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Falando sobre estupro nas HQs de heróis

Uma das ferramentas narrativas mais horrendas e simplórias para determinar o “empoderamento” de personagens femininas, a violência sexual não é usada apenas em HQs adultas, mas também em gibis de hominhos – chamados deste jeito não por acaso…


Por GABRIELA FRANCO
(texto originalmente escrito pro site Minas Nerds, com participação de Marcela Tang)

Não custa explicar, nem que seja pela centésima vez: o estupro é um crime hediondo que não diz respeito ao desejo sexual, mas sim uma relação de poder onde o estuprador subjuga a vítima ao seu domínio. Foi reconhecido em muitos países como arma de guerra e genocídio depois de conflitos étnicos como os que aconteceram em muitos países da África e da Europa Oriental.

Nenhuma mulher é empoderada pelo estupro, as vítimas saem com sua autoestima, fé e corpos destruídos e muitas desenvolvem depressão e pensamentos suicídas. A culpabilização da vítima vem de várias formas, desde a relativização das causas do estupro (como questionar as roupas e os hábitos da mulher), até o casamento forçado com o estuprador, costume presente em muitas culturas ao redor do mundo.

Usar o estupro como ferramenta narrativa, ou de trampolim para empoderamento de um personagem feminino, demonstra apenas uma imensa falta de criatividade e alimenta o imaginário popular de que isso é algo que pode acontecer sem maiores consequências, já que frequentemente o crime é revelado através dos olhos de um observador masculino e nunca da vítima. Além disso, é muito difícil vermos, em qualquer mídia, os transtornos pós-traumáticos decorrentes do choque que o estupro traz. Vemos apenas o resultado disso em mulheres traumatizadas, que são representadas como incapazes de amar novamente, ou fechadas a qualquer contato humano. A recuperação desse trauma também raramente é retratada, sendo o foco da dor colocado no personagem masculino que normalmente parte em busca de vingança e reparação do ato. E nunca da vítima, alquebrada em decorrência dele, o que dificulta a empatia do público com quem realmente necessita e merece.

Nos últimos anos, AINDA BEM, o que não faltam são sites especializados ou influenciadoras mais politizadas que têm batido na tecla de como a CULTURA DO ESTUPRO faz parte do DNA de nossa sociedade patriacal e que isso é resultado de um problema ESTRUTURAL da humanidade.

E como vivemos hoje num mundo em que os super-heróis da Marvel e da DC estão na moda, em especial graças aos filmes, vamos falar sim, sobre ESTUPRO NAS HQs da MARVEL E DC. Vamos falar sobre o assunto, em todos os âmbitos, em todas as mídias, até que vocês entendam e COMBATAM ações desse tipo. Para que o respeito pelo corpo e vida alheios seja TÃO NATURAL quanto, infelizmente, é, a VIOLAÇÃO do mesmo. Vamos lá:

MISS MARVEL

O caso mais emblemático da Marvel creio que tenha sido o estupro da Miss Marvel (não a Kamala Khan, mas na época, Carol Danvers, antes de se tornar Capitã Marvel) que aconteceu na edição comemorativa (olha que delícia de comemoração!) de número 200 da revista Avengers de 1980 lá fora, publicada aqui no Brasil na edição de número 17 de Grandes Heróis Marvel, pela editora Abril, em 1987, sob o título “Laços de Ternura”, da dupla David Michelinie e George Pérez.

O que acontece é que um ser de outra dimensão enxerga em Carol uma procriadora perfeita para gerar um descendente para que ele assuma uma forma humana e possa escapar de outra dimensão. Sendo assim, ele domina a mente de uma das super-heroínas MAIS PODEROSAS E INCRÍVEIS da Marvel, a leva para o LIMBO e a corteja durante um bom tempo com flores, entre outros presentes, fazendo com que ela se apaixone por ele (atenção, ela está COM A MENTE DOMINADA). Ele então a ESTUPRA e ela engravida para que seu agressor tome a forma DE SEU FILHO (WTF). Voltando à Terra, ela obviamente não entende lhufas do que está acontecendo e de repente se vê grávida.

A coisa é tão bizarra que seus colegas Vingadores não questionam, em momento algum, o fato da gravidez ter se desenvolvido tão rápido (o bebê cresceu em uma velocidade sobre-humana, um lance meio Crepúsculo) e a parabenizam, no que ela rebate dizendo “Este não é meu filho! Eu não tenho a mínima ideia de quem é o pai dele!” A criança nasce, logo vira um homem e CONTINUA DANDO EM CIMA DE CAROL, querendo transar com ela! Mais para frente é revelado que o pai verdadeiro de Marcus era Immortus (uma das faces de Kang) e que Marcus seria o vilão Centurião Escarlate.

Daria para fazer um texto INTEIRO só sobre essa história HORRENDA, mas, infelizmente só queremos fazer uma triste e bizarra lista para dar a vocês a dimensão do quanto essa cultura está arraigada e faz parte de nossa sociedade, refletindo-se também nas histórias em quadrinhos. Dominação, estupro e INCESTO. Parabéns, Marvel. Combo completo.

