois, veio a ditadura e a censura se tornou política também, porque se dizia que a pornografia era uma arma usada pelos comunistas para desestruturar a família e cooptar os jovens”.
Ao longo das 384 páginas de O Deus da Sacanagem, Gonçalo exibe uma meticulosa pesquisa como resultado de entrevistas com dezenas de pessoas, inclusive familiares do artista, narrando inclusive uma infância sofrida e uma adolescência cheia de incertezas. Alcides tentou o futebol. Também tentou a música — inclusive, vejam vocês, compôs sambas ao lado de Nelson Cavaquinho, como Notícia e o já lendário A Flor e o Espinho, regravado por gente do calibre de Elizeth Cardoso, Beth Carvalho, Paulinho Moska e Roberta Sá. Mas foi nos traços que ele se consagrou para complementar a renda em casa, ainda que nem sua esposa, Dona Serat, ou qualquer um de seus cinco filhos tivesse pista de onde vinha a grana que começava a ganhar.
Com um nome artístico tirado de um autor mexicano de fotonovelas, lá foi ele se tornar o quadrinista independente por natureza, já que fazia tudo sozinho, na cara e na coragem, chegando a produzir cerca de três exemplares diferentes por semana. “Independente e subversivo. Vivia sob o risco constante de ser descoberto e preso e nunca recuou. Fazia críticas demolidoras à hipocrisia da classe média e das religiões, principalmente a Católica. Totalmente underground. Nosso [Robert] Crumb duas décadas antes”, afirma Gonçalo.
Depois de sua revelação, confidenciou que parte das aventuras sexuais retratadas no livro tinham sido ou presenciadas em seus tempos de boemia ou vividas por ele mesmo, falando portanto com orgulho das puladas de cerca, reflexo de uma sociedade ainda mais machista do que a de hoje (“sempre viajei muito a trabalho e, como bom marinheiro, vivia uma aventura em cada porto”, afirmou num papo com Jô Soares).
Mas, pelo outro lado, é importante ressaltar que existia uma considerável dose de respeito à figura feminina em suas tramas — mulher alguma era forçada a nada, como se pode ver em ~certos gibis publicados nos dias de hoje. A lição que Zéfiro queria dar aos moleques que liam seus quadrinhos, na real, é que uma parceira deveria ser, antes de tudo, seduzida e conquistada. E que, na cama, o prazer dela é parte fundamental da equação.
“Zéfiro era um libertário. Ele tratava dos prazeres e desejos femininos e da homossexualidade como uma coisa absolutamente natural, sem juízo de valor, sem julgamentos”, revela o biógrafo. “Simplesmente suas mulheres tinham tesão e gozavam e, não raro, tinha domínio sobre o homem. Isso nos anos de 1950 e 1960 era uma ousadia sem tamanho”.
Além disso, o livro traz revelações também a respeito do outro Carlos Zéfiro, o desenhista baiano Eduardo Barbosa, que se anunciou como o verdadeiro Zéfiro em uma entrevista ao jornal A Notícia. Aquele foi o pontapé inicial para que Alcides, na época sofrendo de uma catarata, enfim resolvesse se abrir para o mundo. No final, se criou uma espécie de “competição” entre os dois — mas as provas que o carioca tinha em mãos foram contundentes. Eduardo acabou entrando para a histórias das HQs brasileiras como uma espécie de charlatão. Maaaaas… “Eu o tinha entrevistado em 1992 e reproduzo nosso conversa no livro. Vai deixar muita gente de queixo caído. Ele não era Zéfiro, mas desenhou, imprimiu e distribuiu muito material porque era amigo e uma espécie de sócio do verdadeiro, Alcides Caminha”.
Mas, nos dias de hoje, para ter o impacto que teve, o que Zéfiro precisaria escrever/desenhar? Ou, numa sociedade conservadora como a que estamos nos tornando, bastaria ele ser ele mesmo? Gonçalo reforça algo que bem sabemos: vivemos uma época perigosíssima de retrocesso moral, em que o sexo e a liberdade de se escolher a própria opção sexual têm sido tratados com intolerância. “O novo presidente, para choque de muitos, inclusive eu, foi eleito com esses temas na pauta. Tudo é muito incoerente e hipócrita, porque a internet é um paraíso fácil para o sexo sem censura. Zéfiro teria de ter outro nicho, pois seus quadrinhos toscos não conseguiriam competir com a pornografia dos filmes e das fotos em cores. Mas creio que ele teria espaço nas livrarias, pois sabia contar bem histórias”.
Aliás, esta habilidade como bom contador de histórias, acima de toda a questão sexual, é que teria sido fundamental não só para o legado da produção de quadrinhos no Brasil, mas também para a nossa cultura pop. “Seus quadrinhos educaram duas gerações de homens, ensinaram eles como abordar as mulheres, como tratá-las na cama, como lhes dar prazer. Seus quadrinhos hoje deveriam estar em álbuns de luxo nas livrarias, estampados em camisetas e canecas, pois são personalíssimos e absolutamente cults. Ou deveriam ser”.
Sobre a segunda parte, a gente bem que concorda. Mas sobre a primeira, bom, basta ler qualquer caixa de comentários num portal da vida para perceber que muito leitor do Zéfiro parece não ter entendido o recado direitinho…
De qualquer maneira, Gonçalo reitera que, nos dias de hoje, não existe um herdeiro direto da arte do autor. “Até a década de 1990, muitos quadrinistas iniciantes faziam quadrinhos de sexo para adquirir experiência e abrir mercado porque era a única coisa possível. Hoje, tudo mudou”, opina. “A internet virou uma ferramenta poderosa de promoção, principalmente as redes sociais, e as impressões de livros ficaram bem baratas. O artista pode lançar seus próprios álbuns”. De qualquer modo, ele faz questão de reforçar: “acho que Zéfiro precisa ser conhecido pelas novas gerações”.
Pois que seja a partir de agora. 😉