Novo Aranhaverso é viagem ao coração do que é ser Homem-Aranha
Animação Homem-Aranha: Através do Aranhaverso é, além de um desbunde visual de diferentes técnicas, um estudo emocional e emocionante sobre os conceitos mais profundos do personagem
Por THIAGO CARDIM
Vamos, antes de qualquer coisa, tirar um gigantesco elefante aqui da sala: sim, sim, Homem-Aranha: Através do Aranhaverso é, conforme os trailers já entregavam, um espetáculo visual como há muito a indústria da animação mainstream não via. Aliás, vai muito além do que os vídeos iniciais sugerem e, definitivamente, ultrapassa com méritos o que se via no filme anterior.
A estética grafite continua aqui presente, mas a equipe aproveitou a questão “multiverso” para mesclar uma série de técnicas diferentes, usadas de maneira inteligente e que ajudam a tornar a narrativa mais fluida, sem parecer apenas uma metralhadora desvairada de estilos (“mamãe, olha o que eu sei fazer!”). Aqui, em certos momentos, eles até optam por um minimalismo, por uma economia visual, que torna tudo igualmente belo e fascinante (o vilão multidimensional Mancha, com um corpo rabiscado que parece rascunho de estudo de anatomia, é prova inconteste disso).
O estilo de animação de cada personagem, de cada universo no qual eles aterrissam, ajuda a mostrar não apenas as suas personalidades (fiquem ligados no Abutre renascentista), mas também as suas emoções NAQUELE momento. Merece destaque um diálogo forte e emocionante entre a Spider-Gwen e seu pai, com um cenário aquarelado que vai mudando de cor e “derretendo” à medida que a conversa se torna mais dura e chorosa.
E, pra completar, enfim temos um filme que extrapola ainda mais as ideias do primeiro e usa com inteligência diferentes elementos, cortes e enquadramentos típicos das próprias histórias em quadrinhos, sem soar pedante. Destaque para a evolução dos quadros de narrador, por exemplo, com direito até a “notas de rodapé” pra explicar determinados conceitos.
Quando você vir um crítico escrevendo que este filme é uma “obra de arte” (e eu vi VÁRIOS), acredite em mim quando digo que não é exagero.
Tá bom. Agora a gente já falou efetivamente do visual, do desbunde criativo, deixando claro o quanto seria muito legal assistir a este filme numa telona de cinema DE FATO, se você conseguisse. Podemos, portanto, seguir em frente e discutir um tanto mais os OUTROS predicados da obra. Porque eles são, de fato, MUITOS.
Qualquer um pode ser o Homem-Aranha. Mas, afinal, o que é ser Homem-Aranha?
“Uma das razões pelas quais o Homem-Aranha fala com todo mundo, em todo o mundo, é a máscara. Conheci muitos jovens fãs do personagem, que cresceram e hoje estão velhos, que quando encontraram o Homem-Aranha pela primeira vez eles meio que não sabiam quem estava sob a máscara. E isso dá a liberdade pra ele ser qualquer um”, disse certa vez o roteirista de quadrinhos Dan Slott, que escreveu o Homem-Aranha durante mais de uma década e foi o criador de todo este conceito de Aranhaverso. E ele completou: “Seja lá qual for o Homem-Aranha que você goste, ele é o real Homem-Aranha”.
Pois em Homem-Aranha: Através do Aranhaverso, o que não faltam são Homens-Aranha pra você escolher gostar. Tem Homem-Aranha, tem Mulher-Aranha, tem Nenê-Aranha, tem Gato-Aranha, tem Cavalo-Aranha, tem Dinossauro-Aranha… Tem Aranha caubói, samurai, ciborgue, lobisomem, PCD. Tem o Aranha do jogo de Playstation, tem o Aranha da animação “O Espetacular Homem-Aranha” (2008), tem o Aranha da animação “Homem-Aranha: Ação Sem Limites” (1999)…
Tem até um certo Andrew e um Tobey, meio aqui e ali, além de uma certa menção maravilhosa ao filme do Venom (não explico o contexto, descubra por si mesmo). E tem até outros personagens não-Aranha, incluindo um certo sujeito live-action (talvez a MAIOR surpresa da trama, aliás, que eu não vou contar nem por decreto, mas achei sensacional por estar duplamente conectada à existência do Miles).
Tudo isso é legal pra caramba, coisa e tal, tal e coisa. Mas o que o filme faz, de maneira bastante eficaz, é não deixar ISSO se tornar a principal coisa da história. Pelo contrário. Tá tudo lá, bem divertido, você dá risada com o puro suco de anos 1990 que é o Aranha Escarlate, aka Ben Reilly. Mas é acessório. É pano de fundo. Não tira a atenção do que é importante de fato, que é a história cruzada das jornadas de Miles Morales e Gwen Stacy – e como Peter Parker e Miguel O’Hara (o cultuado Homem-Aranha 2099) têm impacto nisso. É neles quatro que a trama se calca. E isso fica claro o tempo todo. AINDA BEM.
