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KAOS: uma série deliciosa que o Netflix já cancelou

Apostando numa releitura ousada da mitologia grega, mesclando drama, humor ácido e cultura pop, essa série é dos DEUSES – por que não podemos gostar de nada legal?

Por GABRIELA FRANCO

Kaos (palavra grega para “desordem”) estreou no final de agosto na Netflix, de maneira relativamente discreta, sem chamar muita atenção. Mas o hype foi ganhando corpo, ganhando forma nas redes sociais, e logo a atração ficaria entre as 10 mais assistidas da plataforma durante quatro semanas.

Segundo consta, os preparativos para a segunda temporada já estavam em andamento e o criador, Charlie Covell, conhecido por seu trabalho na direção da série The End of the F**ing World*, tinha planos de amarrar tudo e fechar a história em até três temporadas.

Mas o facão do Netflix foi mais ágil do que ele – e, esta semana, Kaos foi dada como definitivamente cancelada com apenas uma temporada e uma série de pontas soltas ao final de seus meros oito episódios. “É claro que estou arrasado por não fazer mais Kaos, mas não quero que essa notícia ofusque o que fizemos”, disse o criador, em comunicado oficial nas redes sociais da produtora da série.

“Tenho muita sorte de ter trabalhado com um elenco e uma equipe tão excepcionalmente talentosos e estou extremamente orgulhoso da nossa série”, completou, agradecendo seu time. “Obrigado a todos os envolvidos: foi um esforço hercúleo e um grande privilégio trabalhar com todos vocês”.

Enquanto a gente fica aqui se questionando o quanto estes métodos do Netflix (que basicamente considera um fracasso qualquer série que as pessoas não maratona loucamente logo nos primeiros dias de estreia) fazem de fato sentido, vale muito dizer: assistam Kaos enquanto podem. 😀

Let the Kaos begins!!!!!

Kaos brinca com diversas histórias e mitos clássicos gregos, colocando deuses e criaturas mitológicas em situações inesperadas e, quem diria, profundamente humanas, trazendo a mitologia não apenas para os dias de hoje, mas também para uma Grécia moderna, atual e única, na qual as pessoas rezam para os deuses do Olimpo, sem qualquer sinal de Jesus e sua turma do barulho. 

Na trama, temos obviamente Zeus, vivido pelo talentosíssimo Jeff Goldblum, retratado com acuidade exemplar: um cara de meia-idade, frio, cruel, egocêntrico e agora um paranoico, pois começa a temer a perda de seu reinado após não conseguir compreender muito bem uma profecia que parece ameaçadora.

Já seu irmão, Hades, interpretado por David Thewlis, aparece governando o submundo de maneira amarga e ressentida, como um prêmio de consolação ou um cargo menos glamouroso entre os deuses, enquanto Poseidon (Cliff Curtis) é uma versão latin lover do deus dos mares, mais preocupado com suas performances sexuais do que com seus domínios. Não podemos deixar de lado a poderosíssima Hera (Janet McTeer) que não parece tão ciumenta quanto sua versão mitológica, mas continua sendo retratada como ardilosa e manipuladora, uma perfeita vilã de novela das nove.

Por último, porém não menos importante, temos o pródigo deus do vinho e do teatro, Dionísio, interpretado por Nabhaan Rizwan. Nesta releitura mitológica, o deus dos prazeres e da boa vida assume uma nova faceta, muito mais imatura e insegura. Ele aparece como sendo um filho em busca da aprovação de seu pai, Zeus, e ambiciona assumir mais responsabilidades e ser finalmente considerado “um deus sério”.

No entanto, essa sua busca por poder e reconhecimento acaba sendo bem atrapalhada e coloca em xeque todo o equilíbrio entre deuses e homens.

E por falar em mortais, na Terra temos diversas tramas paralelas ao imbróglio que se desenvolve no Olimpo. Orfeu (Aurélien Gaya) é um rockstar que luta para resgatar sua amada Eurídice, ou Riddy (Aurora Perrineau), uma mulher que, apesar de viver em meio ao luxo e à fama, enfrenta profundas inseguranças sobre seu valor e seu papel no relacionamento. Eurídice morre, desce ao submundo e Orpheus será o primeiro humano a descer vivo ao reino de Hades…e muita água vai rolar nesse Lete por conta disso.

Não espere exatidão dos mitos!

Kaos leva seu título a sério e mistura referências pop e mitos gregos, portanto, não espere que os personagens cumpram exatamente seus destinos mitológicos. Se trata de uma reinterpretação e uma releitura de todas essas histórias, o que acaba resultando em algo delicioso e com muito mais chance de conquistar os mais jovens, por exemplo.

Mas é impossível deixar de notar que alguns seres ficaram melhores que os originais, mesmo sendo completamente diferentes de como são descritos nos mitos, como as Moiras, por exemplo (as deusas do destino, que tecem os fios de nossas vidas) – três mulheres (uma delas trans) que habitam um cabaré de beira de estrada.

Também são muito interessantes as Harpias, três motoqueiras justiceiras que perseguem quem está em falta com os deuses – uma referência ao Motoqueiro Fantasma?

Ainda temos Cassandra, a terrível profeta das desgraças cuja maldição era ser desacreditada por todos, a maravilhosa Medusa e o incrível personagem de Caeneus,(Caneus) interpretado pelo ator Misia Butler.

Caeneus tem uma história que se conecta à mitologia grega, onde originalmente era conhecido como Caenis. Segundo a mitologia, Caenis foi transformada em homem por Poseidon, e essa transição é explorada na série, onde sua identidade de gênero é fundamental para seu arco narrativo, mas não define completamente quem ele é. Ou seja, ainda temos muita representatividade LGBTQIAP+! 

Tudo isso narrado magistralmente por Prometeu, interpretado por Stephen Dillane, conhecido por seu papel como Stannis Baratheon em Game of Thrones. Prometeu é uma figura central que se opõe a Zeus, e sua relação com a humanidade e os deuses é fundamental para o desenrolar da trama. Não à toa, na mitologia ele é o responsável por “roubar o fogo” e dar como presente à humanidade, simbolizando o desejo humano por conhecimento e progresso e independência dos mitos e deuses.

Com personagens divinos e humanos interligados por intrigas e dilemas existenciais, a série traz uma visão provocante e contemporânea dos mitos. Tudo isso conduzido por uma trilha sonora cheia de sucessos do rock e pop. 

Uma curiosidade interessante é que Jeff Goldblum substituiu Hugh Grant no papel de Zeus pouco antes das filmagens começarem, o que gerou grande expectativa sobre sua abordagem do personagem. Digamos que o eterno Doutor Ian Malcolm agarrou a chance com unhas e dentes e mostrou a que veio. 

Visualmente vibrante, Kaos também trata de temas atuais como a decadência de instituições, da religião e as crises políticas, refletindo a instabilidade do mundo contemporâneo.

Essa combinação de mitologia e crítica social faz de Kaos uma série original, bem-humorada e atraente para quem aprecia tanto histórias clássicas quanto para quem uma narrativa inovadora e pode despertar aí um interesse por conhecer de fato a mitologia grega – que é fascinante e traz grandes reflexões sobre comportamentos e psiquê humanos. 

Vale a pena dar uma chance, ainda que o Netflix não tenha dado mais uma…

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