MARY JANE

O vilão Cameleão toma a forma de Peter Parker (Homem-Aranha), o que sugere que tenha tido relações com Mary Jane, e ela se dá conta disso. Rolou em Spectacular Spider-Man #245 (1997, escrito por J.M. De Matteis). Novamente: foi enganada, então no julgamento geral “transou com uma pessoa pensando que fosse outra”, Não importa. Era uma pessoa se aproveitando de uma situação em que a vítima havia dado permissão A OUTRA. Em outras palavras… ES-TU-PRO.


GATA NEGRA

Na minissérie de Kevin Smith, O Mal no Coração dos Homens, lindamente ilustrada por Terry Dodson, Felicia Hardy confessa a Peter que fora estuprada na faculdade. Um artifício comum usado por escritores homens que é o de desqualificar mulheres que pareçam muito poderosas, humilhando-as e fazendo-as passar por grande sofrimento para JUSTIFICAR então, esse poder. Afinal, mulher alguma pode ser tão poderosa de graça, não é mesmo? “Vamos fazê-la ser estuprada para que ela renasça tal qual a fênix das cinzas e mereça, assim, toda essa admiração vinda dos homens”. LIXO. O pior é que a minissérie é bem interessante. Mas enfim, TINHA que ter um estupro?

JESSICA JONES

Esse caso tem a versão HQ e também a versão da série do Netflix. Outra história clássica de “dominação mental” – no caso, o vilão Killgrave (aka Homem-Púrpura) tem o poder de fazer com que todos obedeçam aos seus comandos e pior, o de fazer com que sintam um sincero desejo em obedecê-lo. Sendo assim, segundo a história de Jessica, contada na série Alias do selo Marvel Max, por Brian Michael Bendis (2001), ele a mantém durante muito tempo como escrava mental e sexual.

KATIE, a namorada de Kick-Ass

Saiu originalmente pelo selo Icon, da Marvel, então entra aqui na listinha também. Não tem história nem enredo que tente explicar nada. O cara é arquinimigo do Kick-Ass, vai lá e estupra e espanca a namorada do cara, just because. Escrita (porcamente, diga-se de passagem) por Mark Millar.

VAMPIRA

Na fase pós-A Queda dos Mutantes, em Genosha (Uncanny X-Men – Chris Claremont, 1988), a nação que subjugou os X-Men, Vampira e Wolverine são derrotados. Vampira tem seus poderes bloqueados e é abusada por guardas da prisão, passando inclusive o controle de seu corpo para Carol Denvers, de quem havia absorvido poderes em outra historia (são de Carol os poderes extra que Vampira tem, como superforça e voo)

MULHER-HULK

Então, Starfox ou Eros é IRMÃO de Thanos, mas é seu oposto. Virou super-herói por ter sido salvo do próprio irmão pelos Vingadores e inclusive fez parte deles por bem pouco tempo. Seus poderes incluem “controle das emoções”. Pois bem, já devem imaginar onde isso vai dar. Um dia, uma mulher acusa Eros (saca só o nome do menino) de ter usado seus poderes para estuprá-la. Há um julgamento e durante ele Jennifer Walters (a Mulher-Hulk, que é advogada) ouve o testemunho da vítima e acaba concluindo que ele é bem parecido com o que aconteceu com ela mesma, na ocasião em que ela e o réu dormiram juntos.

No meio disso existe um longo interlúdio, mas, o que se descobre depois é que Thanos o sequestrou, implantou nele memórias, causando danos cerebrais irreparáveis e fazendo com que Eros perdesse parcialmente o controle sobre as emoções alheias. Houve uma grande discussão no mundo nerd na época do lançamento da revista, muitos fãs alegaram que, por conta do descontrole, o herói estava sendo acusado injustamente. Mas analisem: tanto a mulher que acusava Eros, quanto Jen, foram manipuladas por ele, não importa se na época ele tinha ciência disso ou não. Elas foram induzidas a ter relacionamento sexual sem consentimento, o que caracteriza ESTUPRO. Novamente um enredo que tenta, por meio de um dilema moral, INOCENTAR O AGRESSOR e CULPAR A VÍTIMA.

SUB DIBNY, a esposa do Homem-Elástico

Sue foi uma colaboradora de longa data da Liga da Justiça e desvendava mistérios ao lado de seu marido. Na minissérie Crise de Identidade, escrita por Brad Meltzer em 2004, Sue é assassinada e seu corpo carbonizado, dando início a uma série de ataques sofridos por entes queridos dos heróis. Na mesma série, descobrimos que, anos antes, Sue sofreu um estupro brutal quando o Doutor Luz invadiu o satélite da Liga da Justiça num momento em que ela estava sozinha. Para piorar, é revelado que Sue estava grávida na hora de sua morte, o que causa extremo sofrimento em seu marido. Mas, para os fãs, a merda bateu no ventilador quando se descobre que a própria Liga da Justiça optou por apagar o acontecimento da mente do vilão usando a magia de Zatanna para lhe dar uma nova personalidade, mais estúpida e domesticada. Na época, a história gerou debates entre os leitores , que questionaram a necessidade do estupro e da morte de uma personagem tão querida e de como esse crime foi usado como “plot device” para o desenvolvimento da narrativa e o modo em como o foco do sofrimento foi dado ao Homem-Elástico. Isso sem falar no final… (e o pior é que a discussão sobre a lavagem cerebral era REALMENTE boa!)

