Meio Amargo traz outro olhar para a fábula da Cigarra e da Formiga
Com roteiro de Jarbas Pereira e arte de Isaque Sagara, trama é recontada com personagens pretos, mas o racismo não deixa o final ser o mesmo…
Por THIAGO CARDIM
Durante o verão, a cigarra preguiçosa vivia cantando pra lá e pra cá, enquanto a formiga ia trabalhando e estocando provisões para quando o inverno chegasse. E quando a friaca se abateu sobre o mundinho dos insetos, a formiga foi lá e meteu o dedo na cara da cigarra que pedia ajuda, provando que o trabalho duro é mais importante do que a boemia, aquela coisa toda.
Gerações e mais gerações de crianças já foram apresentadas, das mais diferentes maneiras, à fábula “A Cigarra e a Formiga” (no original, “O Gafanhoto e Formiga”), atribuída ao escritor Esopo, da Grécia Antiga, e tornada famosa pelo francês Jean de La Fontaine, lá pelos idos de 1600 e guaraná com rolha. Por aqui, ela foi uma das muitas recontadas por Monteiro Lobato, dentro do contexto do Sítio do Picapau Amarelo, em teoria adaptando a trama à nossa realidade. Mas digamos que o trabalho feito no gibi Meio Amargo, recentemente financiado com sucesso no Catarse, tem um tom BEM mais real e brasileiro…
“Normalmente, essas fábulas e histórias clássicas são cheias de moral e sempre querem nos ensinar algo. Eu fui pai recentemente e, ao ler essas histórias para a minha filha, eu percebi que elas não tinham nada de Brasil. Sempre se passavam em florestas, bosques, lugares ermos”, explica o roteirista Jarbas Pereira, em entrevista exclusiva ao Gibizilla. “Mas perturbador mesmo foi perceber que a moral não se encaixava na nossa realidade. No caso, da Cigarra e da Formiga, quem pode viver cantando e tocando violão? Quem pode viver a vida desse jeito? Os negros é que não podem”. E é AQUI, de fato, que “Meio Amargo” cutuca onde se deve…
O escritor lembra que, em certo ponto de nossa história, tivemos até uma Lei de Vadiagem, que não permitia que as pessoas ficassem na rua: ou estava indo para o trabalho ou voltava para casa. “Também a população negra não poderia ser Formiga e se aposentar depois de anos dedicados ao trabalho. Então recontar essa fábula sob uma perspectiva negra e brasileira é um estímulo à criatividade. O que que acontece com uma Cigarra negra? E uma formiga? E o final, como seria? O livro começa com uma fábula, mas depois trilha seu próprio rumo”.
A história tinha um roteirista, mas faltava o desenhista
Trabalhando há mais de 10 anos produzindo conteúdo para marcas, escrevendo roteiros de vídeos, podcasts e outras mídias, Jarbas nunca tinha escrito uma história sua, totalmente autoral. Então, como leitor apaixonado por quadrinhos desde a infância, decidiu que esta estreia tinha que ser em formato de gibi. “Quando eu pensei na história, sabia que tinha que ter uma equipe toda negra no projeto. Eu já conhecia alguns ilustradores negros e fui entrando em contato. Foi uma busca longa até chegar no Isaque. Primeiro, por agenda desses artistas e depois pelo traço”.
Isaque Sagara é ilustrador, quadrinista e tem formação na área de Artes. Ele foi selecionado para o projeto da Editora Mino em 2020, o Narrativas Periféricas. Lá ele lançou o “Quando a Música Acabar” e depois, enfileirou publicações por diversas editoras: “Tecnodreams” (Negrogeek), “Oscar e o Pan de 87” (Ultimato do Bacon), “12 Compassos” (Ultimato do Bacon)…
Esta última obra, aliás, sobre o mitológico bluesman Robert Johnson, foi um dos principais fatores que fez com que Jarbas tivesse a certeza de que tinha encontrado o parceiro certo: “Ele já tinha experiência em desenhar personagens musicais e isso é sempre um desafio. Ele leu o roteiro e viu que tínhamos uma boa história para contar. Com o roteiro em mãos, montamos uma boneca para entender cada página, o ritmo, as viradas e entender o que poderíamos melhorar no texto e no enredo”, explica. “Foi bem trabalhoso”.
Temos os autores, temos a história
Ambientada em Ilhéus, a trama fala sobre Formiga, um jovem apaixonado por música que sonha em viver do samba e, mesmo depois de tantos percalços, não quer desistir – até que passa por um trauma: o mesmo que sua avó passou anos atrás. Dona Niara, por sua vez, é uma mulher humilde que quer viver a vida em paz, com tranquilidade, um dia de cada vez. E é entre o passado dela e o presente dele que se desdobra a história cuja semente é uma fábula aparentemente inocente.
Além disso, o projeto vai muito além de recontar uma fábula porque, como Formiga é um sambista, a história é também uma espécie de viagem pela história do gênero musical.
“A conexão veio com a fábula original”, diz o autor. “A Cigarra dança e toca violão. No início do século XX, os sambistas eram muito perseguidos e discriminados. As rodas de samba aconteciam basicamente nos terreiros ou nas casas”. Pesquisando a história do samba, a dupla de autores encontrou muita revolta e luta contra o sistema, mas também muita diversão. “É incrível como essas duas coisas se uniram e deram tão certo. Para a história, isso caiu como uma luva. O ritmo de protesto mais comum é o rap e usar o samba traz uma nova perspectiva sobre o gênero. Pesquisamos muito sobre as rodas de samba na Bahia, que é onde a história se passa”.
A ideia é que “Meio Amargo” seja apenas o capítulo inicial de um projeto ainda maior, cuja ideia é seguir recontando outros contos de fadas. “O Meio Amargo é um drama. O próximo estamos pensando em fazer uma ficção científica. É como eu falei, as fábulas são só o pontapé inicial para a criatividade. A gente quer denunciar o racismo e todas as coisas ruins que passamos, mas a gente também quer explorar outras ideias, falar de outros assuntos”, revela ele.
“Queremos que o leitor tenha contato com uma história nova, que se sensibilize com as denúncias, mas que também dê risadas, viaje para o mundo da história que estamos contando”.