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Alan Moore

Alan Moore e a eleição sobre o fio da navalha no Brasil

Anarquista convicto, o escritor inglês Alan Moore, responsável por clássicos dos quadrinhos como Watchmen e V de Vingança, publica carta aberta em apoio a Lula e contra Bolsonaro

Por THIAGO CARDIM

Se você é da turma que grita aos quatro cantos que política não tem espaço no seu gibizinho, muito provavelmente jamais deve ter lido qualquer coisa escrita por Alan Moore, um dos mais festejados autores de HQs da história. Ou se leu, sei lá, talvez não tenha sequer prestado atenção para além das figuras. Anarquista desde sempre, o roteirista sempre teve um olhar afiado sobre política em suas obras, algumas vezes bem direto, em outras um tanto delicado, ali nas entrelinhas. Ler Watchmen, V de Vingança, Miracleman, Do Inferno ou aquela fase incrível do Monstro do Pântano, isso só pra citar alguns exemplos célebres, e não enxergar as sutilezas críticas é simplesmente ignorar a parte mais poderosa da obra.

Apesar de avesso a entrevistas e aparições públicas, Moore sempre se posicionou politicamente – inclusive numa famosa contenda pública com Frank Miller a respeito do movimento Occupy Wall Street. Em 2019, ele fez questão de vir novamente à público afirmar que, apesar de seu anarquismo, apesar de ter votado apenas uma rara vez na vida, iria sair de casa para registrar seu voto contra os conservadores na disputa pelo cargo de primeiro-ministro, justamente por entender que aquela era uma situação histórica e que demandava posicionamento firme contra o crescimento da extrema-direita.

Agora, Moore volta a se manifestar de forma semelhante – só que a respeito da situação política no Brasil. Na sexta-feira (28 de out), pouco antes do segundo turno das eleições presidenciais, o autor escreveu uma carta aberta publicada em suas redes sociais, na qual critica duramente o atual presidente Bolsonaro e manifesta seu apoio a Lula.

A íntegra do texto você lê abaixo. A tradução é da nossa Gabriela Franco.

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Querido Brasil,

Estamos esgotando rapidamente nossas chances de salvar o planeta e seus habitantes. Nosso mundo está mudando mais rápido do que nunca e nos forçando a nos adaptar ainda mais rapidamente, se quisermos sobreviver. Passamos de uma sociedade de caçadores-coletores à agricultura, da agricultura à indústria, da indústria para o que quer que esteja tomando forma agora – essa nova condição para a qual ainda não temos um nome – a humanidade já viu esse tipo de mudança monumental antes, embora não com tanta rapidez.  Essas transições não são causadas por forças políticas, mas pelos movimentos da maré irrefreável ​​da história e da tecnologia, maré essa que podemos aproveitar e navegar ou sermos simplesmente tragados por ela. A Terra está girando, se transformando em um novo lugar e tudo o que podemos fazer é girar com ela ou então perderemos a biosfera que nos sustenta para sempre. A maioria das pessoas, acredito, tem isso como certo, em seu íntimo.

E, no entanto, nos últimos cinco anos, temos visto em todo o mundo o ressurgimento feroz de ideias políticas e econômicas que nos levaram diretamente a essa situação, claramente desastrosa. A investida indisfarçável desse avanço de extrema direita me parece tão forte e ao mesmo tempo tão desconectada de qualquer realidade, que só pode nascer do desespero; o medo histérico sentido por aqueles que ocupam as posições de poder do velho mundo, que sabem que o novo mundo pode, em última instância, não ser lugar para eles. Temendo por sua própria existência, pela existência da visão de mundo da qual se beneficiam, eles encheram o cenário mundial ao longo desta última meia década com personagens de uma pantomima cada vez mais barulhentos, exagerados e desequilibrados, para quem suas ações, por mais corruptas ou desumanas que sejam, e sua linha de raciocínio, por mais absurda que pareça, sejam encaradas como algo normal.


Descaradamente monstruosos, eles perseguiram minorias raciais e religiosas, povos nativos, os pobres, as mulheres, pessoas LGBTQIA+ ou todas as anteriores. 

Durante a pandemia, em crescente evolução, eles priorizam a politicagem e a economia em detrimento da segurança da população, o que acarretou em centenas de milhares de mortes; centenas de milhares de famílias assoladas, comunidades inteiras destruídas. 

