Nada Ortodoxa: O machismo brutal do judaísmo ultra-ortodoxo
A série, que conta com equipe de produção e direção de mulheres, mostra a história de uma jovem judia que foge de uma comunidade ultraconservadora nos EUA.
Por GABRIELA FRANCO
(publicado originalmente no Minas Nerds)
Nada Ortodoxa (Unorthodox), série de 4 capítulos que estreou dia 26 de março na Netflix, é baseada no livro Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots (Nada Ortodoxa: A rejeição escandalosa de minhas raízes ortodoxas, ainda sem tradução em português), que conta a história real de Deborah Feldman, lançado em 2012 pela Simon & Shuster — é, assim como a vida e a obra que a inspirou, incrivelmente corajosa.
Não só pelo fato de ser uma mulher a finalmente expor o lado sombrio e machista que a vertente ultraortodoxa do judaísmo carrega, o que é crucial e significativo, mas por diversos outros fatores: a começar pela série ser 100% produzida por mulheres; de ser uma produção alemã e filmada em Berlim, apesar de retratar um bairro judaico típico do Brooklyn, em NY; do fato de ser falada em alemão, iídiche e inglês; e o mais importante: o fato de abordar um tópico pouquíssimo explorado no show business, que é o lado obscuro da religião dos homens que COMANDAM O SHOW BUSINESS, ainda que muitos deles não sejam religiosos. É sempre delicado.
É um vespeiro no qual ninguém nunca quis mexer por diversas razões que não vêm ao caso agora mas, por isso mesmo, é de uma audácia afrontosa que merece a atenção do mundo inteiro. Soa como o rompimento de um grande silêncio, a quebra de um pacto milenar que até eu mesma, de origem judaica e conhecedora pessoal de muitos acontecimentos semelhantes aos abordados pela série, não tive a bravura de apontar.
Tudo isso é contado através da vida de Esther, uma jovem de 19 anos nascida e criada no subdistrito de Williamsburg, Brooklyn, Nova York, em meio a uma comunidade judaica ultraconservadora chamada Satmar. Os satmar são judeus originários da cidade homônima na Hungria, em sua grande maioria descendentes de sobreviventes do Holocausto que se refugiaram em NY no pós-guerra. Décadas após o fim dos guetos, a maioria dos judeus vive hoje adaptada ao mundo moderno. Não é o caso dos ortodoxos que preferem manter-se isolados de tudo com a justificativa de que, sempre que tentaram se “misturar” a outros povos, foram castigados por Deus.
Fazendo um paralelo, são quase como os Amish, mas vivendo no meio da Grande Maçã. Os satmar também são uma das poucas comunidades que têm o iídiche como língua principal, e por isso, talvez, possam levar o crédito por mantê-lo vivo nos dias de hoje.
A narrativa começa com o close em um arame solto de um poste, o que parece um detalhe insignificante. O plano então vai se abrindo até mostrar a esquina de uma rua típica do Brooklyn e a frente de um prédio onde diversas mulheres ortodoxas estão reunidas com suas numerosas proles em carrinhos de bebês (ter filhos é um mandamento religioso para a mulher judia-ortodoxa, já que foram incumbidas de povoar o mundo de judeus e compensar os mortos na guerra).
Esther parece querer sair correndo dali, leva algo nas mãos, mas as comadres logo avisam: impossível sair carregando algo, o ERUV está rompido.
A cena se passa em um shabbat (sábado), o dia sagrado dos judeus. Entre os ortodoxos existem regras e ritos que precisam ser observados com precisão todos os dias — e mais ainda no shabbat. Uma delas é a proibição de transportar, empurrar objetos ou fazer esforço físico em espaços públicos (dia de descanso, lembram-se?). Como a regra se tornou praticamente impossível de ser cumprida nos dias de hoje, os rabinos acharam por bem delimitar uma zona de “proteção” no qual esse esforço seria permitido. Para tanto, esticaram fios de arame em postes para delimitar tal espaço, o eruv. Que, neste caso, estava rompido. Portanto, ninguém poderia sair, pois estariam desprotegidos e descumprindo as regras.
Parece um detalhe fora de contexto e irrelevante para ser contado agora, mas é exatamente sobre isso que a série fala. O Eruv é praticamente um “campo de força” imaginário criado por rabinos para que a comunidade pudesse se mover no shabbat. Seu “poder” não existe de fato. É uma imposição sociorreligiosa para controlar a comunidade…e no final é isso que conduz toda a trama e a vida de Esther.
Ela é uma mulher – e só esse recorte já a classifica como minoria social. Uma mulher, inserida em uma comunidade ultrafundamentalista que acredita que o papel da mulher é o de parir e cuidar da família, exaltar e servir ao marido, que não pode trabalhar ou sequer estudar. Os gatilhos são muitos. Os tipos de violência, idem. Os costumes são completamente distintos dos nossos, mas a violência sofrida é a mesma.
Grande parte das cenas dos apenas 4 capítulos de 50 minutos cada em Nada Ortodoxa se passa dentro das casas, o que nos dá a sensação de isolamento e claustrofobia que a personagem sente. Salvo quando ela decide romper com tudo, então, simbolicamente, as sequências se tornam amplas, ensolaradas, passando a sensação de liberdade.
Ao longo dos episódios não vamos mergulhando apenas na visão obscurantista da comunidade como descobrindo detalhes preciosos da vida de Esther (a protagonista é vivida pela atriz israelense Shira Haas, arrebatadora no papel). Descobrimos detalhes sobre sua relação com sua avó, sobrevivente do Holocausto, sua mãe, tias e demais mulheres.
Por conta do histórico de sua família e por seu jeito questionador, Esty, como é chamada, gera comentários não muito amistosos sobre seu comportamento “chutzpah” (audacioso). As mulheres de sua família chegam à conclusão de que ela precisa se casar para ser “domada”. Assim, escolhem o noivo de uma família tradicional e eles se casam. Sim, as mulheres não têm direito de escolher seus maridos OU de não casar. Os casamentos são todos arranjados e obrigatórios.
Apesar da união já durar um ano, ela e seu marido ainda não haviam transado e eles se veem cada vez mais pressionados a consumar o ato para que ela engravide e, enfim, forme uma família. Esty não aguenta toda a pressão envolvida na instituição “casamento” e resolve fugir para Berlim e começar uma nova vida.
Os costumes, símbolos, ritos, termos, roupas, alimentos e todo modo de vida ortodoxo são bem distintos e confusos e eu posso inclusive fazer um glossário sobre a série depois, Do ponto de vista antropológico, é interessantíssima. Nada Ortodoxa fala bem pouco de religião, na real, mas fala sobre opressão e o direito UNIVERSAL que todos temos de exercer nossa voz, sermos reconhecidos como seres humanos relevantes e queridos em nossa comunidade, não apenas mais uma peça no jogo.
Nada Ortodoxa é, com todas as suas peculiaridades, sobre mulheres invisibilizadas e silenciadas e sobre a chance de recomeçar. E nisso, todas nós podemos nos reconhecer em Esty…