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A falsa aposentadoria dos ícones britânicos do Uriah Heep

Em pleno palco de São Paulo, a banda meio que desmente todo o conceito da atual turnê pelo Brasil – fazendo um belíssimo show para todos os públicos

Por THIAGO CARDIM

Assim, se você foi a um dos shows do quinteto inglês Uriah Heep nesta atual turnê pela América Latina atraído pela promessa de que se tratava de uma “despedida”, devidamente batizada de “The Magician’s Farewell”, preciso te dizer que a coisa não é bem assim. E nem sou eu que estou falando, mas sim o vocalista Bernie Shaw, que pouco antes da canção “The Magician’s Birthday” em pleno palco do Tokio Marine Hall, em São Paulo, deu a letra: “Não vamos a lugar nenhum”.

“Rolou um pouco de controvérsia internamente quando batizamos esta turnê”, explicou ele, diante de uma casa de shows lotada e fervendo a cada canção executada com boas e equilibradas doses de tesão e precisão. “Não estamos nos aposentando. Só diminuindo o ritmo para que possamos estar mais tempo com nossa família e amigos. Mas continuaremos fazendo turnês, com maior espaço de tempo entre elas, e também lançando novos discos”. E pra completar, pouco antes do hit máximo “Easy Livin’”, a promessa: “sim, voltaremos ao Brasil, nos veremos em breve”. Delírio completo e absoluto da torcida já pedindo bis.

Já na abertura executada pela ótima banda paulistana Allen Key, cuja sonoridade mais pesada e agressiva poderia inicialmente parecer não combinar com o Uriah Heep (como a própria vocalista Karina Menascé bem admitiu), ficou claro que o clima ali era de festa, de celebração, e não de tristeza por conta de um suposto “adeus”. O Allen Key foi muitíssimo bem-recebido por um público majoritariamente mais velho, numa pegada classic rock, e aproveitou a chance para mostrar o seu poderio sonoro. No fim, mesmo com as diferenças, foi uma ótima escolha.

Subestimados sim, mas jamais vitimizados

Esta semana, o guitarrista e atual líder do Angra, Rafael Bittencourt, deu uma declaração, a convite da própria produtora Top Link – responsável por trazer o Uriah Heep ao Brasil, diga-se – na qual afirmava que o grupo fundado pelo guitarrista Mick Box é “subestimado”. Disse o músico brasileiro que eles “fizeram grandes composições e influenciaram muitas outras bandas. Eles têm um papel importante ao inspirar outros grupos”.

Sobre isso, concordo integralmente. Se formos pensar no cenário de bandas do hard rock (usando um rótulo simplista) dos anos 1970, é mais fácil que se pense de imediato em grupos como Led Zeppelin, Black Sabbath ou Deep Purple. Mas a importância do Uriah Heep para todo um cenário de bandas posteriores, com uma sonoridade que mescla tonalidades do hard rock clássico com as intrincadas melodias do progressivo e a força do heavy metal, é de fato inegável. Em especial para aquelas que buscam um equilíbrio entre peso e melodia.

“Tenho saudades de quando os tempos eram mais simples”, disse Bernie, ao reforçar que o Uriah Heep tenta fugir de rótulos. “Nos anos 1970, a gente fazia música sem se preocupar com os nomes. Pouco depois, vieram com esta coisa de hard rock, heavy metal, hard ‘n heavy… O que a gente queria era fazer um bom rock. Simples assim. Porque ESTE cara, meu melhor amigo, estava fazendo isso desde sempre e ajudando a criar o manual de regras da coisa toda sem saber”, afirmou, apontando para Mick Box, que rapidamente iniciou o processo de esmerilhar a guitarra em “Stealin’”.

Único integrante da formação original, Mick sobreviveu não apenas às mudanças do mercado musical, mas também às muitas mudanças de formação. Uma espécie de Hermeto Pascoal do rock n’ roll, ele fala pouco, sorri muito, interage bastante e, principalmente, toca de maneira monstruosa, fazendo uma série de gestos complementares que claramente dão a entender que ele está espalhando magia ao longo do braço da guitarra.

Ao longo de um setlist de carca de 1h e meia de duração, mesclando algumas faixas recentes (como “Grazed by Heaven” e a ótima “Hurricane”, do disco “Chaos & Colour”, de 2023) e aqueles clássicos absolutos de uma carreira de cinco décadas (tais quais “Overload”, “Sweet Lorraine” e “The Wizard”), Mick dá bastante espaço para os colegas de banda brilharem a seu lado. O baixista Dave Rimmer, parecendo saído de uma banda de metal tradicional, o faz até maneira bastante literal, com leds começando a piscar ao longo de seu instrumento de trabalho.

Mas além de Bernie, um frontman que une uma voz versátil e intacta pelo tempo com uma dose farta de carisma, sempre dançandinho pelo palco e brincando com o público, o Uriah Heep ganha belos contornos nas figuras do tecladista Phil Lanzon e do baterista Russell Gilbrook.Phil é uma espécie de maestro, um virtuoso ao longo de suas teclas mas que não perde tempo em brincar com seus colegas de banda e, ao mesmo tempo, provocar a plateia para cantar junto. É uma figuraça que merece a sua atenção, de fato. Já Russell é um monstro. Chega a espantar a força com a qual ele espanca a bateria, de uma maneira que faz o público tremer tanto quanto num show de metal extremo. O seu pequeno solo sozinho de bateria em “Free ‘n Easy” e, depois, em combo com Mick entre “Gypsy” e “July Morning”, foram dois destaques de uma apresentação de alguém que claramente está aproveitando esta oportunidade para mostrar “sangue nos olhos”. E claramente, ele conseguiu. 😉

Ver o Uriah Heep ao vivo é, antes de tudo, uma experiência. Para quem é fã, um show perfeito, do início ao fim. Para quem conhece apenas os sucessos mais óbvios, um ponto de partida ideal para se aprofundar na obra dos caras. E para quem nunca tinha ouvido nada da banda, foi uma verdadeira aula do tipo “greatest hits” para colocar o nome Uriah Heep no radar definitivamente.

E que, no fim, esta aposentadoria de mentirinha ainda permita que eles fazem shows cada vez mais lotados por aqui.

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