Marighella #LIVRE e a história do inimigo público que virou GIBI
Conversamos com o roteirista Rogério Faria sobre o gibi financiado com sucesso no Catarse, arrecadando mais de seis vezes o valor inicial para contar um recorte histórico sobre um personagem mais controverso do que discutido
Por THIAGO CARDIM
(publicado originalmente no JUDÃO.COM.BR)
Em novembro do ano passado, quando se comemoravamm 50 anos da morte de Carlos Marighella, o filme a respeito da vida do político, escritor e guerrilheiro, aquele dirigido por Wagner Moura e estrelado pelo Seu Jorge, teve seu lançamento nas telonas adiado. Até chegou a ser anunciado que a produção vai, como é costume em cinebiografias coproduzidas pela Globo Filmes, virar uma minissérie em quatro episódios em 2020 mas, de acordo com a produção do filme, somente depois que o filme chegar aos cinemas — a nova data, prevista para maio, acabou sendo novamente adiada por conta do coronavírus.
Então, para celebrar o aniversário de uma figura histórica que merece ser debatida além do jargão comum, a gente vai ter que pular para uma outra mídia: os quadrinhos. Pois foi justamente na semana em que o filme deveria ter estreado que se encerrou oficialmente o financiamento coletivo da obra Marighella #LIVRE — uma campanha que ambicionava meros R$ 2.000 como meta e acabou arrecadando mais do que seis vezes este valor, quase R$ 13.000. Um baita feito para uma revista que desde o PRIMEIRO dia de campanha já encarou uma verdadeira onda de ódio. Hoje, o gibi já está disponível via Editora Draco.
Segundo o roteirista Rogério Faria, a treta se deu quando eles compartilharam o projeto nos grupos de quadrinhos do Facebook. “Em poucas horas eram centenas de interações e comentários, na sua maioria, tentativas de intimidação. Pareciam querer tentar nos demover da ideia de seguir com o projeto”, conta. “Fomos ofendidos, chamados de idiotas, terroristas, diziam que devíamos ser presos, que merecíamos ter o mesmo ‘fim de Marighella: a vala’. Hoje são milhares de comentários, sem exagero, que nem conseguimos acompanhar”.
Eles sabiam que, da mesma forma que rolou com o filme do Wagner Moura, uma tropa de imbecis surgiria de todos os recantos da internet para espalhar a sua tradicional lama no caminho do projeto. Foi, portanto, um risco calculado. “Tínhamos noção do risco que corríamos, e isso até gerou uma certa apreensão às vésperas do lançamento da campanha. Mesmo assim, a virulência, a tentativa de ‘censura prévia’, nos chocou”, confessa. “Mas tínhamos bem firme a convicção de que essa é a nossa forma, como artistas, de contribuir para um debate de país neste momento tão lamentável em que nos encontramos. Tinha que ser feito”.
Rogério, roteirista de gibis que tem uma série de trabalhos institucionais no meio e este ano já colocou na rua três HQs impressas (Corpos-Secos, Metamorfose e Mais Um Dia), sempre se interessou pela história de Marighella, um dos sete filhos de uma família pobre de Salvador que se tornaria inimigo público número 1 da ditadura. Só que foi justamente deste recorte, da década de 1960, que o autor resolveu fugir. “Foi em 2017 que resolvi conhecê-lo melhor. (…) Me interessei por esse episódio da prisão em 1936. É a partir daí que a gente descobre que Marighella sempre foi o inimigo dos ditadores”.
Sim, a história mostra Carlos com 24 anos de idade, militante do Partido Comunista, quando já começava a incomodar quem estava no poder e acabou preso pela polícia sob a acusação de subversão. Era a época do governo Vargas. “Narramos a captura, a tortura para entregar seus companheiros, sua perspicácia para sobreviver e seu processo de formação”, diz. No começo deste ano, o gibi ganharia desenhista: Ricardo Sousa, que já trabalhou com o mercado norte-americano e é criador do personagem ZéMurai, com duas HQs lançadas. Ele se encantou pelo projeto e os dois fecharam parceria — que se organizou numa trinca com a chegada do capista, Phill Zr, artista plástico e músico que se tornou responsável pela identidade visual do projeto.
