
Seu Amigão da Vizinhança é woke? Pois então…
A gente nem precisava ter assistido aos cinco primeiros episódios da nova série animada do Homem-Aranha para dar uma triste notícia aos conservadores de plantão…
Por THIAGO CARDIM
Próximo da estreia de “Seu Amigão da Vizinhança Homem-Aranha” (Your Friendly Neighbourhood Spider-Man, no título em inglês), nova série animada do personagem produzida para o Disney+, o ator Hudson Thames, que dá voz justamente ao Peter Parker, concedeu uma entrevista no mínimo curiosa ao site de cultura pop Collider, na qual soltou uma frase infeliz a respeito de suas primeiras impressões sobre a série.
“Meu maior medo era que fosse irritante e woke, e não foi, e eu fiquei tipo, ‘Sim, isso é ótimo, é tão bem escrito’, como se parecesse real”
Antes de qualquer coisa, eu queria destacar aqui a hoje cada vez mais comum expressão WOKE, assim mesmo, em inglês. Quem acompanha o Gibizilla com alguma frequência já deve ter me visto escrever por aqui que eu acho, de verdade, que qualquer um que use a palavra “lacração” a sério mesmo, não ironicamente, como forma de defender algum tipo de argumento, deve ser alvo de total e completa ridicularização pública. O mesmo expediente é indicado pra a utilização de WOKE.
Caso você não faça ideia de qual é o significado desta parada, a gente explica: surgido originalmente na comunidade afro-americana, originalmente o termo – vindo do passado do verbo em inglês “wake”, no caso “despertar” – queria dizer “estar alerta para a injustiça racial”. O termo ganharia ainda mais destaque na última década com a presença ativa do movimento Black Lives Matter e, em 2017, foi parar no dicionário inglês Oxford sob a definição de “estar consciente sobre temas sociais e políticos”. O que pareceria algo bom, no entanto, virou uma espécie de “xingamento” por parte de movimentos conservadores e principalmente da extrema-direita. Tornou-se insulto para quem acha “que outros se incomodam muito facilmente com estes assuntos” e ou então querem “impor suas ideias progressistas sobre os demais”.
Tem mulher protagonista? É woke. Tem LGBT no elenco? É woke. Fala sobre preconceito? É woke. Critica o capitalismo? É woke. E por aí vai. Sacou padrão? 😉
Portanto, antes de darmos andamento ao assunto, gostaria de esclarecer que o termo “woke” vai ser usado ao longo deste texto em tom de total e irrestrita chacota. Simples assim. E se você, tal qual o ator que soltou a frase boboca, usa “woke” de maneira séria e não irônica, no mesmo tom de “lacração”, eu TAMBÉM te considero digno de ridicularização (ainda mais pela incorporação imbecil de MAIS UM termo em inglês, vamos lá).
Estamos combinados? 😉

Mas afinal, o novo Homem-Aranha é woke?
Antes de responder a esta questão sobre o novo Homem-Aranha, eu gostaria de falar sobre o Homem-Aranha. Ponto. O personagem original. Aquele cujos gibis devem ter passado, assim, muito longe das mãos de Hudson Thames quando o camarada tava se preparando pro papel. Porque se ele tivesse lido, sei lá, meia história do Cabeça de Teia, perceberia que é IMPOSSÍVEL escrever um bom gibi do Homem-Aranha sem ser, bom, woke.
Peter Parker é, como os críticos gringos amam dizer, o EVERYDAY MAN. E aqui eu vou recorrer ao texto que eu mesmo escrevi, uma espécie de crônica apaixonada que acabou publicada na mesma época do terceiro filme do Teioso com Tom Holland no papel. Abro aspas pra mim mesmo, porque sou destes.
“Não o milionário excêntrico com dezenas de traquitanas, tampouco o deus nórdico encarnado, o supersoldado da Segunda Guerra ou o alienígena com habilidades que o tornam um semideus. O cara comum. O sujeito atrapalhado, desastrado… Mas eu sempre preferi traduzir como zé ninguém mesmo. Com todas as implicações que a expressão traz consigo. O Aranha era da galera, do povo, amigão da vizinhança do Queens e também do José Menino, ali em Santos. E o Aranha era, antes de tudo, Peter Parker. Porque as melhores e mais memoráveis histórias do personagem são aquelas que sabem abordar a pessoa por baixo da máscara, quem quer que ela seja”.
As histórias do Homem-Aranha sempre foram sobre um moleque de origem humilde, encarando os maiores perrengues financeiros, mas deixando tudo isso de lado pra ajudar quem precisa. As histórias do Homem-Aranha falavam sobre minorias oprimidas, sobre bullying, sobre racismo, sobre xenofobia, sobre uso de drogas, sobre a participação dos jovens em guerras, sobre etarismo… Em resumo: da mesma forma que acontece com os X-Men pós-Chris Claremont, é praticamente impossível dissociar o Escalador de Paredes de algum tipo de combate a injustiças sociais.
Em um resumo maior ainda, querido Hudson Thames (e demais arrombadinhos que acharam simplesmente sensacional o que ele disse), o Homem-Aranha sempre foi woke. SEMPRE. Desde 1962, desde Stan Lee e Steve Ditko. “O preconceituoso é um odiador sem razão, alguém que odeia cegamente, fanaticamente, indiscriminadamente. Ele odeia pessoas que ele nunca viu, que nunca irá conhecer, com igual intensidade – com o mesmo veneno”. De quem é esta frase? Do próprio Stan Lee. Criador do Homem-Aranha.
Percebe?

