Dungeons & Dragons é sessão de RPG raiz adaptada pros cinemas
O mais popular dos role-playing games enfim ganha uma versão que entende não apenas a força de sua ambientação, mas também a importância de trazer a sensação de mesa, dados e planilhas
Por THIAGO CARDIM
(publicado originalmente no IGORMIRANDA.COM.BR)
Apesar de, ao longo dos anos e das suas infinitas expansões de ambientação, ter adquirido cara própria, é óbvio que a semente de Dungeons & Dragons, o jogo de interpretação de papéis original, é Senhor dos Anéis. No coração da criação de Gary Gygax e Dave Arneson, bate a high fantasy de inspiração tolkieniana. Desta forma, toda vez que alguém resolve fazer uma adaptação de D&D para as telonas, acaba justamente esbarrando nesta inspiração, buscando toda aquela narrativa épica e pomposa, os personagens em busca de grandes missões, cheios de nobres aspirações…
E, bom, a gente bem lembra da verdadeira coleção de FRACASSOS que foram as tentativas anteriores, desde aquela retumbante porcaria lançada nos cinemas em 2000 e passando por aqueles dois outros filmes lançados diretamente para vídeo-televisão, especificamente em 2005 e 2012. Todos errando rigorosamente nos mesmos pontos (considerando ainda, claro, o baixíssimo orçamento de todas elas, com efeitos especiais risíveis e uma produção de arte que qualquer cosplayer dedicado faria infinitamente melhor).
Era de esperar, portanto, que rolasse uma claríssima desconfiança quando a Paramount anunciou uma nova superprodução trazendo D&D para os cinemas. Mas à medida que fomos vendo imagens, os primeiros vídeos de divulgação, trailers, algo ali parecia soar diferente. Bem mais interessante. Veio a esperança. Tinha um tom diferente, que passou a lembrar muito mais a animação “A Lenda de Vox Machina” do que Senhor dos Anéis e seus derivados. E fazia TOTAL sentido, já que Vox Machina é justamente a adaptação direta de uma aventura de RPG real, mestrada por um narrador e interpretada por um grupo de jogadores que existem mesmo.
Pois, no fim, depois de assistir ao resultado final do filme “Dungeons & Dragons – Honra Entre Rebeldes”, está claro que é NESTE PONTO que eles acertam no alvo. O grande resumo é que o filme parece MESMO com uma grande sessão de RPG com pessoas de verdade interpretando os seus personagens. E é aí que está a grande graça de ver um Dungeons & Dragons ao invés de Senhor dos Anéis, O Hobbit, Crônicas de Nárnia e afins. A parada é outra.
RPG com gostinho de RPG
“Dungeons & Dragons – Honra Entre Rebeldes” é, antes de mais nada, uma imensa bagunça – e, neste caso, isso não é um defeito. Edição ágil, inteligente, sem te dar tempo pra respirar. Tal qual acontece com personagens que nascem de pontos distribuídos nos atributos de uma folha de papel, cada um dos heróis, no fim, está bem longe de ser um herói incorruptível. Eles são cheios de defeitos, cometem erros gritantes e são, antes de qualquer coisa, todos, reis do improviso. Como a gente, os jogadores, faria diante da ameaça colocada à nossa frente pelo dungeon master. Certas decisões poderiam até parecer forçadas, mas dentro do contexto, são completamente aceitáveis.
Mesmo quando um ou outro deus ex machina parecem surgir do mais absoluto nada, a gente meio que aceita e segue o baile porque, afinal, os jogadores-personagens dão a volta nele e tá tudo certo, simbora pra próxima grande criatura da vez. E o formato, da trama, com pequenas missões servindo para reunir a equipe em torno do objetivo final, quase como pequenos arcos, tem aquele baita clima de sessões semanais que servem como esquenta para a grande ameaça da trama.
E o humor, bom, é tipicamente bagaceiro, quase como se fosse o resultado das sessões de jogos dos caras de The Gamers – se você não faz ideia do que se trata, basta dizer que é um filme independente e de baixo orçamento sobre jogadores de RPG em torno de uma mesa, regados a muito refrigerante e cerveja e com todas as espécies possíveis de salgadinhos, pizzas e demais aperitivos. Se dá pra minimamente comparar com alguma produção dos últimos anos, é com o primeiro “Guardiões da Galáxia”. Definitivamente, melhor elogio não há.
Tudo começa com um bardo
Amigos desde sempre, o bardo-larápio Edgin (Chris Pine) e a bárbara-guerreira Holga (Michelle Rodriguez) enfim estão livres da cadeia, depois de uma série de acontecimentos lamentáveis. Usando ele sua lábia e ela a sua força, ambos então tentam reconstruir as suas respectivas vidas mas, quando Edgin resolve reencontrar sua filha, acaba descobrindo que as coisas se desenrolaram de um jeito absolutamente inimaginável nos dois anos em que estiveram fora.
Tentando um resgate aparentemente impossível em meio a um torneio entre diferentes reinos, eles buscam a ajuda de um antigo parceiro, o feiticeiro-picareta Simon (Justice Smith), que lhes apresenta a druida-metamorfa Doric (Sophia Lillis). Seu caminho ainda vai se cruzar com o paladino-gato Xenk (Regé-Jean Page) e com um bando de necromantes escarlate vindos de Thay…
No fim, a canastrice padrão de Pine ou mesmo de Hugh Grant (brilhante como o ambicioso ladrão Forge) acabam jogando totalmente a favor da história, porque só ajudam a construir e dar mais camadas aos seus personagens.
Você precisa manjar de RPG ou mais especificamente de Dungeons & Dragons para curtir o filme? Mas é óbvio que não. Tudo que você PRECISA saber estar lá, explicadinho do jeito que precisaria, de fato. Só que quem já é do rolê, claro, vai pegar as referências. Vai ouvir coisas como “Baldur’s Gate” e “Neverwinter” e sacar que estamos em Forgotten Realms. Vai lembrar do urso-coruja, do mímico, do cubo gelatinoso. E vai, como este que vos escreve, dar uma pirada de leve quando perceber quem diabos é um certo mago que aparece em meio a uma série de sequências de pegada mais onírica.
Jogador de RPG ou não, claro, se você tem por volta de 30-40 anos, vai sair com o coração quentinho ao se deparar com a participação especialíssima (e curtíssima) dos personagens de Caverna do Dragão, desenho animado de sucesso por aqui e que, obviamente, era uma tentativa de adaptação de Dungeons & Dragons para as telinhas.
Só que o filme funciona TRANQUILAMENTE sem nenhuma destas coisas. Isso é tudo acessório. Os produtores poderiam ter trazido algumas de suas armas mais poderosas para a produção, metendo um Beholder ali, um dos dragões mais conhecidos acolá (talvez até a deusa dracônica de cinco cabeças Tiamat), mas resistiram à tentação e se focaram no que realmente importa.
O resultado são personagens carismáticos, com os quais você se importa DE VERDADE, que vez por outra se metem em cenas de ação impactantes mas sem grande exagero… mas que realmente brilham é nas interações entre eles, nos relacionamentos esquisitos, nas pisadas de bola, nas bobagens ditas e impossíveis de deixar para trás.
Exatamente como em qualquer boa partida de RPG.
E até a próxima sessão.