Homem-Aranha: Através do Aranhaverso e seu sucessor (lembremos sempre que este filme é a parte 1, portanto a história não se encerra nele) são, no fim, uma trama a respeito sobre o que de fato faz alguém ser o Homem-Aranha. Ou uma pessoa-aranha, se for o caso.
Há quem diga que o que faz alguém ser um Homem-Aranha é, antes de tudo, ser marcado pela tragédia. As muitas perdas sofridas ao longo do caminho, o peso da responsabilidade e da culpa carregado nos ombros enquanto se repete sem parar o mantra do Tio Ben. É sofrer com as cicatrizes da perda do Capitão Stacy, de Jean DeWolff, de Ned Ledds, é saber que a maldição dos Parker, ainda que você não seja um Parker, vai te perseguir para sempre.
E o Miles com isso?
Isso, no fim, é o que faz Miles Morales não entender muito bem o seu papel no grande plano geral. Com 15 anos de idade, o garoto ainda tá tentando descobrir o que vai fazer da vida dali pra frente – e não apenas em sua persona com superpoderes, é bom que se diga. Cansado de gente querendo dizer como ele deve agir, ele Miles e ele Aranha, tendo que lidar com as cobranças da adolescência e de uma carreira como justiceiro mascarado, o jovem sente saudades de seus amigos aracnídeos do primeiro filme, aqueles que nunca mais teve a chance de ver. Pessoas que entenderiam suas questões. Pessoas como Gwen.
Depois de uma questão gravíssima envolvendo seu pai, Gwen (cuja história aqui é muito melhor desenvolvida) é acolhida por outra Mulher-Aranha, Jessica Drew, ao descobrir que existe uma equipe de Aranhas, liderada por Miguel, cujo objetivo é manter a ordem da delicada teia do multiverso. E quando Gwen volta a encontrar Miles, ele também percebe que ali talvez esteja a chance de se encaixar. De encontrar a sua galera. Até que o tal Mancha, o sujeitinho cujo corpo gera verdadeiros portais interdimensionais, TAMBÉM cruza o seu caminho, revelando que suas histórias estão de alguma forma interligadas. Tal qual Miles, o Mancha também busca encontrar o seu papel. E encontrar, antes de tudo, respeito. Seus poderes são maiores do que a gente, do lado de cá da poltrona, imagina a princípio. E então, numa jornada em busca de vingança, o sujeito que era um tanto ridículo se torna uma ameaça para toda a existência.
Pois eis que a marca da tragédia e a discussão sobre Miles ter ou não direito de ser chamado de Homem-Aranha surge mais uma vez, inclusive ecoando os papos surgidos nas redes sociais quando Miles foi criado nas HQs. É mais do que uma conversa sobre a origem da aranha que o picou (parte importante da conversa, aliás). Mas sim, um papo sobre aquilo que o faz (ou não) ser Homem-Aranha.
E posso dizer, do alto dos meus 43 anos, como leitor dos gibis do Teioso desde 7 aninhos de idade, colecionador fanático de tudo relativo ao personagem desde sempre, que Miles Morales é Homem-Aranha PRA CARALHO. E digo mais: um Homem-Aranha único, que não está ali repetindo o legado do Peter, mas sim criando o seu próprio. Tornando-se curiosamente antagonista, aliás, daquele Aranha que até então era justamente aquele com a personalidade e história mais diferente do próprio Peter, que é o Miguel (melhor uniforme, aliás, 10 de 10).
Além disso, Homem-Aranha: Através do Aranhaverso é TAMBÉM uma história sobre pais e filhos. Quando falo “pais”, por sinal, não só no masculino, mas sobre pais e mães igualmente. Os pais do Miles. O pai da Gwen. A Jessica grávida. O Peter carregando a sua pequena Mayday pra tudo que é lado. E uma história trágica envolvendo o Miguel. Numa trama sobre criar sua própria história, sobre responsabilidade, sobre mentores – palavra que vai se repetir bastante na história – e sobre ter liberdade para fazer suas escolhas (errando ou acertando), não tinha linha narrativa mais adequada. O pai em mim agradece, tanto quanto o filho ou o leitor de gibis.
Pois então. Homem-Aranha: Através do Aranhaverso é sobre tudo isso. E é isso, indo além do visual incrível (que já seria estupendo, mas não fica só nisso), que faz desta parada uma coisa tão especial. Top 3 DISPARADO da minha listinha de “melhores filmes do Homem-Aranha”. Não apenas “animações”. Filmes. Com F maiúsculo.
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PS 1: Um dos melhores personagens do filme, para não dizer “o” melhor, é o Punk Aranha. O visual meio colagem de fanzine é esplêndido, mas o fato dele carregar consigo a fagulha da revolta em tudo que é momento e se tornar alguém que incendeia o próprio Miles, é animal. E muito significativo – até porque estamos falando de OUTRO Aranha que também não é uma versão multiversal do Peter. E outro Aranha que é um homem negro.
PS 2: Do meu lado, aguardo ANSIOSAMENTE, no segundo filme, a participação de outro Aranha já anunciado mas que até agora não pintou – no caso, o Homem-Aranha tokusatsu, da série live-action japonesa, que deve aparecer ao lado do robô gigante Leopardon. Tem tudo pra ser sucesso total e absoluto.