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Nosferatu: o jeito que ele é totalmente repugnante é diferente…

Robert Eggers constrói um universo onde erotismo e medo coexistem, questionando tabus e revelando os conflitos internos da psiquê humana

Por GABRIELA FRANCO


Paixão é o fio condutor de Nosferatu, de Robert Eggers, do início ao fim. Desde criança, o diretor foi fascinado pelo icônico vampiro de unhas longuíssimas e aparência cadavérica, que ele descobriu em um livro sobre filmes de terror. A figura monstruosa, tão distinta do mito do vampiro glamouroso que domina o imaginário popular, marcou profundamente o jovem Eggers. Essa fascinação foi tão forte que ele implorou à mãe para alugar um VHS do clássico do expressionismo alemão dirigido por F.W. Murnau (1888-1931) — o filme que, de certa forma, definiu o gênero de terror, a primeira versão do vampiro Drácula (ainda que “não-oficial”) para as telas.

A experiência de assistir à obra foi transformadora. Anos depois, no ensino médio, Eggers adaptou a história de Nosferatu em uma peça teatral. “Foi ali que percebi que queria ser cineasta”, revelou o diretor, hoje com 41 anos, à revista People.

Egger tem se consagrado como um ótimo diretor no gênero terror. Após se destacar com os aclamados A Bruxa (2015) e O Farol (2019), fez um aceno aos filmes de ação ao dirigir a épica aventura de O Homem do Norte (2022), que não foi tão bem-sucedida quanto os anteriores. Então, resolveu voltar às origens e enfrentar a antiga obsessão de sua juventude: recriar a obra-prima de Murnau.

Começou a planejar logo após o sucesso de A Bruxa, mas acabou deixando-o em suspenso, enquanto se dedicava a outros trabalhos. Como acontece com a maioria das coisas pelas quais somos apaixonados e devotamos profundo respeito, achou que revisitar um clássico tão significativo seria uma ousadia grande demais para aquele momento de sua carreira, em que estava florescendo.

Mas, para nossa sorte, parece que o momento certo chegou, pois seu Nosferatu tem uma assinatura toda particular.

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Eggers sendo Eggers. Ainda bem.

Mesmo em meio a inúmeras produções sobre vampiros que inundam Hollywood, Eggers consegue reinventar o tema, trazendo uma abordagem única e revitalizante. Não é difícil entender por que Eggers hesitou em refilmar Nosferatu no início de sua carreira. Afinal, remakes são por si só um terreno perigoso – e no caso deste clássico, o desafio era ainda maior. O original de Murnau é um marco histórico, a ponto de ser amplamente estudado até hoje em cursos universitários de audiovisual.

Como se não bastasse, a releitura de Werner Herzog, lançada em 1979 com Klaus Kinski no papel principal, não apenas honrou a obra original, como muitos acreditam que a superou em vários sentidos. Em outras palavras, Eggers enfrentava a árdua tarefa de lidar não com um, mas dois ícones do cinema e tentar superá-los, ou ao menos chegar à sua altura.

Com uma rica combinação de direção de arte impressionante, produção impecável, atuações eletrizantes e narrativa cuidadosamente trabalhada, o diretor deu vida ao universo gótico da trama bebendo tanto nas fontes cinematográficas anteriores, quanto na obra literária clássica e definidora do lore vampiresco na cultura pop: Drácula, de Bram Stoker – aliás, caso você não saiba, o Nosferatu de Murnau foi uma adaptação não autorizada do romance de Stoker. Essas obras forneceram a base para que Eggers pudesse criar, explorar e reinventar as profundezas de um personagem tão fascinante e hipnótico quanto seu Nosferatu.