Rogério foi ler os escritos do próprio Marighella, como por exemplo Se Fores Preso, Camarada (1951), Por que Resisti à Prisão (1965) e Minimanual do Guerrilheiro Urbano (1969), além de livros SOBRE ele, como Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, de Mário Magalhães, e Olga, de Fernando Morais. “O Ricardo foi atrás de pesquisas pela internet, dos filmes e até novelas de época para achar as referências”. Antes mesmo de lançar a campanha, tiveram a chance de conversar com a família Marighella. “Apresentamos o projeto para o Carlinhos e conhecemos o Pedro; são filho e neto de Carlos Marighella, respectivamente. Foram muito bacanas com a gente e estão acompanhando o projeto desde então”.
O resultado original era uma modesta revista com 20 páginas de uma HQ original — que ganhou um prefácio do jornalista Luis Nassif e posfácio da jornalista Cynara Menezes. “Também organizamos uma exposição virtual no Facebook com a participação de 17 artistas de várias partes do país, de iniciantes a veteranos, que foi de 4 a 9 de novembro”.
E, apesar de todos os pesares, o roteirista enxerga o processo até aqui com ótimos olhos, porque ao mesmo tempo em que surgiram opositores, também pintaram diversos apoiadores. “Tem amigos que conheci agora, vou chamá-los assim, fazendo o trabalho de formiguinha na divulgação do projeto simplesmente porque acreditam nele. Páginas nas redes sociais, grupos organizados, jornalistas, também foram muito importantes, nos ajudando a chegar ao nosso público”.
Rogério diz que, no caso de um personagem bem mais controverso do que discutido, a grande contribuição que esse trabalho pode acrescentar é justamente trazer Marighella para o debate contribuindo assim, de alguma forma, para o resgate de sua memória. “Se vão ser a favor ou contra a nossa visão faz parte do nosso amadurecimento como sociedade”. E ele faz questão de deixar claro, obviamente, que a história NÃO é neutra. “Lá contamos uma história original sobre um personagem que admiramos a partir de um episódio real que muito nos fascinou”.
Um personagem que, antes de qualquer coisa, de qualquer julgamento, tinha um ideal, em que acreditava na possibilidade de um mundo sem desigualdades. “E esse ideal era maior que a sua própria vida, mas, durante toda a sua história, ele tentou lutar dentro da institucionalidade para realizar seu sonho, inclusive como constitucionalista e deputado eleito”, relembra Rogério. “Porém, foi diversas vezes preso, torturado e jogado na clandestinidade sem ter cometido crime algum ou infringido qualquer lei. É somente com 54 anos de vida, perseguido por uma ditadura violenta, que ele vai enveredar pelo caminho da luta armada”. Para o autor, um cidadão desse, que não tem medo, disposto a tudo para lutar por um mundo melhor, aterroriza poderosos, de projetos de déspotas a ditadores estabelecidos. “E esses poderosos, com muita mentira, foram hábeis em incutir no cidadão comum o mesmo horror para com Marighella, de modo que qualquer menção a seu nome gera esse misto de ódio e medo”.
Justamente para conhecer mais a respeito de Carlos Marighella, além dos livros mencionados acima, incluindo os escritos pelo próprio (“podem ser achados com um Google”), ele recomenda o documentário de 2012 rodado por sua sobrinha, a socióloga Isa Grinspum Ferraz, que carrega como título apenas o sobrenome famoso do militante. “Obras sobre o Brasil do século XX, sobre a ditadura civil-militar pós 64, também são fundamentais para se entender o período e o próprio Marighella dentro do seu contexto”. Livros de HISTÓRIA, sabe? Pois é.
Sorry, the comment form is closed at this time.
Pingback: Marighella: um dos filmes mais importantes do ano, nas palavras do seu diretor - Gibizilla