This is Fine: uma década de meme e luta pelos direitos
Dez anos depois da publicação, o cartunista americano KC Green, criador daquela tirinha com o cão ~tranquilamente no meio de uma sala em chamas, sabe que quando uma arte é ABSORVIDA pela internet, não tem mais volta. Mas digamos que ele preza por deixar as coisas nos seus devidos lugares…
Por THIAGO CARDIM
(publicado originalmente no JUDÃO.com.br)
Direito autoral é mesmo uma parada complicada quando a gente fala do ambiente digital, saca? É disco que vaza aqui, é série pra baixar no torrent acolá, uma coisa louca. Imagina só então quando a gente tá falando de um desenho que cumpre o verbo mais concorrido pelos publicitários, VIRALIZA, e aí se transforma em meme? Como controlar o que diabos vai acontecer com ele depois que cai nas graças da galera? As muitas versões, redesenhos, remixes, estas coisas todas? Bom, isso tudo faz parte do dia a dia do americano KC Green desde 2013, pelo menos. E ele tem jeitos bem interessantes de garantir que sua criação não seja usada do jeito errado.
Residindo em Massachusetts, este cartunista de 32 anos é responsável por dois dos quadrinhos que melhor representam o mundo caótico que se desdobra ao nosso redor e como a gente vem tentando a todo custo manter a sanidade. No caso, estamos falando do meme This is Fine, aquele do simpático cachorrinho de chapéu tomando um café e tentando convencer a si mesmo que está tudo bem enquanto a sala ao seu redor é consumida pelas chamas. Quem nunca usou uma variação deste meme em alguma altura dos últimos anos? Pois é, imaginei que você estivesse com os braços bem pra baixo neste momento…
Batizada originalmente de On Fire, a tira que na verdade tem seis quadrinhos foi publicada há seis anos, como parte de um webcomic chamado Gunshow, hoje um projeto encerrado por Green. “Eu costumo escrever bastante apenas abrindo um documento em branco e digitando coisas que pulam da minha cabeça, que estavam simplesmente presas lá”, explica ele, em entrevista ao Vulture. “É só uma escrita meio randômica. Creio que o documento estava apenas lá e aí eu escrevi apenas ‘está tudo bem, estou completamente okay com tudo isso’. E aí a cara de alguém derrete, porque estão num lugar em chamas. Foi só isso que precisou para eu ter uma ideia. Aí olhei praquilo e pensei que tava bom, vamos usar”. E parte pro desenho.
Olhando em retrospectiva, o artista suspeita que a origem da tira na verdade deve ter tido relação com os ajustes que ele tinha feito recentemente nos antidepressivos que tomava. “Parecia que as coisas ao meu redor… parecia que eu estava ignorando o problema, basicamente. Uma parte de mim se perguntava se os remédios estavam tirando minhas emoções de mim ou algo assim”, revela ele. Para estrelar a ideia, ninguém melhor do que o cachorro que ele chamava de Question Hound, uma espécie de mascote não-oficial do Gunshow desde a estreia e que era inspirado num cachorrinho que Green rabiscava quando era moleque.
Mas aí a coisa ganhou uma proporção que ele nem imaginava
Honestamente, como Green não tem lá muito o hábito de checar as estatísticas de seus sites, ele nem fazia ideia se o diabo da tirinha tava fazendo sucesso. “Fiquei feliz que aquilo estava ali”, confessou, depois complementando: “Mas pra mim também foi: legal, tô seguindo o cronograma, este foi o quadrinho da quarta-feira, hora de começar a pensar naquele que publicarei na sexta-feira”. Mal imaginava ele…
Em 2006, Green já tinha experimentado um tanto do sabor do sucesso. Como parte de Horribleville, outra finada série de quadrinhos, o cara publicou uma tira na qual um personagem desenha uma PIROCA antropomórfica batizada de Dick Butt. Fazia sentido pra piada como um todo, claro, mas a imagem do desenho bizarro ~viralizou em certos círculos e saiu do seu controle. Virou GIF, foi parar em vídeos do YouTube (com direito até a um modelo 3D), apareceu no Buzzfeed, no 4chan, virou verbete no Urban Dictionary… “Pra ser honesto, o tipo de pessoa que tava usando aquilo era o tipo de pessoa com o qual não quero falar”, afirmou. “Eu deixei os direitos passarem ali, então os idiotas podem usar o quanto quiserem”.
