Cycles of Pain é bom Angra, mas longe do Angra que o Angra pode ser
Terceiro disco da banda brasileira com Fabio Lione nos vocais e o segundo com a atual formação reforça o inegável talento de seus integrantes, mas precisaria se forçar um pouco mais emocional e criativamente para carimbar a evolução desta nova fase
Por THIAGO CARDIM
Eu já disse por aqui e repito: se tem uma parada que eu gosto é revisitar antigos textos meus para ver se determinadas opiniões ainda se mantém. Me parece sempre um exercício saudável. Com a aproximação do novo álbum do Angra, “Cycles of Pain”, além de ouvir mais uma vez os dois discos anteriores desta fase com o italiano Fabio Lione nos vocais, fui lá também reler o que eu tinha escrito a respeito de “Secret Garden” (2015) e “Ømni” (2018) no finado JUDÃO.com.br.
“Com este novo álbum, Secret Garden, vem também uma nova formação mas que não precisou chegar ao segundo disco para mostrar todo o seu potencial. De maneira surpreendente, o disco é o melhor da carreira dos caras desde Temple of Shadows. E dá para dizer que, ao lado de TOS e de Holy Land, ocupa o Top 3 da discografia do quinteto”, disse eu, a respeito da bolacha inaugural de Lione. Sobre ser o melhor deles desde “Temple of Shadows”, creio que continuo concordando. Sobre estar no top 3 da discografia da banda, já nem tanto. Mas, três anos depois, eis o que eu disse sobre “Ømni” – que chamei de disco “maduro, equilibrado, bem dosado, diverso, intenso”. Minhas palavras: “Vamos considerar assim: se Secret Garden era o Angra claramente gritando pro mundo que ainda estava vivo, este aqui é um Angra depois de algumas sessões de terapia, aprendendo a conviver com os muitos Angra que vimos nascer e renascer ao longo dos anos”.
Não deixa de ser verdade, no fim. Mas, muito embora “Ømni” seja um belíssimo disco, sofisticado, experimental até, eu tendo a gostar mais da urgência quase melodramática de “Secret Garden”. Um é cérebro, o outro é coração. Mas, de qualquer maneira, vocês devem estar é se perguntando de que maneira e em que posição “Cycles of Pain” se encaixa nesta equação?
Bão… tamos falando de um álbum muitíssimo bem-produzido por Dennis Ward, elegante, com um resultado final que faz bem aos ouvidos – mas que não berra tão alto como foi em “Secret Garden” e tampouco se força mais além dos limites como começou a rolar com “Ømni”.
É bom. Mas podia ser BEM mais. Aliás, arrisco dizer, que DEVERIA ser bem mais. Ainda mais levando em conta o calibre dos músicos envolvidos e o tema escolhido. Vamos falar mais sobre isso em detalhes…
Um tratado sobre muitas dores
Depois de cinco anos em silêncio no que dizia respeito a músicas inéditas, o Angra costurou mais um disco que, apesar de não ser exatamente conceitual, tem canções que de uma forma ou de outra giram em torno de um mesmo assunto. Aqui, no caso, estamos falando da dor. Sobre como lidar com ela, elaborar os seus efeitos, sejam eles mais macro, globais, ou mais subjetivos, íntimos, pessoais. É sem sombra de dúvidas Rafael Bittencourt, o líder de campo e principal compositor do grupo, sentindo tanto o efeito da tragédia mundial causada pela pandemia quanto as perda de seu próprio pai e também a perda prematura de Andre Matos, o parceiro criativo com quem não teve a chance de resolver as questões que ficaram ainda em vida.
Em se falando nas tais “questões”, as muitas tretas que orbitam o Angraverso, é de fato bastante sintomático que este seja o tema recorrente de um álbum lançado por uma formação que completa aí quase que uma década de relativa calmaria. No que diz respeito a uma banda de 32 anos de carreira e que só agora consegue chegar ao seu 10º disco de estúdio, sempre cercada por polêmicas e trocas de farpas publicamente tempestuosas entre seus integrantes, sejam antigos, sejam atuais, parece ser uma camada diferente de elaboração da dor.
Musicalmente, “Cycles of Pain” apresenta o resultado desta aparente tranquilidade, com uma banda livre, leve e solta para mostrar todo o seu potencial. Todos, sem exceção, estão incríveis. Lione cada vez mais à vontade, sem cobranças para soar como Matos ou Edu Falaschi, com direito até a se mostrar poderosamente tenor operístico em “Tears of Blood”, um belo dueto com Amanda Sommerville. Marcelo Barbosa (guitarra) e Bruno Valverde (bateria) trazem a excelência usual – enquanto Felipe Andreoli parece ter conseguido dar ainda mais personalidade ao seu baixo por aqui, que aparece bem mais evidente. No caso de Rafael, ele deixou nestas faixas os vocais de lado (faceta que vinha explorando bem com alguma frequência) e se focou bem mais no seu lado guitarrista. Tudo encaixado.
O que faltou aqui, no fim, foi algo do tipo: “somos músicos sensacionais e parece que enfim encontramos a paz. Mas agora, de verdade, para onde vamos? Qual é o próximo passo da nossa evolução conjunta, enquanto BANDA?”.