Com seus países em chamas, inundados por enchentes ou mirrados pela seca, eles insistiram na narrativa de que a mudança climática era uma farsa esquerdista para atrapalhar a economia e chamaram manifestantes ambientais e sociais de terroristas.

No melhor estilo circense fascista inspirado no italiano Silvio Berlusconi, observamos a perigosa farsa subversiva de Donald Trump nos EUA e as faustosas imoralidades de Boris Johnson e seus substitutos (atuais) no Reino Unido. E, claro, o Brasil teve Jair Bolsonaro.

Embora nós, deste lado do mundo, tenhamos contribuído muito mais do que deveríamos com figuras políticas horríveis para a situação atual, não conheço ninguém com o mínimo de consciência e compaixão que não esteja chocado com o que Bolsonaro, lambe-botas do Trump, fez ao seu enorme e belo país, sem contar com o que ele ele insiste em fazer com nosso relativamente pequeno e, ainda de alguma forma, belo planeta. Assistimos desesperados enquanto, seguindo a cartilha de seu mestre estadunidense, Bolsonaro criticou os povos indígenas do Brasil, a população LGBTQIA+, negou às mulheres o direito a abortos seguros, alimentando uma fogueira descontrolada de ódio como uma distração para implementar seus interesses sociais e econômicos, ao mesmo tempo que induz a uma cultura armamentista. Nós presenciamos seu discurso durante a pandemia, cuspindo sua idiotice antivacinação, e acompanhamos o crescimento das áreas preparadas às pressas em cemitérios para enterrar as pessoas no Brasil; aquelas divisões tristes em solo cinza com flores mortas aqui e ali e lápides mal e porcamente pintadas.


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Também observamos enquanto ele respondia à perspectiva de novas leis ambientais internacionais simplesmente acelerando a destruição suicida da Amazônia, sufocando nossa atmosfera com a selva em chamas, deslocando ou dispensando pessoas que viviam nessas regiões por gerações e aparentemente conspirando ou fechando os olhos para o assassinato de jornalistas que investigavam essa brutal limpeza étnica. Uma respeitada revista científica britânica que eu assino, a New Scientist, recentemente descreveu as eleições iminentes no Brasil como sendo um ponto sem retorno na batalha de vida ou morte de nossa espécie contra a catástrofe climática com a qual nós mesmos contribuímos. Trocando em miúdos, ou Jair Bolsonaro continua a lucrar e a satisfazer os interesses econômicos e corporativos daqueles que o apoiam, ou nossos filhos e netos vão comer e respirar no futuro. Ou uma coisa ou outra.

Como anarquista que sou, confesso que existem pouquíssimos líderes políticos cujo trabalho eu tolero e muito menos endosso, mas de tudo o que ouvi e li sobre ele, Luiz da Silva, Lula, parece ser um desses indivíduos raros. Suas políticas parecem ser justas, humanas e práticas e, pelo que entendi, ele prometeu reverter muitas das decisões mais desastrosas de Bolsonaro. Reparar os danos desses últimos cinco anos certamente não será fácil nem muito menos barato, e Lula vai assumir um cenário político completamente desfigurado. No mínimo, porém, de onde estou, pelo menos vejo que ele tem o olhar de um candidato que reconhece que a humanidade está passando por uma de suas raras transformações críticas e percebe que devemos mudar a maneira como vivemos, se quisermos sobreviver.

Ele parece um político comprometido com o futuro, com o trabalho árduo e oferece possibilidades justas e maravilhosas, ao invés vez dos terríveis e destrutivos espasmos de morte advindos de um passado insustentável.

O equilíbrio da próxima eleição do Brasil está, segundo me disseram, sobre o fio da navalha  e, como discutido acima, o mundo inteiro está apostando nela. Se você já gostou de algum dos meus trabalhos, ou sentiu alguma simpatia pela verve humanitária dos mesmos, por favor, vá e vote por um futuro que seja satisfatório para os seres humanos, por um mundo que seja mais do que a latrina dourada do sistema e seus fantoches.

Deixemos as iniquidades dos últimos cinco, ou talvez dos últimos quinhentos anos, para trás.

Com amor e confiança,

Seu amigo,

Alan Moore x

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