Os 25 anos de uma pequena pérola chamada Procura-se Amy
Único grande filme da carreira do cineasta Kevin Smith, produção fala de amor de um jeito que ainda soa tristemente atual
Por THIAGO CARDIM
Eu já disse algumas vezes, mas não custa repetir – apesar de todos os pesares, eu gosto muito do Kevin Smith. Sério mesmo. Acho um cara divertido, talentoso, esforçado, que nos últimos anos soube não apenas se reinventar mas também amadurecer para um mundo em que é pai, um mundo que mudou para além de suas piadas de peido e maconha (ainda bem, aliás). Tá bom, eu também digo e repito que acho ele mais interessante até como roteirista de quadrinhos (vide suas passagens pelo Arqueiro Verde e pelo Demolidor) do que como cineasta. Mas paciência. Aí é outra discussão.
Eu e o chapa Paulo Martini, um dos meus grandes irmãos da província santista, temos uma conexão emocional considerável com a obra cinematográfica do Smith por conta da dupla de personagens Jay & Silent Bob. Em nosso primeiro projeto de conteúdo na internet, usávamos as fotos deles como avatares, quando ainda estávamos naquela vibe de manter as “identidades secretas”. E quando saiu Barrados no Shopping, BOOM, nossas cabeças explodiram com aquelas piadas imbecis sobre quadrinhos, cristalizadas na figura do Brodie e sua fixação pelo pênis dos super-heróis. Mas este é o meu filme favorito do Kevin Smith? Nem de longe.
Embora eu seja declaradamente apaixonado, por motivos de ser PAI, pela comédia romântica Menina dos Olhos, que não tem os personagens recorrentes e nem sequer faz parte do chamado View Askewniverse, não dá pra negar que a GRANDE obra da filmografia do cineasta é Procura-se Amy. Aliás, vamos lá – pode ser uma declaração até meio dura, mas talvez seja o único FILME de verdade na carreira dele. Um daqueles que estão longe de ser somente uma coleção de gags e piadas sobre cultura pop e dois caras chapados.
Procura-se Amy está completando, esta semana, 25 anos de seu lançamento. E continua sendo um filme que você PRECISA ver. Porque incrivelmente, não envelheceu. Continua relevante, atual, com uma discussão dura não apenas sobre homofobia mas também sobre machismo.
E com o retrato mais cruel que o próprio Smith poderia fazer de si mesmo.
Quase uma autobiografia. Misturada com terapia.
Procura-se Amy é um projeto que Kevin Smith dirigiu na cara e na coragem, peitando a Miramax e dizendo que ia rodar do jeito dele, com os atores que escolheu e que, se eles curtissem o resultado, aí iam poder distribuir. Era o cara de O Balconista, tinha lá sua moral. Deu no que deu. Não fez, obviamente, uma fortuna de bilheteria. Mas virou cult. Foi redescoberto. E até hoje é discutido e dissecado, diferente de toda a coleção de besteirol que ele fez antes e depois.
Na história, pra resumir, o quadrinista Holden McNeil (Ben Affleck), autor de uma história blockbuster de super-heróis, conhece e se apaixona loucamente pela desenhista indie Alyssa Jones (Joey Lauren Adams). Mas o ponto é que ela só se envolve com mulheres. Eles se tornam grandes amigos mas, depois de uma dose considerável de sofrimento (causado inclusive pelos ciúmes do sócio de Holden, Banky Edwards, vivido incrivelmente por Jason Lee), acabam se enrolando um no outro pra valer. Ela é alvo do preconceito das amigas lésbicas, mas é ele quem perde a razão por completo quando descobre detalhes sobre o passado da namorada, que não apenas já tinha transado com homens mas também feito ménage e a porra toda. Holden então se sente diminuído. E aí se segue aquela que talvez seja a maior quantidade de MERDA já feita por um homem hétero no cinema mundial, uma atrás da outra. Não vou contar o que é para evitar spoilers na conta de quem não tenha visto. Mas ainda hoje, quando revejo, continuo gritando pra TV “não, cara, não faz isso”. E ele FAZ.
Ou seja… pra ele, transar com mulheres, tudo bem. Mas imaginar que sua namorada já teve outros homens antes dele e foi “capaz” de experiências mais picantes, é ultrajante para a sua autoestima de macho. Nem mesmo quando ela diz que nunca esteve tão feliz e satisfeita quanto ao seu lado, o bichinho do ciúmes o deixa em paz.
