
Garbage, L7 e a celebração das mulheres raivosas
Elas são a antítese do que o mundo pede delas e eu adoro ser/conviver e ver florescer mulheres rebeldes
Por GABRIELA FRANCO
Fotos: Livia Stevaux/Luis Buttes
Neste sábado (22), chegou a São Paulo a turnê conjunta de duas bandas que foram muito importantes em minha formação musical: Garbage e L7. Dois shows incríveis, energizantes, cheios de carisma e competência, apesar das óbvias diferenças não apenas de sonoridade e público (falaremos disso mais pra frente). Mas, de verdade, no fim da noite, de alma lavada, isso não importa tanto – porque, apesar de alguns probleminhas técnicos aqui e ali, foi um alento termos bandas com mulheres à frente, cantando canções que falam à nossa alma e que liberam nosso grito de raiva na garganta.
Para abrir as festividades da mulherada roqueira, nada mais justo do que convidar um grupo brasileiro – e a escolha das paulistanas da The Mönic foi acertadíssima. Navegando com habilidade entre aquele punk mais ácido, espinhoso, e uma interessante sonoridade indie sem nunca perder o peso, elas parecem justamente uma espécie de filhote das próprias Garbage e L7. O quarteto parecia ao mesmo tempo feliz, mas igualmente muito à vontade no palco, apesar dos óbvios problemas no microfone da vocalista Ale Labelle, cuja voz soava bastante embolada.
Com o retorno da baterista Daniely Simões, que voltou a assumir as baquetas depois da saída de Thiago Coiote, elas apresentaram faixas como “Aquela Mina” e “Kamikaze”. Ao final da curta performance, em “TDA”, Ale desceu no meio da galera, em plena pista premium, e tentou organizar um mosh, ainda que tímido, entre as mulheres. Alguns homens não entenderam muito bem a proposta e resolveram se meter no meio da bagunça… Que falta fez ali uma Kathleen Hanna chamando as mulheres pra frente e deixando os homens no fundo…

Um bem-vindo e agridoce sabor punk
Pouco depois, palco devidamente arrumado, foi a vez de um outro quarteto, desta vez californiano, que graças às deusas chegou com a faca nos dentes. O L7 é aquele tipo de formação punk que não faz concessões, sejam elas sonoras, sejam elas de performance, com destaque para a força com a qual a vocalista-guitarrista Donita Spark – quando enfim resolveu o problema da distorção exagerada de seu instrumento – carrega canções históricas como “Monster”, “Fuel My Fire” e “Everglade”, todas representando uma sonoridade forte, direta e bastante compacta.
Mas aqui a gente queria TAMBÉM exaltar a maravilhosa guitarrista Suzi Gardner, cofundadora da banda. De óculos escuros e com um rabo de guaxinim pendurado na cintura, ela é um show à parte – além de uma instrumentista habilidosa, também traz ainda mais peso ao grupo, com uma postura de palco que chega a lembrar um certo Lemmy e fazendo com que elas soem uma pitada mais metálica do que outras bandas noventistas surgidas no mesmo período.
Aliás, convergindo fãs punks, riot grrrls e metaleiros (e a profusão de camisetas variadas na plateia mostrava bem a mistura deste caldeirão), era de se esperar que parte dos espectadores, em especialmente aqueles que aparentemente estavam ali mais pelo L7 do que pelo Garbage, ensaiassem alguns momentos do tipo bate-cabeça, fazer umas rodas, causando pequenos desconfortos aqui e ali com uma turma de orientação mais indie. Estranhamente, rolaram até uns pedidos dos seguranças para que as pessoas “se acalmassem”, o que, vamos combinar, não faz QUALQUER sentido neste tipo de show.
Ao final, o hit “Pretend We’re Dead” contou com uma inesperada e um tanto esquisita participação especial de Lovefoxx, frontwoman da banda brasileira Cansei de Ser Sexy (CSS). Com o microfone abafado, ela cantou pouco e mais dançou (em certo ponto, até sambou) e interagiu com as “ídolas”, que retribuíram o carinho. Então tá.

Uma majestosa musa colérica
Absolutamente dentro do horário, depois de mais uma arrumação e uma introdução instrumental com o tema de Laura Palmer, da série “Twin Peaks”, foi a vez do Garbage mostrar a que veio, no papel de protagonista da noite. Apresentando um rock 90’s que vai pra um lado completamente diferente do L7, a banda egressa do Wisconsin tem obviamente a maior parte de suas atenções centralizadas na sensacional cantora Shirley Manson, que chegou a superar com bom humor os problemas de seu retorno no começo do show.
Aqui, a gente precisa tirar um enorme rinoceronte da sala: sim, ela continua linda, carismática, sempre com figurinos efusivos e provocativos (em SP, evocou uma espécie de Carmen Miranda fashionista e roqueira). Porém, nada disso apaga o fato de que: 1) Shirley continua cantando MUITO; e 2) além de uma performer diferenciada, ela tem atitude e opinião de sobra. Ela é uma musa sim. Mas uma musa bastante COLÉRICA, puta da vida. Do jeito que tem que ser. Do jeito que a gente precisa.
Para quem nunca viu o Garbage ao vivo, importante destacar que a banda fica ainda mais roqueira neste formato, deixando um ou outro elemento mais eletrônico de lado em favor do peso das guitarras de Duke Erikson e Steve Marker, características de bandas indie dos anos 90, que a gente chamava de “guitar” e que, é bom que se diga, estavam tão furiosamente altas que em certo momento do show chegaram até mesmo a eclipsar a voz de Shirley. Ainda bem que consertaram isso a tempo.
Shirley sabe bem de onde veio, entende suas influências e como ela mesma pode influenciar novas gerações: por isso, não deixou de exaltar as companheiras do L7. “Elas são de verdade”, ressaltou a cantora. “O que é um bálsamo em tempos de fenômenos musicais fabricados”.

Ao longo do set, tivemos direito a “Wicked Ways” (com pequenos pedaços de “Personal Jesus”, do Depeche Mode); a uma performance singular de “The Trick Is to Keep Breathing” e outra delicada e emocionante de “Cup of Coffee”; e a um combo lindíssimo de três de seus maiores sucessos. “Special” foi berrada a plenos pulmões pelo público, cuja resposta arrancou sorrisos satisfeitos da banda inteira; “Stupid Girl” ficou ainda mais dura e pesada do que na versão original, ainda que não tenha perdido a sua característica dançante; e a climática “Only Happy When It Rains” teve direito a uma inesperada introdução numa pegada mais acústica, que depois tratou de engrenar na sua linha usual.
Na reta final do show, “Cherry Lips” foi dedicada ao público LGBTQIAPN+, que Shirley reforçou se tratar de um recorte bastante fiel de sua audiência desde o início – em especial as pessoas trans. “Se alguém julga você por ser estranho, acredite, esta pessoa é a mais estranha de todas”, afirmou ela, deixando claro de quem estava falando (cof cof Trump cof cof Musk cof cof).
Depois de encerrar o tempo regulamentar com “Push it”, o Garbage ainda voltaria para dar um gostinho a mais com “When I Grow Up”, transformando a casa de shows paulistana em um verdadeiro coral cantando em uníssono.
Obrigada às três bandas por este espetáculo de fúria e caos deliciosamente femininos. Que isso se repita cada vez mais.