Um retorno aos gibis feito em Bando
Usando e abusando da metalinguagem, Hermes Ursini incorpora cinco diferentes artistas ficcionais para explorar técnicas e gêneros em uma história sobre o fazer artístico em pleno capitalismo
Por THIAGO CARDIM
Fã de gibis, tal qual eu e você que está lendo este texto agora, o desenhista, redator e diretor de arte Hermes Ursini se enveredava pelo mundo da publicidade quando decidiu que queria um respiro para falar por si mesmo, por meio da arte, e resolveu se meter a fazer quadrinhos.
Mas a gente sabe como isso dá trabalho. E, diferente do restante do tal do outro trabalho, aquele tradicional, gibi dá pouco dinheiro e muita dor de cabeça. Mas, depois de construir uma trajetória na ilustração, no audiovisual e na propaganda, tendo publicado em todas as revistas legais do Brasil e em muitos periódicos da França – a lista é longa: Playboy, Oui, Veja, Vogue, jornais CGT Press, La Vie Française, Jornal da Tarde (Estado de São Paulo), jornal EX – ele foi teimoso e resolveu voltar aos gibis.
Porque a gente SEMPRE volta.
O fã de gibis falou mais alto e Hermes retornou pra fazer arte falando… de arte. E em um mundo cada vez mais automatizado, em meio a tanta discussão envolvendo inteligências artificiais, ele resolveu se aventurar por entre diferentes traços, técnicas e gêneros literários para refletir sobre as implicações do fazer artístico em uma sociedade capitalista. Nascia então uma obra experimental chamada Bando. A melhor explicação sobre ela, claro, vem do próprio Hermes, em entrevista exclusiva ao Gibizilla.
“Bando é uma graphic novel, um formato que parece com o romance, um produto de culturas que produzem e consomem textos como atividade do pensamento e da consciência”, contextualiza ele. “O que somos hoje talvez seja, em grande parte, produto do ‘espaço interior’ que vimos aparecer em Shakespeare com seus personagens autorreflexivos, com muita ruminação. Ruminamos, enfim (o que nem é uma capacidade exclusiva dos humanos, já que a dividimos com os bovinos e caprinos). Bando é uma ruminação sobre um jeito de criar um sentido, um caminho”.
Tá aí uma ótima sinopse. 😉
Quando 1 se multiplica por 5
Na história, temos um certo Onetti, que é roteirista (de chapéu e sobretudo) e encontra, no fundo de uma gaveta, um monte de pranchas de HQ sem nenhuma informação sobre os autores. E ele se pergunta o que fazer com aquilo. Os céus (ou infernos) o ajudam: Dionnet e Moebius (Gir) em pessoa voltam à sua memória. Uma frase dita pelo primeiro num almoço anos antes se torna subitamente compreensível e abre a porta: “Vocês brasileiros deveriam olhar mais para o Oriente”.
Dionnet e Moebius/Gir são fundadores da Metal Hulant, um oráculo da HQ em Paris e no mundo. Mas em São Paulo, Oriente significa o bairro da Liberdade. E lá vive o editor japonês do amigo de Onetti, Shiro, que o conduz como um guia pela aventura de encontrar seus autores internos, criando seus mundos, suas pequenas biografias e apresentando seus estilos.
“Bando como uma pessoa quando pega pedaços de trapos e retalhos que foi usando pela vida e constrói uma história”, diz ele. O autor revela ainda que a chave do que é Bando está no começo, não no fim, com duas frases. A primeira é de Arnaldo Baptista, criador dos Mutantes: “Inclusive ficamos todos juntos/ Reunidos numa pessoa só” – que está em sua música “Você está pensando que eu sou Loki?”, um exorcismo da esquizofrenia. A segunda frase é de Scott Fitzgerald: “Escritores não são exatamente pessoas. Se forem bons, eles serão um monte de pessoas tentando se transformar em uma pessoa só”.