Embora parte da trama tenha sido pinçada de Go Fish, filme ainda mais independente (ou seja, com muito menos orçamento, kkkcrying) de uma amiga do cineasta, Guinevere Turner, no qual uma personagem lésbica imagina que será julgada pelas amigas ao trepar com um cara, o grosso da história é inspirado no relacionamento do próprio Kevin Smith na época. E ele namorava com ninguém menos do que a própria atriz principal de Procura-se Amy, Joey Lauren Adams.
Em um texto absolutamente comovente que AINDA está no ar lá no site da produtora de Smith (reparem no visual retrô da parada), o diretor abre o coração sobre esta história toda. Sobre a honestidade que foi necessária para que ele contasse como se portou como um imbecil com a mulher que amava. “Ela não é gay, eu nunca me apaixonei por uma lésbica, mas o filme surgiu da minha inabilidade de lidar com o passado de Joey”, confessa ele. “Quando começamos a namorar, ficou nítido o como éramos diferentes. (…) Eu era um cara de Nova Jersey, feliz em viver e morrer naquele raio de 30 km onde tinha passado toda a minha vida até ali. E ela era do Arkansas, mas viajou pra Austrália, Bali, Nova Orleans, San Diego e aí fincou raízes em Los Angeles. Eu gosto de meus encontros pequenos e íntimos, ela curte reuniões imensas, barulhentas, reunindo gente de todos os tipos. Mas nada se compara às diferenças sobre nossas experiências sexuais”.
Smith diz que suas inseguranças vieram justamente da comparação com as pessoas que teriam passado pela cama de Joey. Que ele seria um cara simples, sem muitas experiências, que se achava muito liberal e aberto… mas que, ao se deparar com as histórias de sua parceira, se viu num papel ultraconservador, do dominador que se sentiu dominado… “A terapia mais efetiva, eu acredito, foi escrever, rodar e exibir Procura-se Amy”, confessa, com todas as letras.
O alter ego de Kevin Smith nunca foi Silent Bob
A gente tá acostumado a enxergar Smith aparecendo em seus próprios filmes como o eterno e silencioso parceiro de Jay (Jason Mewes, um de seus melhores amigos na vida real), personagem recorrente em 90% dos filmes do autor e ainda participação especial em OUTRAS produções. Mas a verdade é que ele está longe de ser uma representação do próprio cineasta, aquele alter ego que diversos diretores autorais e biográficos costumam ter. Smith admite que Holden, isso sim, é o mais próximo dele mesmo que o próprio roteirista já escreveu.
Assim sendo, a cena na qual Silent Bob enfim abre a boca para contar a sua história, calando o falastrão Jay enquanto revela para Holden sua relação com a tal Amy do título, é praticamente o Homem-Animal encontrando com o próprio Grant Morrison nos gibis, conforme o próprio Kevão descreve. “Esta cena é sempre esquisita de assistir. Este filme sou eu lá, exposto para o mundo inteiro ver. E isso é assustador”.
No fim, o cineasta diz que ama este filme até a morte. “Ele vai ser sempre o mais próximo do meu coração por razões óbvias e pelas não tão óbvias assim. (…) Eu cresci fazendo este filme, tanto no ofício do cinema quanto pessoalmente. Espero que te leve a algum lugar… de preferência no coração”.
Muitos anos mais tarde, corta pra Jay & Silent Bob Reboot, seu filme mais recente, lançado em 2020. E que tem uma delicada conversa entre Jay (que, na trama, descobre ter uma filha adolescente da qual não sabia) e Holden McNeil, justamente o protagonista de Procura-se Amy e que agora também tem uma filha — uma garotinha linda curiosamente vivida pela filha de Jason Mewes, o intérprete de Jay. Ali, Smith faz uma amarração certeira do final de Procura-se Amy, de um jeito adulto e que foge da obviedade do “final feliz”. É um final e, de certa forma, até que é feliz, embora não seja o que ele ou a gente esperasse. E a vida real é assim mesmo, não?
E pra enriquecer ainda mais a conversa…
Cinco anos atrás, quando Procura-se Amy completou suas duas décadas de existência, eu escrevi junto com o Borbs o roteiro para ESTE vídeo, que foi publicado no canal do JUDÃO.com.br no YouTube. Na época, achei o capítulo mais foda da incursão do nosso Thiago Borbolla nestes vídeos dissecando aspectos da cultura pop. Pois continuo achando, sem qualquer traço de dúvida. Dá pra sentir a força e a emoção em cada palavra que ele diz. Dá o play aí porque é o complemento ideal pra este texto.