Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

As muitas questões sobre o ícone Silvio Santos

Toda a comoção pela partida de um dos mais importantes nomes da nossa cultura pop é super justificada. Assim como são os questionamentos – ao homem e ao mito. Faz parte.

Por THIAGO CARDIM

A gente aqui no Brasil tem uma tendência costumeira a uma síndrome babaca de vira-latas. Somos ávidos consumidores da cultura pop gringa, do Mickey, do Homem-Aranha, do Batman, do Michael Jackson, da Madonna, do Steven Spielberg, dos muitos Star Wars.
Mas tendemos a enxergar os nossos próprios ícones, nossos reais mitos, com certo desdém, como se fossem algo menores, talvez um tanto “bregas”. Só que a real é que eles construíram grande parte do que nós somos de verdade muito mais do que as criações de um Walt Disney ou Stan Lee. Isso obviamente explica tamanha comoção ao longo do último final de semana com a morte do apresentador Silvio Santos, aos 93 anos.

Com uma figura que se tornou absolutamente iconográfica, com uma voz e um conjunto de trejeitos que todo mundo (inclusive este que vos escreve) já tentou imitar alguma vez na vida, Silvio era a representação máxima do que se tornou esta instituição chamada TV aberta, para o bem e para o mal. Tal qual fez questão de deixar claro a própria Rede Globo numa edição especial do Globo Repórter exibida no sábado (17), o homem do baú se tornou um personagem maior do que o empresário, dono do SBT, e passou a estar vivo nas histórias que inspirou, no saudosismo que trazia às famílias das quais fez parte.

“Orgulhoso de sua intuição, Silvio Santos construiu uma das carreiras mais bem-sucedidas e ao mesmo tempo insólitas da história da televisão brasileira”, escreveu na semana passada, para a Folha de S.Paulo, o jornalista especializado em televisão Mauricio Stycer, autor da biografia do apresentador, intitulada “Topa tudo por dinheiro: as Muitas Faces do Empresário Silvio Santos“. No obituário, Stycer completa: “É difícil imaginar um SBT sem Silvio Santos —e isso muito por sua disposição ou, se preferir, culpa. Silvio foi a cara da empresa que construiu, cuja continuidade depende da capacidade de sua família de reinventá-la sem alterar o seu DNA”.

Ele não foi o único a exaltar Senor Abravanel, filho de imigrantes judeus de origem turca e grega. “Ele levava o público para o palco e se identificava com o que via ali. Ele tinha o requinte da comunicação para falar com o telespectador mais simples”, disse Patrícia Kogut ao G1. “Ele mudou a história da TV brasileira. Não tem e não terá substituto”, reforçou Cristina Padiglione, ao Splash. “Com consistência e criatividade em uma carreira longeva e extremamente bem sucedida, Silvio Santos foi capaz de ficar incrustado no imaginário popular de maneira indelével”, cravou o nosso querido Chico Barney, em sua coluna no Splash.

Fale cantando: cancelamento vem aí, lá lá lá lá lá lá

Tá bom, vamos lá, “cancelamento” é, de fato, uma palavra muito forte pro Seu Abravanel – até porque, sejamos honestos, quando é que um véio branco e cheio da grana foi de fato CANCELADO, perdendo contratos, anunciantes, dinheiro no bolso, depois de uma saraivada de críticas nas redes sociais? Eu já te respondo de imediato: NUNCA.

Mas vocês vão entender em que ponto eu quero chegar. Para tanto, é preciso esclarecer uma coisa aqui, antes de tudo.

Durante muitos anos, eu fui simplesmente FASCINADO pela figura quase caricata do Silvio Santos. Tanto pelo personagem que ele criou quanto pelo comunicador absolutamente genial por trás dele, que aprendeu a falar de maneira direta, reta e popular. Um sujeito que hoje, no universo da TV sufocada pelo sucesso dos streamings (com ressalvas, mas isso é outra discussão) e dos grandes canais do YouTube e suas estrelas conversando com nichos distintos, não pode ser mais replicado.

