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Ziraldo: Mata do Fundão é ponto de parada obrigatório

Claro que a gente tem a lembrança emocional do menino com a panela na cabeça, mas a obra máxima em gibi do finado quadrinista mineiro é outra, um ode político ao nosso folclore

Por THIAGO CARDIM

Geralmente, quando a gente fala no quadrinista, cartunista e caricaturista Ziraldo Alves Pinto, costuma pensar primeiro no Menino Maluquinho, sua obra máxima para o universo infantil, que atingiu diversas gerações de leitores, teve mais de 3 milhões de exemplares vendidos, disponível em 11 idiomas. Mas o que rola é que, duas décadas antes, o autor já tinha feito história nos quadrinhos nacionais com uma obra de vida curta mas com uma importância simbólica tamanha. Estamos falando d’A Turma do Pererê.

Criados originalmente em 1958, os personagens vieram oficialmente à tona de verdade no ano seguinte, na forma de cartuns nas páginas da revista semanal O Cruzeiro. Mas o sucesso fez com que Ziraldo topasse a empreitada, em outubro de 1960, de escrever e desenhar uma revista mensal para a mesma editora com a turma que vivia na fictícia Mata do Fundão. Com o nome de Pererê, o gibi já foi um marco não apenas por ser a primeira publicação de quadrinhos brasileira produzida por um único autor mas também por ser a primeira revista de personagens nacionais totalmente colorida.

Ao todo, foram 43 edições, publicadas até abril de 1964, com tiragem média de 120 mil exemplares. O gibi só passaria a ser chamado de fato sob o título que é lembrado hoje, A Turma do Pererê, quando a Editora Abril resolveu trazer a patota de volta em 1975. Mas a segunda série durou bem pouco: 10 edições depois, em 1976, eles encarariam um novo cancelamento. Junte a isso o fato de que, depois dos anos 1980, Ziraldo passou a se dedicar muito mais ao bem-sucedido Menino Maluquinho, e então Pererê e cia tiveram espaço apenas em reedições e afins em editoras como Salamandra e Globo, com algumas pouquíssimas histórias inéditas. E nem adiantou ganhar um musical live-action na Globo, em 1983, e depois uma série também com atores exibida entre 2002 e 2004 na TVE Brasil.

Mas a marca deixada por este título, originalmente inspirado na dinâmica do Sítio do Pica-Pau Amarelo, foi muito maior. Porque Ziraldo não queria falar APENAS com crianças. “A gente queria passar o recado, com um personagem nacionalista, com muita história, nossa resposta ao capitalista, contra o imperialismo”, explicou ele, em entrevista ao G1, para falar da mostra Pererê do Brasil que rolou na Caixa Cultural, em Brasília. Basicamente, em um cenário dominado pelos patos e ratos norte-americanos, ele foi buscar inspiração no folclore e na fauna brasileiras para povoar suas páginas.

A “mais brasileira das histórias em quadrinhos”, Pererê era, pro Ziraldo, um retrato típico dos anos 1960, para o bem (em meio à bossa nova, o cinema novo, poesia concreta e afins) e para o mal. “Comecei a fazer em 1960 e terminou justamente em abril de 1964”, diz. Se esta data não significa nada pra você, talvez a expressão “golpe militar” seguida da palavra “ditadura” possam ser bastante esclarecedoras. “O Pererê era muito nacionalista, tinha a coisa do socialismo, era contra o imperialismo. Quer dizer, essas eram as palavras de ordem da época, a gente estava procurando um caminho novo para o país, queria ver o Brasil andar com os próprios pés”, afirma.

A turma era formada pelo saci Pererê, o índio Tininim, a onça Galileu, o coelho Geraldinho, o jabuti Moacir, o macaco Alan e o tatu Pedro Vieira.

Nascido a partir de uma flor negra plantada pela Mãe Docelina, o Saci não é exatamente como aquele que a gente conhece das lendas. Apesar de brincalhão e travesso, o garoto está longe de ser maldoso, de passar sua vida pregando peças. Na real, apesar do olhar aguçado para a realidade ao seu redor, ele é bastante doce e com uma visão quase inocente sobre a preservação da natureza, por exemplo. “O nosso trabalho dava esperança, a gente pensava em coisas como a reforma agrária, por exemplo”, opina Ziraldo. Deu pra sacar onde esta HQ incomodava os generais (além do fato de que o editor, segundo Ziraldo, ter passado a apoiar o novo ~regime)? 😉

Retratando o ambiente rural brasileiro, temos por exemplo o índio Tininim, egresso da tribo dos Parakatoka, tímido, um tanto hipocondríaco, namorado da indiazinha civilizada Tuiuiú. A própria relação do casal, assim como a do Pererê e da dengosa Boneca de Pixe (filha de um rico fazendeiro da região), já tem uma dinâmica delicada entre dois mundos radicalmente diferentes. Assim como as eternas caçadas da atrapalhada dupla Compadre Tonico e o Seu Neném em busca da onça Galileu, um retrato da ambição do homem x os recursos naturais. Apesar de todo o humor, de uma doçura que falava com o público mais jovem, A Turma do Pererê tinha uma postura crítica que, se hoje parece mais comum, era absolutamente pioneira e revolucionária pra época.

Tinha papos sobre racismo, tinha disputas e diferenças entre classes sociais, tinha discussão sobre desperdício de água, tinha consumo consciente, tinha futebol, tinha samba.

Em resumo, tinha Brasil pra caramba.



Na Amazon, tem alguns títulos do Pererê e cia. Basta acessar este link e, se você comprar, ainda ajuda a turma aqui do Gibizilla.