Só que mesmo perdendo ESTA batalha, o cara começou a sacar como deveria lutar a guerra. De acordo com os arqueólogos digitais do Know Your Meme, pouco tempo depois que a tira On Fire foi publicada, aqueles já famosos dois quadrinhos iniciais foram parar num sub-board do 4chan dedicado a videogames retrô. Logo depois, se espalhou pelo Reddit, pelo Imgur e a história toda feita. Green não se importou a princípio. Aliás, na verdade, ele não liga quando PESSOAS usam o desenho, fazem novas versões, estas coisas todas, desde que não estejam associadas a nada particularmente repugnante. Ganhou lá uma grana quando o Adult Swim resolveu fazer uma versão animada da tira para uma vinheta na TV, aquela coisa.
O cenário começou a mudar com a campanha presidencial nos EUA em 2016. O cachorrinho virou recurso recorrente de ambos os lados em meio a um ambiente eleitoral repleto de bizarrices. Foi aí que o meme começou a mergulhar em águas que ele passou a não curtir.
E quando o Twitter oficial do Partido Republicano publicou a tira para se referir a um clima quase anárquico que teria acontecido numa convenção nacional do Partido democrata, usando a hashtag #EnoughClinton, Green achou que um limite perigoso tinha sido cruzado. “Esta galera usando meu trampo como piada e eu pensando ‘gente, tirem meu nome da boca de vocês’”, revela. “Todo mundo tem o direito de usar o ‘This is Fine’ em seus posts de redes sociais”, escreveu o próprio autor no Twitter. “Mas cara, eu pessoalmente gostaria que eles deletassem aquele post estúpido”. A partir de então, Green se tornou o seu próprio defensor.
Quando o The Daily Show postou uma versão da imagem com a marca d’água deles, o cartunista reclamou, foi atrás dos seus direitos e acabou sendo pago por isso. “Era isso que eu queria. Ser respeitado como cartunista. Esta não é uma imagem genérica na qual você aplica sua marca do lado e tudo bem”. Outra coisa que emputece o cara? Quando alguém resolve ganhar dinheiro com seu desenho sem ao menos consultá-lo. Sabe aqueles sites de camisetas com estampas enviadas pelos usuários? Ele entra na maioria (muitas vezes avisado por seus próprios fãs) e logo manda um e-mail reclamando seus direitos. “Já fiz isso tantas vezes que os caras já deviam me conhecer. Vocês não checam estas merdas até que alguém reclame?”. A resposta eu sei, você sabe e ele também. 😉
E o cara também começou a combater situações como esta usando a mesma arma — no caso, roubando a ideia do ladrão. “Ah, eles queriam fazer uma bolsa com a tira? Bom, eu vou lá e faço esta bolsa. Tem uma camiseta ali com os dois quadrinhos famosos? Então eu faço isso, que é o que as pessoas querem”. E faz isso na sua própria loja online, é bom que se diga, um lugar que tem camisetas, moletons, meias, pelúcias, adesivos, imãs, canecas…
“As pessoas argumentam com ‘a informação quer ser livre, as piadas querem ser livres’. Isso é muito estúpido”, defende Green. “Isso é uma bosta de argumento, pra ser honesto. (…) Quando chegam pra mim ‘ah, é só uma piada, não é grande coisa’, eu logo respondo ‘você fez com que fosse grande coisa pra você e agora não é? Sou uma pessoa tentando manter sua propriedade intelectual, sei lá, tentando manter seu trabalho. É frustrante pra caralho. O humor é uma arma importante e que ninguém leva a sério. Eles dizem ‘ah, é só uma piada’, mas foram as piadas que levaram Donald Trump à presidência. Não sei dizer nada além de CALA A BOCA”.