Além de Onetti (“um personagem que veio me visitar quando eu tinha uns 16 anos, mas foi só aos 45 anos que descobri seu nome, ao ler os textos de J. C. Onetti, um escritor uruguaio imperdível”), Bando traz a visão artísticos de outros QUATRO autores, todos se manifestando sob a pena de Hermes. E ele apresenta cada um deles:
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Felipe Layer é inspirado nos artistas detalhistas e super convencidos (ou super inseguros) de seu talento. Na arte digital, isso leva você a trabalhar com uma infinidade de layers e mais layers (na pintura a óleo é a mesma coisa). Inspirei-me também em Orson Welles, que no fim da sua vida dizia que podia criar mundos infinitos, escrever, dirigir, atuar, mas sabia que o produtor só queria que ele caprichasse nas frases da locução que gravava para um comercial de uísque. Welles era um locutor monstruoso. E cobrava fortunas.
Darta é um desenhista meu amigo que, quando menino, foi percebido por uma tia que viu o que ele era, realmente. Ela cuidou dele, comprando-lhe livros de arte e falando sobre Dumas e os Três Mosqueteiros, com ênfase no quarto mosqueteiro, que entrou sem ser convidado, D’artagnan.
Bob Bear é uma lembrança que sempre tive comigo de Talo, um amigo de infância, cinco anos mais velho, com quem desenhava com pedaços de gesso, no asfalto das ruas. Acontece que ele era genial, desenhava como Michelangelo, em blocos, não com a linha. E, ao lado, eu copiava o que conseguia. Cheguei próximo ao estágio dele, mas só porque Talo teve uma morte precoce, aos 15 anos.
Sherman é uma mistura de vários artistas visuais que conheço bem, intelectuais e revoltados, pensando muito no passado e na merda que é o tempo em que vivem. Acho que eles inventam um passado com tons dourados porque, temos que concordar, está difícil ser otimista com relação ao nosso futuro.
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Afinal, por que tanto tempo fora dos gibis?
Para o Hermes, a resposta fácil seria “demorei para fazer esse álbum porque só agora é que minha querida editora ficou uma profissional poderosa e conseguiu um PROAC para me publicar em sua Tróia Editora”.
Mas é algo além disso. Porque o correto de se perguntar seria “Por que tanto tempo sem publicar?”. Afinal, mesmo mergulhado em campanhas e filmes de propaganda por muitos anos, ele confessa que sempre encontrou noites e finais de semana para continuar desenhando e pintando. “Fazer HQ é uma batalha insana pela quantidade de trabalho que é necessário em cada página. E construir um álbum, achar dinheiro e editor para publicar é osso duro!”.
Só que, da mesma forma que os cinco autores diferentes que incorpora em Bando, Hermes também rumina. “Em minhas ruminações, me pergunto onde eu estava que não fiz Bando antes? No entanto, é o que me pergunto, quando revejo meus (muitos) filhos juntos numa mesa. Onde eu estava que não vi aquela menininha se transformar nesse mulherão e fazer esse menino que é meu neto?”. E ele completa com ninguém menos do que Hipócrates: “A arte é longa, a vida é curta”.
No fim, Bando é um exercício autobiográfico, de alguma forma. Porque, como o agora retomado quadrinista explica, os humores mudam, mas o fato que permanece é: difícil separar o criador, a criação e a obra, que é produto dos dois. “Por outro lado, me parece lógico que todo autor seja apaixonado por todas as pessoas, mesmo as mais detestáveis. Isso é que constitui a riqueza de um autor: cada pessoa é um personagem”, filosofa. “E ele rouba todas. Até as suas amigas, até ele mesmo. Não fique dando sopa na frente de um escritor”.
Mas, cá entre nós, quando você tem a chance de ler Bando, claramente sente que aquele é TAMBÉM um belo dum exorcismo artístico. “Cada criação é sublimação e purgação de muitos pedaços da sua vida. Mas esse sentido você descobre (se descobrir) quando alguém te faz essa pergunta e você pensa a respeito”. Tamos aqui pra isso, pra fazer ESTE tipo de pergunta. “Para criar, existe uma boa disciplina que é você só fazer aquilo que bate em sua emoção. Bateu, levou. Então é certo que tudo o que você cria, é uma coisa que tem estado lá dentro, pulsando como um pequeno demônio. Arte é exorcizar. Aquelas coisas estão te atormentando um pouco, às vezes há anos”, reflete Hermes. “E depois que sai, quando você publica o livro, lança o filme ou faz o show, aí você vê que alguma coisa saiu da sua vida e está andando pelo mundo. E fica um buraco dentro do seu peito. Até ser preenchido por outro, digamos, demônio”.
Pois que a gente, tanto nós quanto você, continuemos insistindo nestes muitos criadouros de demônios.
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