O jeito que ele é totalmente repugnante é diferente…

A trama central é a velha conhecida do grande público: se passa um uma cidade fictícia que pode variar de país – e neste caso é a pequena cidade alemã de  Wisborg, onde Hutter (Nicholas Hoult), um jovem advogado recém-casado com a apaixonada e fogosa Ellen (Lilly- Rose Depp), aceita viajar até a Romênia para encontrar o enigmático Conde Orlok (Bill Skarsgård), a fim de coletar sua assinatura para a venda de uma propriedade antiquíssima.

O negócio promete alavancar sua carreira e lhe render dividendos para que o casal comece uma família com segurança. Ellen tenta desesperadamente convencê-lo a desistir, mas ele está irredutível. Juntam-se ao enredo ainda o casal rico e amigo dos protagonistas, Friederich e Anna Harding (Aaron Taylor-Johnson e Emma Corrin), e ainda o médico Willham Sievers (Ralph Ineson), Simon Mc Burney como Herr Knock (o serviçal de Nosferatu) e Willem Dafoe, como o professor e místico Von Franz, numa espécie de contraponto ao mítico caçador de vampiros Van Helsing. 

A partir da primeira metade da história, com todas as peças no tabuleiro, as escolhas criativas de Eggers começam a ficar ainda mais aparentes. 

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Em termos de produção, sua abordagem deixa de lado o glamour e a fantasia normalmente associados aos vampiros, investindo em uma história sombria, visceral e inquietante. Além disso, os cenários grandiosos e a fotografia quase em preto e branco, extremamente sorumbática, refletem uma estética opressiva, quase claustrofóbica,  mostrando que Eggers continua a surpreender com sua criatividade e visão únicas.

A forma como a superstição e os costumes culturais da Romênia são retratados também são uma forma de homenagem às muitas histórias clássicas de vampiros que a região inspirou. O conde Orlok fala (ou grunhe) um romeno, tal qual Bela Lugosi (este realmente romeno) fazia.

Mas o que acaba chamando atenção é a forma como o papel de Lilly-Rose Depp cresce na trama, absorvendo e dando um outro rumo à uma velha narrativa. Que filmes de terror usam a sexualidade feminina como pano de fundo não é uma novidade: o tema carrega tabus, repressões e conflitos profundamente enraizados no feminino em diversas culturas. 

No terror, a sexualidade feminina frequentemente simboliza forças imprevisíveis e poderosas, representando medos sobre controle, independência, transgressão e transformação – mas a forma como tais elementos são trabalhados NESTE longa, são dignos de nota.

Em Nosferatu, a fisicalidade e a relação dos personagens de Lily-Rose Depp e Bill Skarsgård funciona como uma poderosa metáfora para o conto de A Bela e a Fera, por exemplo. 

Essa dinâmica reflete as tensões entre desejo e repulsa, vida e morte, explorando camadas profundas de pulsões humanas. Enquanto a personagem de Depp simboliza a fragilidade e a feminilidade e até a histeria, frequentemente associadas ao arquétipo da “Bela” (ou da mulher no começo do século XVIII… e até hoje), o Conde Orlok, interpretado por Skarsgård, encarna uma presença grotesca e predatória que provoca repulsa, fascínio e horror.

Fisicamente, o monstro não se parece com suas versões anteriores, mas é uma mistura interessante entre a imagem histórica de Vlad Tepes – repare no bigode – e o monstro ratiforme de Murnau e Herzog.

Por meio dessa interação, Eggers constrói um universo onde erotismo e medo coexistem, questionando tabus e revelando os conflitos internos da psiquê humana. Nas mãos de Eggers, Nosferatu transcende o simples ato de refilmagem e se torna uma reflexão sobre a fragilidade e a força humanas, o desejo e a destruição, a beleza e o grotesco.

Ao subverter expectativas e dar novas camadas a uma história tantas vezes contada, Eggers nos obriga a confrontar nossos próprios monstros internos. No fim, talvez a maior realização deste filme seja nos lembrar que, assim como o Conde Orlok, os verdadeiros horrores não estão apenas na tela, mas em nós mesmos, entre o que tememos, desejamos e nos negamos a enxergar.

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