Mas você ainda não disse se o novo Homem-Aranha é woke…
O que eu acho, pra ser total e completamente honesto, é que o ator Hudson Thames assistiu à série na qual ele mesmo trabalha com os olhos fechados. Ou, como dizem alguns amigos da gente aqui no Gibizilla, ele viu a animação com o olho do cu. Perdão aos mais sensíveis. 😀
Porque se ele viu a série e acha que ela está apenas preocupada em ser pura e simplesmente diversão sem compromissos e não tem qualquer “agenda” social, talvez fosse o caso de ver de novo e prestar BASTANTE atenção desta vez.
Tem troca de etnias de personagens dos gibis, tipo Harry e Norman Osborn – o que é “woke” pra caramba, não é mesmo? *contém ironia* – e também troca de sexo (o Doutor Connors vira uma Doutora Connors). Tem uma trama sobre preconceito em torno do Lonnie Lincoln, jogador de futebol americano gente boa que todo bom leitor de gibis sabe que vai se tornar o vilão Lápide. Tem até uma personagem, Nico Moru (a jovem mística da HQ dos Fugitivos), a melhor amiga de Petey nesta trama, que claramente é LGBT.
A sequência em que o Homem-Aranha entrega uma ladra pro dono de uma venda, devolvendo o dinheiro roubado mas pedindo que ela não seja punida e ganhe uma segunda chance, já que estava passando por dificuldades em casa, é doce, sensível e Homem-Aranha até o último fio de cabelo (ou filete de teia).
Mas isso é não ser “woke”. ¯\_(ツ)_/¯
Bom… então que continue assim, não é mesmo? 😀
Tá, mas woke ou não, afinal, a série é boa?
“Seu Amigão da Vizinhança Homem-Aranha” é uma espécie de linha do tempo alternativa do MCU que a gente conhece dos filmes e séries da Marvel. Contando a história do Homem-Aranha a partir de uma origem um tanto diferente (esqueça aranhas irradiadas em experiências nucleares ou geneticamente alteradas e pense mais em… portais interdimensionais e no Doutor Estranho, rs), a trama vai se cruzando com eventos que Peter viveu no MCU, mas sob pontos de vista diferentes.
Sim, um ricaço descobre que ele é o Aranha e resolve ajudá-lo – mas não é Tony Stark e sim Norman Osborn (numa relação, aliás, BEM MENOS paternal e subserviente). Toda a treta dos Tratados de Sokovia e da Guerra Civil acontece e tem impacto em sua vida, mas ele não se envolve diretamente como nenhum dos lados e tampouco participa daquele festival de porradaria em um aeroporto na Alemanha.

E sim, ele é criado por uma Tia May que se parece com a Marisa Tomei… mas a figura do Tio Ben se faz MUITÍSSIMO mais presente do que aconteceu no MCU “normal” de Tom Holland. As menções ao tio falecido mostram a importância que ele teve na vida de Peter Parker e, por mais que ele não tenha morrido como consequência direta da existência do Homem-Aranha, tal qual nos gibis ou nos primeiros filmes, tudo que ele ensinou ao jovem rapaz se torna um tanto o DNA do mantra “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, que já conhecemos, amamos e respeitamos desde sempre.
Mas apesar de termos alguns rostos bastante reconhecíveis, outros se fazem ausentes – como a MJ e Flash Thompson, por exemplo. Só que os roteiristas optaram por incluir uma série de distintos coadjuvantes série B ao seu redor, criando um ecossistema diferente do usual – o que, de fato, é BEM legal. Seu crush escolar é na filipina Pearl Pangan, que nos gibis se torna a heroína com poderes aquáticos Pangan. Na turma de estagiários da Oscorp, Peter divide os trabalhos com Amadeus Cho (que se torna um jovem Hulk nos gibis), Asha (nas HQs, heroína de Wakanda com poderes de absorção de luz) e Jeanne Foucault (nos quadrinhos, uma assassina com habilidades similares às do Treinador).
O seu avaliador é ninguém menos do que Bentley Wittman, alter-ego do clássico vilão Mago.
E por aí vai. É um gigantesco festival de easter eggs – mas a narrativa os dispõe de maneira natural, sem usá-los como muleta ou atrapalhar o entendimento de quem não sacar. Porque esta continua sendo uma ótima história de Peter Parker, um garoto que aprende COMO se tornar uma melhor versão de si mesmo na ajuda à população de Nova York.
Sobre a animação, que muita gente parece ter estranhado ao ver de fato em ação, dá pra dizer que ela funciona muito bem. Em alguns momentos, a movimentação pode parecer meio “dura”, em especial nas sequências de maior ação, mas é consequência do que parece ser uma tentativa de soar como se um gibi estivesse diretamente em movimento, com os personagens “pulando” pra fora dos quadrinhos. Quando surge alguém como Doutor Octopus, com os traços angulosos que se parecem muito com a versão de Jack Kirby (ou talvez até mesmo do Erik Larsen), fica ainda mais claro onde os animadores querem chegar.
No fim, “Seu Amigão da Vizinhança Homem-Aranha” é de longe a melhor animação pra TV (ou, no caso, pras telinhas, já que aqui o papo é streaming, rs) do Aranhudo desde a irretocável “O Espetacular Homem-Aranha”. E isso, senhoras e senhores, já é um feito e tanto. Que parte do que está sendo produzido aqui se reflita no retorno do Aranha ao MCU em sua versão live-action – há até quem aposte que se trata de uma espécie de balão de ensaio para o que promete ser um aracnídeo menos cósmico e mais pé no chão nas telonas. Vejamos.
“Seu Amigão da Vizinhança Homem-Aranha” tem novos episódios todas as quartas-feiras, no serviço de streaming Disney+.
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Thomas Cavendish
Que alívio ouvir uma pessoa que (não é uma questão de concordar comigo ou não) mas que simplesmente tem bom senso.
E bom senso é uma virtude absurdamente rara nos dias de hoje. No meio nerd então…