Silvio era, antes de qualquer coisa, um sujeito que controlava a narrativa sobre si mesmo. Durante décadas, tal qual o Coringa de Christopher Nolan, contava diferentes versões sobre sua própria história: ninguém sabia de fato a sua idade, escondeu seu primeiro casamento o tanto quanto conseguiu (muita gente se surpreendeu ao descobrir que o homem não era solteiro), plantou uma tal “doença fatal” que foi parar nas capas de revistas e jornais e depois foi desmentida, incentivou até onde conseguiu a trama de que a sua trajetória como camelô-mascate nas ruas do Rio de Janeiro significava o clássico discurso meritocrático de “comecei pobre e virei bilionário” (quando existem histórias de que ele mesmo teria buscado as banquinhas para se tornar independente financeiramente da família).

Isso porque eu nem vou me dignar a entrar nos meandros de como diabos ele adquiriu o seu simbiótico Baú da Felicidade e suas múltiplas histórias de origem. Um clássico.

Só que é impossível negar que, além do tino mercadológico que o fazia um comerciante implacável e impecável, ele não apenas fez história na TV brasileira como se tornou a própria história da TV brasileira. Mais do que apenas aquele homem do MÁ-OÊ que tem uma legião de imitadores famosos, do Marcelo Adnet ao Ceará, mais do que o tiozinho que cantava que a “pipa do vovô não sobe mais” ou que o doutor não se enganasse, porque seu coração é corintiano.

Foi Silvio Santos que construiu todo o conceito do domingo como o conhecemos na TV brasileira atualmente. Sempre ligado nas tendências do que estava rolando na programação televisiva gringa, ele também foi o responsável pela tropicalização dos programas de auditório por aqui – e todos, sem exceção, se inspiraram diretamente nele. Game shows como o Show do Milhão? Foi ele o responsável, por vezes comprando formatos, por vezes apenas copiando na maior cara de pau. A atual e crescente obsessão brasileira por reality shows? Também começou com eles, quando deu uma “rasteira” na Globo e estreou a Casa dos Artistas antes do primeiro BBB dar as caras.

Pô, cara, tamos falando do sujeito que trouxe o Chaves pro Brasil. Pensa no quão isso é importante (pra mim é, então opiniões distintas não serão válidas neste momento).

Eu adorava o Silvio. Mas, em certo momento, me bateu um clique. Um mesmo clique que, em certo momento, me bateu e me fez parar de ouvir Pantera, Iced Earth, Marilyn Manson. Porque estamos falando de arrombados. Que cometeram erros que, PRA MIM, não justificavam mais a minha audição, o meu carinho, a minha atenção. E volto a dizer que a decisão de ver ou não outro filme com Johnny Depp ou inspirado na obra de J.K. Rowling na sua vida é inteiramente SUA.

Porque, da mesma forma, seu Silvio era um homem REPLETO de questões. Muitas delas, gravíssimas.

Se curvou à ditadura brasileira para enfim conseguir o seu próprio canal de TV. Morrendo de medo de perder a concessão do SBT, bajulou e beijou a mão de políticos de todos os espectros, com aquela bizarrice chamada “A Semana do Presidente” – mas, vamos lá, nos últimos anos manifestou uma especial predileção por Bolsonaro e seu séquito (considerando até que seu genro se tornou ministro do coisa ruim), mesmo em meio a uma pandemia que matou milhares de pessoas do país enquanto este bando de desgraçados insistiam na tecla de ivermectina e afins.

Cagava e andava pro jornalismo no SBT, submetendo especialmente os programas de notícias (e, por consequência, as equipes de jornalistas) aos seus desmandos de colocar um programa no ar um dia, mudar de horário no outro e simplesmente cancelar no dia posterior. Tudo a seu bel prazer, a um telefonema de distância, apenas porque SIM. De Rachel Sheherazade a Dudu Camargo, ele se metia a colocar figuras “polêmicas” (apenas para dizer o mínimo) enquanto os grandes nomes da profissão eram tratados como coadjuvantes.

