Um peru americano recheado de Brasil
Alerta, senhoras e senhores. Tudo Bem no Natal que Vem, o filme natalino de Leandro Hassum pro Netflix, funciona. De verdade. E emociona. MESMO.
Por SILAS CHOSEN
A minha esposa trouxe uns costumes lá do país dela, os Estados Unidos, que embora soem perfeitamente lógicos ainda são de estranhar porque “eu não estou acostumado”. Um deles é o costume de ver filmes de Natal quando chega Dezembro. Ela prefere ficar longe de qualquer coisa que não esteja afogado no “espírito natalino” durante o fim do ano.
Isso faz com que passemos todo ano pelos mesmos filmes, que vão de genuinamente excelentes, como A Felicidade Não se Compra, O Conto de Natal dos Muppets, Duro de Matar e Simplesmente Amor, aos que são dolorosos e cuja repetição não ajuda em nada, como Um Duende em Nova York, Uma História de Natal e Expresso Polar (este combinamos nunca mais ver).
Raramente um filme novo entra para a lista, e tempos atrás era quase impossível pensar num filme brasileiro que o fizesse. Então chegam as notícias de que Tudo Bem no Natal Que Vem, estrelando (checando anotação) Leandro Hassum estava (checando anotação) destruindo recordes de audiência na plataforma do Netflix (checando anotação) ao redor do mundo. Isso pedia uma investigação mais minuciosa.
Hassum interpreta Jorge, pai de família dedicado que, por ter nascido no mesmo dia em que Nosso Senhor Jesus Cristo, odeia o Natal. Crescendo sem nunca ter um aniversário normal, sua infelicidade infanto-juvenil se transforma numa rabugice adulta quando, ano a ano, é obrigado a presenciar a mesma festa de família, as mesmas piadas de tio, as mesmas brigas, os mesmo dramas. Por conta de um desses “acidentes domésticos”, é empurrado para o papel de Papai-Noel-No-Telhado. Telhado do qual cai, acordando… Exatamente um ano depois, no dia de Natal.
Aos poucos, descobre estar aprisionado no mesmo dia, pulando de ano em ano, somente lembrando dos eventos do dia de Natal. Quando chega 26 de Dezembro, o Natal é apagado de sua memória, e sua vida segue normalmente. Dessa forma, Jorge vai passando anos e anos, um dia de cada vez, mantendo sempre a mente que tinha há muito tempo atrás, e encontrando uma família cada vez mais distante, cada vez mais quebrada. Pra não falar de um Jorge cada vez mais diferente do que ele é, nos outros 364 dias do ano.
A proposta do filme é tão certeira que é estranho nunca ter aparecido em algum dos milhares de “clássicos natalinos norte-americanos” até hoje. Afinal, “protagonista que precisa aprender sobre o significado do Natal e por isso sofre algum contratempo sobrenatural” é uma descrição que cabe em tantos, tantos filmes. Mas o roteiro de Paulo Cursino, egresso de sucessos da comédia global como De Pernas Para o Ar e O Candidato Honesto (também com Hassum) encontra no mar de referências outros elementos mais interessantes.
Existe uma ponta do horror existencial do clássico O Feitiço do Tempo. Existe o peso tenebroso do tempo, da vida e das nossas escolhas que também está em Click. Existem elementos de viagem no tempo (e o filme não perde a oportunidade de lembrar de De Volta Para o Futuro com as notas clássicas da trilha sonora). Mas é numa espécie de O Médico e o Monstro carioca-bonachão que o filme realmente sai do comum.
Enquanto durante o dia de Natal Jorge ainda é o mesmo cara de anos atrás, durante os dias normais do ano Jorge se transforma, por falta de palavra melhor, num babaca completo. Se distancia dos filhos e da esposa, arranja uma amante, se vicia em dinheiro, muda de ideologia (a piada do “Eu votei nesse babaca?” é uma catástrofe de tão certeira). Isso traz uma camada nova à noção de “crescimento do personagem”, porque, afinal, o personagem está descobrindo, junto com o público, quem ele realmente é de um ponto de vista externo, podendo ele mesmo fazer um exercício cósmico-cômico de autoanálise numa outra pessoa. O Jorge dos Natais ama sua esposa, o Jorge de Durante o Ano prefere esbanjar grana com uma secretária.
Hassum domina praticamente todas as cenas do filme com trejeitos, improvisos e uma energia própria de um filme-veículo, mas ele não deixa de lado a sinceridade necessária ao personagem, na hora de entender que quem destruiu sua vida foi ele próprio. O resto do elenco vai se encaixando nos estereótipos, em especial a família estendida de Jorge. Elisa Pinheiro, que interpreta a esposa de Jorge, consegue ser o epicentro de sanidade no meio do furacão de comédia do filme. É ela quem aceita como normal a condição mágica do marido, e é ela que representa com mais firmeza a descida do marido numa direção dolorosa para todos. Em geral, só mesmo Danielle Winits, como a amante de Jorge, ainda recupera um estilo de entrega cômica muito ancorada no “padrão Globo de qualidade”. Hassum, por exemplo, se distancia disso e tira suas referências de coisas diferentes (e acertadas, dada a abrangência do lançamento do filme), como o Jim Carrey dos anos 90.
Uma parte da crítica enxerga como, no mínimo, decepcionante, quando filmes sentam-se confortavelmente no mesmo tom, e de lá não saem. Algumas das mais amadas obras do cinema recente são filmes que não conseguem se expressar fora da mesma sisudez e “seriedade”. As comédias “com uma lição de moral”, tradicionalmente, conseguem ser muito hábeis em transitar por diversas áreas emocionais (vide Click. Meu Deus, vide O Feitiço do Tempo), e Tudo Bem no Natal Que Vem não faz diferente. Há uma surpresa no filme envolvendo a filha de Jorge que desmonta qualquer espectador engajado, e aí o terror da situação de Jorge se faz real numa cena emotiva e muito efetiva.
A estrutura e a forma são completamente de enlatados americanos. É um filme criado para o planeta inteiro ver através do streaming. Mas o conteúdo é tão cheio de clichês brasileiros, sendo usados de maneira inteligente exatamente como isso – os clichês que são – que o filme traz uma satisfação extra.
Não só é uma surpresa incrível de que, no final de um ano que foi terrível e doloroso para a maioria das pessoas, encontramos algo familiar, engraçado, despreocupado e com algum conteúdo lá dentro. Alguém que finalmente consegue defender o valor da “família brasileira” de uma maneira positiva. Mas depois de décadas vendo esses “filmes família” sofrerem para traduzir aquela pequena sacanagem linguística que não funciona de maneira alguma em português, é muito gratificante ver que o mundo todo agora vai precisar ralar pra entender a maldita piada do pavê.