Muitos ciclos de muitos Angras
A belíssima capa do álbum, repleta de easter eggs referenciando cada um dos discos lançados pela banda até o momento, meio que dá a pista: este é um Angra que não deixa o seu passado de lado. Isso é bom. Mas vejam vocês: depois da formulaica faixa instrumental, a música que abre “Cycles of Pain” é justamente o primeiro single, “Ride Into The Storm”. Uma ótima canção, não dá pra negar… mas que é muito mais Rhapsody (em qualquer das suas encarnações) do que Angra, para ser honesto. E nem digo isso pela voz do Lione, mas pela toada do power metal de tonalidades épicas. “We change our forms and grow”, diz um trecho da letra. Eu gostaria, mas…
Ao longo da bolacha, de fato temos alguns Angras, sem ter a certeza de qual deles segue em direção ao futuro. “Generation Warriors” e “Gods of The World”, por exemplo, são um metal espadinha clássico, básico, bem feijão com arroz, ambos irrepreensíveis na execução, dão vontade de cantar junto com as guitarras dobradas, aquela coisa. Elas poderiam ser egressas do tracklist de “Fireworks”, mais cru, mais pesado, mais veloz. Mas, à exceção da letra da segunda, que tem uma mensagem política até então praticamente inédita na história da banda, nenhuma das duas faixas (e tampouco da primeira, por melhor que seja) entrega nada além do que boa parte destas bandas aqui vêm fazendo, por exemplo.
Já a faixa-título caminha por uma toada bem mais progressiva, menos veloz e mais intrincada, se conectando um pouco com o que foi apresentado no registro anterior, “Ømni”. É tudo lindíssimo, complexo, um luxo, mas então bate a dúvida: onde está o Angra nesta música? Qualquer boa combinação de músicos minimamente talentosos poderia chegar num resultado como este. Talvez até melhor. Onde está o DNA do grupo? Aliás, para ir um pouco adiante neste questionamento… será que, além do ouvinte, os próprios integrantes conseguem definir o seu DNA, aquilo que os torna diferentes do que a gente ouve por aí? “Uma banda de power-prog metal”, podia ser a resposta. Mas, de verdade, três décadas e três grandes mudanças de formação depois, será que isso basta?
Quando o Angra volta a flertar com os elementos étnicos da música brasileira, por exemplo, tudo parece ganhar um sabor mais interessante, um tanto mais de colorido. O ligeiro remelexo brasileiro que se ouve em “Tide of Changes – Part II” não metamorfoseia a canção por completo, mas começa a causar certo efeito. A pegada baião de “Faithless Sanctuary”, com Andreoli brilhando e sentando o dedo no baixo enquanto Valverde comanda o ritmo lindamente, nos leva para um lugar BEM diferente. É, de fato, um caminho. Mas então, eis que chega “Here In The Now”. Uma canção lindíssima, do tipo que se ouve e pensa claramente “eis algo que não se ouviria qualquer gringo fazendo”. Só que a burrada está em usar a linda e envolvente voz de Vanessa Moreno apenas em eventuais vocalizações, enquanto é o Lione que comanda a festa. Com mil perdões ao mago mas, não, ali não era a hora dele brilhar. Tanto é que, vejam vocês, a banda admite isso e faz uma faixa-bônus com esta mesma música só que com Vanessa cantando como vocal principal. INFINITAMENTE melhor.
A maior derrapada nesta busca por uma assinatura própria acontece, no entanto, em “Vida Seca”. A melhor canção do disco poderia tranquilamente ser uma das melhores da carreira da banda se eles tivessem se dado ao luxo de trabalhar a participação de Lenine como algo mais integrado à canção, tal qual aconteceu com Milton Nascimento na exuberante “Late Redemption”, do disco “Temple of Shadows”. Aqui, Lenine entoa poucos versos em português, passa o bastão para Lione e simplesmente desaparece da música. Um verdadeiro desperdício.
E não, por favor, não é como se o Angra precisasse ser ou gravar um “Holy Land” a cada vez que soltar um disco novo. Mas o que temos HOJE que os tornariam tão únicos como eles foram NAQUELE MOMENTO? Era isso que eu, enquanto crítico, enquanto ouvinte, enquanto fã da banda, estava buscando.
Num álbum sobre lidar com a dor, faltou ao Angra se dar o luxo de experimentar mais e ser imperfeito. Tudo é limpo demais, tudo é reto, sem curvas, muito direitinho. Talvez fosse o caso de rasgar mais o peito e abrir mais o coração. Ser mais emocional. Mais estranho. Se abrir para o melodrama, para o grito, para o desespero, para o choro incontido. Fazer das baladas algo mais sofrido, fazer do metal pesado algo até mais visceral. Não, não tô falando que o Angra tem que virar uma banda de thrash metal. Mas ousar e se entregar abertamente, até mesmo nas letras, a um processo que dói, que machuca. Isso é lidar com desconhecido, inclusive musicalmente falando.
Podia ser até, e sei que piso em terreno espinhoso ao dizer isso, que tematicamente um disco como “Cycles of Pain” tivesse que conversar muito mais com o subestimado “Aurora Consurgens”, de 2006, um lançamento com canções sobre transtornos mentais e que leva a banda para um caminho que nem o fã eventual e nem eles mesmos pareciam esperar.
No começo deste texto, eu disse, e talvez isso tenha passado batido pra você, que “Ømni” é mais cérebro enquanto “Secret Garden” é mais coração. “Cycles of Pain” teve a chance de ser ALMA, completando e integrando a trinca. Mas acabou sendo apenas um sorriso. Um aceno. Uma lembrança do que o Angra foi, do que o Angra é e do que o Angra PODERIA ser. Que a banda seguiu em frente, a gente já sabe. Ainda bem. Queremos agora é vê-los seguindo à frente também.
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Erick
Compreendo o ponto de vista, contudo, para mim, este é o melhor álbum na fase Lione (pessoalmente o melhor da carreira). Talvez essa opinião distinta seja explicada pelo fato de que tive meu primeiro contato com a banda durante a fase Lione. No entanto, este álbum foi uma grande surpresa , superando qualquer outra experiência anterior com a discografia do Angra. Suas músicas excepcionais, interpretações marcantes e as fortes mensagens contribuem para minha convicção de que este álbum se tornará um clássico incontestável na trajetória da banda.