Especialmente entre os anos 1980 e 1990, o SBT se tornou o farol da baixaria que TAMBÉM acabou se tornando sinônimo de TV aberta por aqui, tudo sob a supervisão do patrão. Foi incontáveis vezes responsável por piadas machistas e racistas em rede nacional, além de ter “fetichizado” a pobreza de maneira reprovável – e embora alguns insistam que abrir o palco para travestis, mulheres trans e drag queens naquele momento da história possa ser considerado um feito histórico, a forma como tudo era conduzido ainda era CONSIDERAVELMENTE homofóbica, tanto no texto quanto ao tratar os artistas como integrantes de uma espécie de freak show.

Nos anos 2000, enquanto lutava para se desvincular do escândalo das fraudes financeiras do Banco Panamericano, que fazia parte do Grupo Silvio Santos, passou a ser cada vez mais questionado pelas bobagens que disse e continuava dizendo com recorrência. Passou a ser cobrado, em especial pelas redes sociais, e começou a dar alguns passos atrás, a assumir seus erros, a redirecionar seu discurso.

“Ah, ele era um homem que era reflexo de seu tempo”. Sim, era. E isso não faz com que as críticas sejam menos justas. Para ele, para você, para MIM. Pode guardar o paninho. 😉

Tudo isso pode e DEVE ser discutido. Não é porque Silvio Santos morreu que a gente tem que simplesmente ignorar os momentos vergonhosos e mesmo aqueles absolutamente escrotos de sua biografia. Poisé, não é porque morreu que vai virar santo. Certeza que você leu muito esta frase em posts nas redes sociais nos últimos dias. Você pode até ser da turma que ficou no veneno, mas isso não a faz menos verdadeira. Acostume-se.

Mas, da mesmíssima forma, fazer estas críticas justíssimas não apaga a sua importância e tampouco mancha a sua importância para a TV enquanto veículo. Muita gente tem histórias incríveis envolvendo o patrão. A nostalgia faz com que, muitas vezes, uma análise sobre o homem pareça um ataque direto ao legado. E nem sempre é – embora, mesmo quando é, também tá tudo bem. Porque mesmo ícones religiosos não estão isentos de críticas e discordâncias. Por qual razão Silvio Santos, tanto homem quanto mito, estaria? Revisar, repensar, reavaliar, não são pecados.

O nome disso é “vida”.

Falei um tanto sobre isso neste texto sobre o Chorão, do Charlie Brown Jr, aliás.

Me incomoda DEVERAS a sacralização de determinadas figuras – e Silvio Santos é uma delas. Muita gente dizia, com razão, que o país ia parar quando ele morresse. Tinha gente que simplesmente não acreditava que este dia chegaria. Mas chegou. E o país não parou. E ficou claro que nem todo mundo o enxergava no topo de um Olimpo divino, quase celestial, intocável e à prova de críticas. Ainda bem.

As lembranças que você, querido leitor, eventualmente tenha daqueles domingos no tapete da casa da sua avó, com aquele cheiro de achocolatado invadindo a sala enquanto rolava o Show de Calouros na TV, continuam intactas dentro da sua cabeça – concordando você ou não que o Silvio Santos é um arrombado (a decisão, repito, é SUA). Só que quanto antes a gente aprender de uma vez por todas a lidar com estas contradições, melhor vai ser pra todo mundo.

Uma era da nossa TV, da nossa indústria do entretenimento, da nossa cultura pop, se encerra com a partida de Senor Abravanel. Para o bem e para o mal. Isso mesmo. Eu não usei “OU” aqui. Porque é rigorosamente para o bem e TAMBÉM para o mal.

E que venha aquele filme esquisitíssimo com o Rodrigo Faro.

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Comments
  • Wes

    Post muito sensato.

    26 de agosto de 2024

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