Um ano sem a presença magnética do maestro Andre Matos
Um dos maiores e mais importantes nomes do rock/heavy metal no Brasil. E também uma das mais belas vozes do gênero, que ainda tinha muito a dizer. E igualmente um ser humano exemplar e músico completo. Que baita perda.
Por THIAGO CARDIM
(originalmente publicado no JUDÃO.COM.BR)
Na minha carreira como jornalista de entretenimento, especializado principalmente em música, já escrevi dezenas de textos póstumos a respeito de artistas que admirava muito. Estava de plantão quando a Cássia Eller morreu, fui o primeiro a chegar na redação quando quem partiu foi George Harrison. Lá no www.judao.com.br, apenas nos últimos anos, tive que falar de George Michael, Prince, David Bowie, Lemmy. Um bando de gente foda. Mas nunca tive que escrever e reescrever um texto tantas vezes quanto ESTE. Nunca quis tanto que a notícia fosse um mal-entendido, que pudesse ser esclarecido depois, quanto ESTA. Nunca tive tanta dificuldade para cravar que perdemos alguém do calibre de Andre Matos – que partiu no dia 8 de junho de 2019, pouco antes de completar 49 anos.
Quando recebi o impacto da informação sobre a morte dele, a parada me acertou como um soco no meio do nariz. Fui ouvindo a voz do Andre, atravessando a cidade de SP no ônibus e no metrô com ele me acompanhando. Estava atordoado, anestesiado, tudo meio borrado ao meu redor, nada parecia fazer sentido.
Quando começou Carry On, que nem é a minha música favorita de sua fase no Angra, desabei e chorei. Perdi a conta da quantidade de vezes que vi o Andre cantando ao vivo — nunca com o Angra, a banda que o tornaria internacionalmente famoso. Mas com o Shaman e na carreira solo, sério, passou de uma dezena. E também tive a chance de entrevistá-lo outro tanto de vezes, pessoalmente, por telefone, por e-mail. Nos cruzamos tantas e tantas ocasiões nos eventos da vida que eu já considerava no mínimo alguém conhecido. Próximo. Querido.
Além disso, trabalhei com pessoas da família dele e que eram absolutamente apaixonadas pelo cara, se derretiam em elogios ao ser humano que ele era longe dos palcos. Conheci tantas outras que tiveram a chance de trabalhar diretamente com o músico e igualmente diziam se tratar de alguém pontual, curioso, eclético, estudioso, técnico, dedicado, tranquilo, humilde, refinado, disciplinado, muito bem-educado, um gentleman.
Tudo isso era Andre Matos. Tudo isso e MUITO mais.
O cara que, ainda adolescente, formou na escola uma banda e se tornou o frontman que era, inicialmente, uma reprodução de seu ídolo máximo, Bruce Dickinson. Representação máxima do visual metal tradicional, foi pinçado junto com outros moleques para formar um grupo do tal do metal melódico, o power metal veloz e virtuoso que tava fazendo a cabeça de tantos outros moleques por aí. Saiu do Viper e foi pro Angra. Foi “apenas” uma década com esta banda, somente três discos de estúdio, mas numa carreira tão meteórica que os tornou tão influentes nacional e internacionalmente quanto o próprio Sepultura. Não tinha um aspirante a vocalista de metaaaaaaal mais tradicional aqui na terrinha que não quisesse soar como o Andre. Fez sucesso aqui, no Japão, na França, na Itália, na Alemanha.
Chegou até a fazer teste e, segundo consta numa daquelas histórias de bastidores que muita gente confirma e outro tanto nega, por MUITO pouco quase não foi vocalista do Iron Maiden depois da saída de seu ídolo Dickinson. O que corre à boca pequena é que gravadora e empresários tinham receio de que a Donzela de Ferro tivesse um latino nos vocais. No fim, Blaze Bayley assumiu a bronca, mas chegou a admitir para o Andre, anos mais tarde, que o brasileiro seria uma escolha mais acertada.
Depois, por uma série de problemas empresariais, rompeu com metade dos colegas e ainda teve a coragem de sair de um projeto que era sucesso garantido e foi se meter numa outra parada, uma mistura aparentemente estranha com world music. Nasceu o Shaman, que não chegou a explodir lá fora mas que aqui no Brasil conseguiu um tamanho surpreendente, em certas ocasiões eclipsando o próprio Angra. Foi parar até na trilha sonora de novela, tocou em diversas atrações da TV aberta, um frenesi maluco. Mas jamais cortou o cordão umbilical de seus sonhos e, dois discos depois, lá estava ele em carreira solo, experimentando, ousando, querendo mais.
Reservado, sem afetações com a fama, meio tímido até, não era exatamente do tipo que gostava de fofocas, dos holofotes enquanto “astro” — nem quando a imprensa mainstream descobriu seu namoro com Penélope Nova, na época bombando como apresentadora da MTV. Estava longe de ser o padrão do rock star. Mesmo assim, dava atenção a cada fã que o procurava nos bastidores, que o encontrava nas ruas, nas sessões de autógrafos. Mas quando subia no palco era outra história: virava um gigante, carismático, performático, dominava a plateia como poucos, sorria misterioso ao piano quando provocava o público, cabelos ao evento.
Progressista, com um olhar apurado para o mundo ao seu redor, por mais que soubesse que estava cercado de privilégios que lhe permitiram uma formação musical única e uma vivência global maravilhosa. Vegetariano, amante dos animais, recolhia bichinhos das ruas com carinho. Era torcedor fanático do Corinthians, embora falasse menos a respeito do que falava sobre música.
