Estados Unidos da África mostra um herói rompendo muros para além dos seus poderes
Obra de Anderson Shon e Daniel Cesart que mistura prosa e quadrinhos foi financiada via Catarse e surgiu da inquietação de ser negro e não ser representado dignamente pela cultura pop
Por THIAGO CARDIM
“Vou continuar insistindo que nossos países soberanos trabalhem para alcançar os Estados Unidos da África”. A frase, dita em fevereiro de 2009, veio da boca de Muammar al-Gaddafi, brutal ex-governante da Líbia e uma figura bastante questionável, pra dizer o mínimo. Quando foi eleito presidente União Africana na Etiópia, insistiu em “uma única força militar africana, uma moeda única e um passaporte único para os africanos movimentarem-se livremente pelo continente”. Apesar de QUEM falou a respeito, o conceito – surgido no poema de Marcus Garvey Hail, “United States of Africa”, publicado em 1924 – não é novo e vem sendo amplamente discutido, em diferentes formatos, por diferentes líderes do continente.
Talvez o que faltasse para isso acontecer é alguém como o Rei Bantu. Estamos falando de um simples homem camaronês que ganha superpoderes de forma inusitada e então unifica o continente africano em um só país. E, obviamente, ele é um personagem ficcional, protagonista de Estados Unidos da África, um mix de prosa e quadrinhos escrito por Anderson Shon e com arte de Daniel Cesart.
Financiado integralmente em uma campanha de financiamento coletivo no Catarse, o projeto era apenas um livro, propriamente dito. Mas quando Cesart entrou no projeto, inicialmente como ilustrador, a coisa ganhou outro corpo e eles concordaram que talvez coubesse uma outra roupagem, tornando-se uma publicação mista. “A prosa é muito bem escrita e nós percebemos que seria bacana utilizá-la ao longo da HQ, juntando gêneros e criando uma nova possibilidade de formato para os quadrinhos”, diz Anderson, em entrevista pro Gibizilla. “A ideia está longe de ser inventada por nós dois, mas é uma forma de contar história que não é tão utilizada”.
Ele explica que a dinâmica é simples: algumas páginas são de quadrinhos e outras são em prosa. “Mas todas são importantes para que o leitor entenda a história de forma integral”.
Como nasceu esta nova nação
Poeta, escritor e educador, Anderson tem na carreira os livros de poesia Um Poeta Crônico, Outro Poeta Crônico e A Despedida do Super Futuro. Mas, como colunista do Jovem Nerd, este colecionador de quadrinhos e nerd de carteirinha tinha um incômodo: uma inquietação de ser negro e não ser representado dignamente pela cultura pop. “Não sei exatamente quando me veio o start da história, mas tenho certeza que ela nasceu a partir de toda uma vida nerd sem me reconhecer nos personagens”.
Com o traço do quadrinista Daniel Cesart, formado em artes visuais, cocriador do espetáculo Dança em Quadrinhos e integrante dos volumes 1 e 2 da coletânea Máquina Zero, surgiu de vez o Rei Bantu. Uma espécie de Superman africano, ele se torna o eixo central de uma África reunida – e sua presença muda radicalmente a história da humanidade, influenciando não apenas na criação de um novo país, mas também na mudança de aspectos sociais, como o cinema, a moda e até o capitalismo. A linha principal deste volume inicial narra o dia em que a sede da ONU muda do Estados Unidos da América para o Estados Unidos da África.
Você já imagina que alguns líderes mundiais não estão necessariamente dispostos a aceitar esta virada tão “radical”.
“Bantu percebe que não dá para matar a fome com raios saindo dos olhos e, por conta disso, ele começa a agir rompendo muros para além dos seus poderes”, explica o autor. “Rei Bantu precisará lidar com o ódio e preconceito para manter a hegemonia dos Estados Unidos da África, pois negros no poder não são bem-vistos por outros governos”.
De Bantu para T’Challa
Obviamente que um super-herói ocupando o trono de um poderoso país africano fictício pode te lembrar do Pantera Negra. O roteirista não nega que Wakanda é referência para a concepção da história. E evoca o provérbio “sem uma liderança sábia, a nação cai”, que fala muito sobre as vontades que estão por trás de Wakanda e do Estados Unidos da África. “A questão toda é a abordagem da história”.
Além do protetor da Marvel Comics (em especial na fase de Ta-Nehisi Coates), Anderson diz ter bebido de uma mistura de influências que vem da poesia, do conto, do terror, do mundo nerd. “Eu bebo de diversas fontes e por isso tenho um trabalho tão diverso, mesmo dentro de um gênero só”. Já a arte se inspirou na fase clássica do Superman e também no trabalho de Howard Porter na Liga da Justiça, além de artistas brasileiros como Geraldo Borges, Roger Cruz, Lila Cruz, Robson Moura, Eduardo Medeiros e outros.
Agora, vem a pergunta: será que eles acham que o fã padrão de gibis de heróis, aquele que diz o tempo todo pra não misturar política com suas histórias de hominhos, ESTE cara vai entender bem a proposta? Ou a ideia da dupla não é nem falar com ESTE cara, em específico? Anderson vai na lata e diz que não acredita que nada que reproduza um padrão seja bom. “E nem acho que esse cara é o fã padrão, ele só é um atrasado que quer que ninguém mexa na sua bolha”. Bingo!
Para ele, a história de Estados Unidos da África vai muito além do gênero quadrinho, tanto pelo formato, quanto pela temática. “Tenho certeza que ela irá conversar com qualquer pessoa que queira se entreter, queira refletir, ou queira fazer os dois ao mesmo tempo. E estamos ansiosos com a possibilidade das pessoas espalharem a palavra do Rei Bantu”. E completa: “Como homem negro, entendo que a representatividade é um fortificador de afroestimas e por isso quero ver o Rei Bantu e o Estados Unidos da África dominando o mundo”.