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Guitar City e um mundo no qual a culpa é toda do rock

Batemos um papo em alto volume com o Ron Selistre sobre a nova HQ da Draco, uma jornada bem barulhenta de ascensão e queda

Por THIAGO CARDIM

Em sua canção Rock do Diabo, quando Raul Seixas disse com todas as letras que “o diabo é o pai do rock”, na real ele estava apenas apavorando papais e mamães conservadores e também reforçando uma conexão que já é dada como certa desde sempre. De Black Sabbath a Rolling Stones, passando pela turma do black metal e pelos caras do Ghost, o tinhoso sempre esteve de alguma forma conectado com o gênero e seus muitos subgêneros. Mas e se o buraco fosse, no fim, bem mais embaixo do que esse?

Com base neste conceito praticamente pentecostal, o quadrinista Ron Selistre imaginou uma realidade em que o mundo tinha de fato se perdido por causa do rock, um mundo onde o rock ‘n’ roll tinha sido a causa de tudo ter dado errado. Não foi o capitalismo, nem as religiões, nem a política. Foi tudo culpa do rock ‘n’ roll mesmo. “De onde teria vindo essa música? Do inferno? Não exatamente, isso seria banal. O rock teria vindo de algum lugar muito específico da criação”, diz ele, em entrevista exclusiva pro Gibizilla. “A partir daí surgiu uma história que foi ganhando camadas e camadas e de repente havia todo um plano cósmico completamente ridículo envolvendo o destino da Terra e a trajetória de um jovem desajustado”.

Foi aí que pintou Guitar City, Underground, novo lançamento da Draco Editora, que Selistre escreve e desenha, contando com apoio dos traços de Flavio A. Barboza, com quem compartilha um gosto peculiar por gibis undeground dos anos 1980 e 1990.

O resultado é a jornada sobrenatural do músico Vlaksa Versato, que retornou da terra dos pés juntos empunhando seu violoncelo elétrico para salvar um mundo devastado pelo próprio rock. Ele é guiado por uma entidade chamada Jason Christian, que vai guiar o protagonista por gravadoras picaretas, shows em casas decadentes, lojas de disco falidas e, por fim, pela trilha para o sucesso. E tudo que Vlaksa precisa é montar uma banda e tocar suas músicas, para salvar um mundo que ele detesta, usando a música que ele ama e tocando um instrumento que ninguém ao seu redor entende.

Do rock para o rock e com um gibi no meio

Oriundo do cenário dos fanzines de Porto Alegre, Selistre tem bastante repertório para contar a história de um roqueiro que é tão avesso a tudo que nem guitarra usa. Afinal, o ex-vocalista e guitarrista da banda Damn Laser Vampires continua não apenas fazendo gibis mas também fazendo música, diretamente da cidade onde mora, no interior do Rio Grande do Sul. Inclusive, ele é responsável pelo projeto solo Solomon Death, que inclusive serviu de trilha sonora pros gibis da série Apagão.

Mas, enquanto estava escrevendo e desenhando Guitar City, o que rolava nos fones dele eram OUTROS sons que não os seus próprios. No caso, muito pós punk, principalmente. Bauhaus, The Fall, Jesus and Mary Chain. E um tanto de glam, tipo New York Dolls e David Bowie. “Tudo em fita! Tinha muitas caixas cheias de fitas, teve coisa que ouvi até literalmente arrebentar”.

Mas isso seria o que próprio Vlaksa escuta? O autor acredita que não. “Acho que ele ouve coisas mais difíceis. Throbbing Gristle. Swans. Current 93. Isso não reflete necessariamente na música que ele faz”, diz. Caso não tenha ligado os nomes às pessoas, a gente esclarece – respectivamente, uma banda britânica de música industrial, uma banda americana indie experimental e outra banda americana, igualmente experimental, só que flertando mais com o folk. “Gosto também de pensar que ele não ouve outra música além da que existe na sua própria cabeça, mais ou menos como o Beethoven. Na HQ, a imprensa o apelida de Mozart Elétrico por não conseguir defini-lo, e a ideia é que eles queriam dizer Beethoven mas erraram até nisso”.

Página de Guitar City
Página de Guitar City

Agora, ainda dentro do ambiente musical, mas já fazendo a mistura com as HQs, eu quis saber quais obras podem ter servido como principais referências no combo gibi com rock n’ roll e que não fossem Batman, Mad, Ramones e Motorhead (se você entendeu a referência, toma aí o meu abraço). “Penso sempre em Love And Rockets, dos irmãos Hernandez. Foi provavelmente a maior influência”, diz ele. Mas o quadrinista dá um passo adiante. “Pra além disso, os zines de xerox dos 80 e 90 me influenciaram em muita coisa”.

Em Porto Alegre, na adolescência, Ron conheceu muitos zines dedicados a bandas e vários deles traziam quadrinhos. “Muitas das minhas bandas favoritas conheci naqueles zines, que eu descobria me embrenhando por galerias e muquifos escondidos no centro da cidade. Então posso dizer que esse foi um universo que se descortinou inteiro na minha frente como uma coisa só, a música, os quadrinhos independentes, a própria cidade à minha volta. Esse é o meu background”.

Melhor aprendizado, impossível.