Crise de Identidade - Estupro nas HQs de Heróis
Crise de Identidade – Estupro nas HQs de Heróis

HIPÓLITA e as amazonas

A mitologia grega está repleta de cenas de estupro e os roteiristas não se incomodaram em deixar isso de fora das histórias em quadrinhos. As amazonas de Themyscira têm sua origem calcada na violência, pois elas eram mulheres que foram assassinadas por homens e tiveram suas almas reencarnadas em corpos feitos de barro. Mas isso não é tudo: as amazonas de Themyscira também foram enganadas e atacadas por Hércules e seus soldados, que as doparam para poder subjugá-las e estuprá-las. Hipólita, a rainha amazona e mãe da Mulher-Maravilha, implorou pela ajuda de Atena para se libertar, mas a deusa a fez jurar que as amazonas não se vingariam de seus algozes.

A contragosto, Hipólita aceitou as condições e Atena as libertou. Hipólita porém, traiu seu voto e as amazonas mataram seus estupradores, ato pelo qual foram punidas posteriormente. Esse é o clássico caso em que uma personagem deve ser subjugada de alguma forma, denegrindo sua imagem poderosa. Nem mesmo uma rainha está a salvo disso.

BARBARA GORDON

Em 1988, Alan Moore escreveu uma das tramas mais icônicas do Batman. A Piada Mortal conta a história do Homem Morcego tentando chegar a um entendimento com o Coringa, mas descobre que o Palhaço fugiu novamente do Asilo Arkham e tem um novo plano para levar Batman ao limite da loucura. O Coringa quer provar sua teoria de que qualquer pessoa pode surtar depois de um “dia ruim” e sua vítima é o incorruptível Comissário James Gordon.

Para atingir Gordon e o Batman, o Coringa vai até a casa do comissário e surpreende Bárbara, sua filha (e alter-ego da Batgirl) com um tiro que parte sua espinha. Não satisfeito ele tira fotos de seu corpo nu e, por fim, tudo sugere que ele a estupra (o que é OUTRA discussão frequente entre leitores). Aqui, novamente, o sofrimento de uma mulher é usado para alavancar a história de um homem. Bárbara perdeu os movimentos de suas pernas e passou a ser a Oráculo, dando margem à interpretação de que o estupro também fortalece uma mulher quando ela finalmente o supera.

ESPECTRAL

Watchmen é sem dúvida um marco nas histórias dos quadrinhos de super-heróis. E é mais uma obra que levanta a crítica de que, durante parte de sua vida, Alan Moore usou de maneira gratuita o estupro como recurso narrativo.

Na história, Sally Jupiter, a Espectral, sofre uma tentativa de estupro pelo Comediante, seu companheiro de equipe. Na cena, fica evidente o machismo do Comediante, que acredita que Sally o estava provocando com sua roupa e seu comportamento durante uma reunião dos heróis. Quando Sally tenta se livrar, o Comediante a agride e só não consegue ir às vias de fato por causa da interferência de outro companheiro de equipe.

Mais tarde ficamos sabendo que Sally acabou perdoando o Comediante e eles tiveram um relacionamento que resultou no nascimento de Laurie, a segunda Espectral. Embora o abuso nos quadrinhos seja limitado a alguns poucos quadros, no filme de 2009, dirigido por Zack Snyder, a cena toda tem mais de um minuto, se valendo de alguns bons takes do corpo esguio de Carla Gugino.

Mas quer saber o pior?

A coisa também se desenha nas editoras FORA DOS GIBIS. Lembremos do caso em que a DC Comics recentemente promoveu o editor Eddie Berganza, acusado de assédio sexual por várias profissionais do ramo, a ponto da DC isolá-lo em uma editoria composta apenas por homens. A editoria que ele passou a comandar, dos gibis do Superman, simplesmente não tinha uma mulher sequer. A DC preferiu impedir o acesso das mulheres à editoria do seu personagem mais importante do que punir o cara. Ele foi demitido apenas em 2017, quase cinco anos depois das primeiras denúncias se tornarem públicas.

Um dos grandes nomes Era de Prata da DC, Julius Schwartz, também era conhecido dentro da empresa por sua falta de decoro com as mulheres. Inclusive, foi acusado de abusar de uma menor de idade dentro de uma limousine. Schwartz nunca sofreu punição devido ao silenciamento de suas vítimas, que eram pressionadas a não prestar queixas e ameaçadas com a perda de seus empregos.

Onde foram parar os super-heróis em momentos como estes mesmo?