Misturava rock com erudito, tinha um tesão pela música clássica que nunca se perdeu. Aliás, tava bem longe de ser o headbanger xiita, aquele do metal acima de tudo. Cagava e andava pras bobagens do metaleiro tradicional: nos primórdios, quando cantou a versão de Wuthering Heights, da Kate Bush, no disco de estreia do Angra, rolou o esperado “ai, estes agudinhos, coisa de viadinho”. Andre não tava nem aí. Tinha mais o que fazer e mostrar. Nas turnês gringas com o Angra, por sinal, mostrava o quanto gostava de música brasileira — o que gerou uma versão linda e delicada para Chega de Saudade, em homenagem ao maestro Tom Jobim. De um maestro pro outro.
Era cantor, arranjador, pianista, mas também entendia dos aspectos técnicos da coisa, estúdios, gravações, mesa de som, estas paradas. Perfeccionista, estava sempre em busca da excelência, do melhor arranjo, da melhor versão, da melhor nota. Além disso, fazia questão de se debruçar sobre a parte de negócios da coisa toda. E mesmo sendo este pacote completo, abria um sorriso sincero quando ouvia os narradores do Rock & Gol chamando-o pelo apelido de Musa Nissei-Sansei por conta do jeito que prendia o cabelo para tentar colocar o cargo de goleiro no seu já extenso currículo.
A primeira vez que tive a chance de falar com ele foi quando começaram os primeiros boatos sobre uma dissolução do Angra. A turnê do Fireworks tinha acabado, Shaman era só uma promessa e/ou boato. O papo foi tão, mas tão legal, um interurbano interminável de Santos pra São Paulo, que no final a gente tava falando sobre Queen, minha banda favorita, uma das que ele mais gostava também. Pessoalmente, nos veríamos mais de um ano depois, no camarim do Shaman, depois de um show, o cara acabado depois de correr de um lado pro outro no palco durante quase duas horas. Mas tava ali, toalha no pescoço, falando comigo amarradão. “Adorei seu texto”, lembrou ele, sobre a conversa anterior. “Não precisa apressar, pode tomar o tempo que for preciso”.
Nos intervalos da sessão de chat na finada AOL Brasil, que eu comandei pessoalmente, outro encontro, outro papo animado sobre bandas que curtíamos, sobre MPB, sobre Santos, minha terrinha, que ele visitaria pra um show exatamente naquele final de semana. Semanas depois, nos cruzamos numa festa pós-VMB, ele já meio alto das biritas, me confessando que achava tudo aquilo meio exagerado pros padrões dele. Tava cansado, viu a cerimônia da plateia, como qualquer bom mortal, encontrou uma galera que sempre curtiu, mas toda aquela badalação, luzes, fotógrafos, pareciam mesmo demais pra ele.
A última vez que tive a chance de falar com o Andre assim, oficialmente, como jornalista, foi justamente pra uma matéria que escrevi pro Whiplash sobre o que a galera do metal ouve e que NÃO é metal. Falou de Kate Bush, Tori Amos, Peter Gabriel, Sting e do a-ha. “O U2 também sempre foi uma banda que me chamou muita atenção, por todo o seu profissionalismo”. Mas quando pedi uma indicação mais atual, não pestanejou: “a banda inglesa chamada Muse – eles conseguem, como ninguém, misturar o clássico ao rock com muita originalidade”.
Depois disso, nos cruzamos algumas vezes em eventos do mundinho da música e mesmo em shows, sempre simpático, sempre cordial, sempre lembrando de mim. Uma semana antes de seu falecimento, um domingo, estive lá pra ver o Avantasia no Espaço das Américas, em São Paulo, com abertura do Shaman nesta turnê de retorno. Diferente do show que vi em Setembro de 2018, primeiras datas do quinteto mais uma vez reunido, Andre tava mais livre, leve, solto. Ao piano para executar Fairy Tale, sorria satisfeito, brincando com os presentes a cada toque do teclado. Pouco depois, já com o Avantasia no palco, foi chamado pra uma participação especial por Tobias Sammet, celebrando a sua participação nos primeiros álbuns da superbanda de estrelas metálicas.
Ao cantar Reach Out For The Light, no reencontro de dois amigos que há muito não se viam, foi aplaudido entusiasticamente pelos presentes, recebido como o ídolo que é e sempre foi.
Contaram Paulo Baron, empresário do Angra, e Kiko Loureiro, ex-guitarrista da banda e agora integrante do Megadeth, que ao longo daquela semana o Andre tinha, pela primeira vez em duas décadas, aberto o coração sobre uma possibilidade de reunião da formação clássica da banda. Depois de toda a diversão com os parças do Viper e depois de curar as cicatrizes superficiais com o Shaman, ele estava pronto para a verdadeira terapia que seria deixar de lado todas as questões do passado e retomar com os antigos parceiros, nem que fosse para alguns shows especiais. As portas estavam abertas para não apenas lavar a roupa suja, se é que isso seria necessário depois de tantos anos. Mas para celebrar uma amizade de tanto tempo que acabou soterrada por contratos e burocracias. Para abraços que seriam, no fim, mais importantes até do que a própria música.
Acabou não dando tempo. A lenda se imortalizou. E com ela, a promessa não apenas desta turnê há tanto aguardada, mas também novas músicas prometidas com o Shaman e, principalmente, de sua carreira solo, que ele tinha deixado claro que não abandonaria. Ainda tinha muitas melodias lindas pra sair daquela cabeça ainda tão jovem.
Fico aqui pensando, portanto, que vi o último show da VIDA do Andre Matos.
Isso pesou. E ainda tá pesando.
E mesmo um ano depois, eu realmente não tô sabendo como lidar com isso.