Gibi pra OUVIR

Por se tratar de uma mídia tão VISUAL mas sem a possibilidade de som, fiquei curioso pra descobrir como diabos (sempre ele…) o Ron fez para fazer o leitor minimamente SENTIR que estava ouvindo algo para além do uso simples das onomatopeias. Afinal, é uma história sobre rock, portanto… “Essa é uma das coisas que fazem quadrinhos serem um meio tão interessante”, explica ele. “Guitar City foi pensada originalmente em cores, depois a ideia das cores foi abandonada, e durante muito tempo ela foi um projeto destinado a ser todo em preto e branco (tipo um zine gigante mesmo)”.

Mas um dia, o autor experimentou colorir algumas passagens e gostou do resultado: as cores que estavam vindo ali não eram contidas e estudadas – eram berrantes, escandalosas. “Aquilo fez muito sentido, mas eu não entendi por quê. Demorei pra me dar conta de que na real eu estava instintivamente buscando simular o som usando uma paleta que gritasse”. Como o tema era rock ‘n’ roll, ele queria aumentar o volume e acabou fazendo isso com as cores.

“Quando essa ideia se esclareceu pra mim, pude passar a usar a cor de modo abertamente narrativo”, diz. “No capítulo 5, isso fica muito nítido”.

Gibi pra xóvem ou pra véio reaça?

Falar de rock me faz instintivamente querer discutir o tanto de roqueiro, sejam fãs ou músicos, que saíram do bueiro nos últimos anos com ideias tortas protegendo este diabo de governo retrógrado e posturas bizarras como ditadura, machismo, racismo, homofobia e por aí vai. Ron ressalta que o rock é uma linguagem livre e essa ideia é tratada muito honestamente na HQ. “As preferências por estilos e formatos, essas sim variam, mas a experiência do rock como expressão humana não está restrita a regra nenhuma”.

E então a gente entra numa discussão que, pra ele, é complicada e ao mesmo tempo não é – mas que ele enxerga como algo muito importante. A gente consegue ter orgulho de dizer que ainda gosta de rock? “A gente tem que ter sempre uma coisa bem clara – na verdade duas coisas. Primeiro, que rock ‘n’ roll (como estilo de vida, se quiser, mas aqui me refiro à música) não é necessariamente sobre você ser uma boa pessoa, rs. Isso é um princípio muito impopular do rock, mas é verdade. A invenção, a ideia, a razão de existir da música rock, é sacanagem, são os baixos instintos, é o sexo, a raiva, a violência”.

Página de Guitar City
Página de Guitar City

Ron continua dizendo que, apesar de toda uma tendência histórica de se vender o rock como um veículo de alegria e confraternização – o tal “som da liberdade” – , na essência ele é o som do vômito. Isso mesmo. No caso, a música do expurgo, a dança da convulsão. “O rock é aquela música que dá voz e grito à nossa sombra. O ponto delicado aqui é que isso pode ser entendido como uma legitimação das manifestações de ignorância que se pode praticar em nome dessa sombra, uma carta branca pra ódio e violência, e aqui está a segunda coisa que a gente precisa ter muito clara: o rock não é a legitimação da violência, ele é o redirecionamento dessa violência em forma de música”.

O autor reforça que esta libertação sempre existiu nas artes e o rock não foi a primeira ferramenta a ser forjada pra fazer esse trabalho. “Mas foi, na sua vez, uma tradução nova dessa necessidade em forma de música e comportamento”.

Para ele, o levante deste tipo mais grosseiro de pensamento, com o fenômeno “recente” do roqueiro reaça chamando atenção, não tem nada de surpreendente. Porque, de acordo com Ron, o rock ‘n’ roll não te torna necessariamente uma pessoa melhor ou pior, assim como não é necessariamente indicador de bom gosto ou de qualquer coisa que seja oposta a isso.

“Não acho que seja o caso de a gente se preocupar se ainda vai dar pra ter orgulho de dizer que ouve rock; eu penso que é justamente sobre não precisar se orgulhar de nada, já que no fundo somos todos potencialmente destrutivos”, opina. “O rock manifesta esse estado de igualdade na sua linguagem própria. Atrelar a preferência pelo rock (ou a aversão a ele) a um determinado tipo de caráter é olhar pra ambos, o caráter humano e a música, por uma lente embaçada. Não importa qual seja a aparência superficial que o rock venha a assumir, ele traz lá na sua gênese o que ele é, puro e simples: tosse. Escarro. Expectoração em forma de música”.

O escritor e desenhista de Guitar City diz que o rock vai ajudar a lidar com o que temos aqui dentro, mas a responsabilidade do que fazer com isso é de cada um de nós. “E aí cabe a mim direcionar a minha raiva pra desobediência, direcionar a minha violência pra luta por direitos, enfim. Mas jamais negar que a raiva e a violência são parte tanto de mim, um antifascista, quanto do roqueiro ultradireitista mais horrendo. O rock existe nessa complexidade e está muito à vontade ali, como um agente despertador dessa energia primitiva. Isso o torna muito valioso”.

Mergulhe de cabeça nesta catarse, pois então, acessando o Catarse (desculpa, foi péssimo, mas não resisti) de Guitar City para apoiar o projeto e garantir a sua edição.