Desvendando David (Lynch)
Nosso colunista-cinéfilo presta uma devida homenagem ao diretor que nos deixou recentemente – mas deixando igualmente uma obra imortalmente estranha e fascinante…
Por VINICIUS CARLOS VIEIRA*
Existe algo de diferente no David Lynch. Alguma coisa que faz com que cada coisa em que ele encostou a mão se tornasse um desafio, uma experiência que faz com que pensemos a respeito da fina camada que cobre a realidade sendo rasgada e aquilo que parecia sonho ou delírio, se tornasse comum. Uma verdade distorcida.
Como se Lynch tivesse sua própria suspensão de descrença.
Explicando: essa expressão, que parece metido à besta, é na verdade o contrato amigável que é feito entre a obra e o espectador, leitor etc. Como se (no caso do cinema) o cineasta expusesse para você algumas regras daquele mundo antes de deixar que seu personagem enfrente os percalços de sua aventura. Quando algo sai desse “acordo de cavalheiros” (e damas) é como se do lado de cá da obra, nós perdêssemos o interesse.
A suspensão de descrença de Lynch é praticamente uma garantia de que aquilo será quebrado e você precisará boiar por aquela piscina de incertezas enquanto tudo vai ficando mais e mais onírico, maluco, provocador ou sem um sentido que pareça responder às perguntas que você quer ouvir.
Lynch já disse em várias situações que não explicaria nenhum de seus filmes. Afinal, achava que essa responsabilidade reside no espectador, que poderá entender o que bem entender. Isso não quer dizer que o diretor não seja entendível, muito pelo contrário. Desvendar suas obras através dos símbolos, significados e provocações é fácil, afinal, todas respostas estão certas, não é mesmo?
Eraserhead, de 1977, não deveria ser desvendado completamente.
É lógico que tem ali algo da Metamorfose de Kafka e do Nariz de Gogol, até de um certo medo da paternidade do próprio Lynch, diante de um problema físico de sua filha quando nasceu, no caso Jennifer Lynch (que também é cineasta e assinou o esquisitão Encaixotando Helena, em 1993). Mas tudo isso é absolutamente pouco perto do resto das maluquices (no melhor dos sentidos) do filme.
Eu assisti Eraserhead apenas uma vez na minha vida. Fiquei impressionado e estarrecido com a carga de surrealismo daquilo tudo. Não sei direito o que entendi ou não. Mas aquilo tudo me colocou em um mundo onde tudo poderia acontecer. Um sentimento tão poderoso que talvez tenha servido de chave para desvendar um pouco o cineasta.
Essa maluquice maravilhosa não foi meu primeiro contato com Lynch, mas sim Twin Peaks, que no Brasil era uma atração da Globo no começo dos anos 1990, logo depois do Fantástico. A emissora retalhou alguns episódios e pulou outros. Portanto, o que já era delirante e provocante, se tornou um mosaico ainda mais surreal, mas ainda assim impressionava – e o assassino de Laura Palmer fez aquele menino de 10 anos ter a impressão de que tudo era possível. A possibilidade de que uma história não precisava mais cumprir aquelas convenções comuns. Mas ao mesmo tempo tratava de um assunto tão violento e visceral que nos mostrava que o mundo real ainda se impõe ao que está atrás da cortina.
É lógico que eu não entendi tudo isso com dez anos. Precisei ver Twin Peaks uma “outra primeira vez”, dessa vez inteiro.
A série mudou a história da TV. Demonstrou que era possível ir além do procedural e do enlatado e ainda assim fazer com que o público se interessasse pelos episódios semana após semana. Mas talvez Lynch já tivesse ajudado a mudar o audiovisual um tempo antes, de modo prático.
O Homem Elefante soa muito menos surreal, mas ainda assim acompanha um personagem taxado pela sua deformidade e não por ser quem ele realmente é. Talvez um dos assuntos mais recorrentes de Lynch. O filme teve oito indicações ao Oscar, mas não ganhou um Oscar honorário por sua maquiagem. A pressão por esse Oscar fez a Academia inclusive criar a categoria de Melhor Maquiagem.
O filme foi seu primeiro trabalho depois do maluco Eraserhead, mas O Homem Elefante é uma experiência absolutamente delicada e triste. O que o colocou na esteira da completamente doida adaptação de Duna. Portanto, Lynch está em qualquer lugar que precise estar. Vai contar suas histórias do melhor jeito que elas precisam ser contadas, mesmo que isso signifique rasgar aquela teia e deixar os mundos se misturarem.
Não importa se você gosta ou não de Duna, o que importa é que ele existe e instiga a todos. Provoca e se faz você pensar a respeito daquilo, é porque funciona. Duna é uma ficção científica profunda, mas com momentos onde o surreal nem parece tão surreal assim. Real e irreal estão tão juntos que embaçam nossa visão.
O Lynch que vem depois disso talvez seja aquele que faz com que o cineasta fique mais marcado pelo estilo. Justamente enquanto estava criando Twin Peaks e esse noir surreal, Lynch dá vida a Veludo Azul (1986), Um Coração Selvagem (1990) e Estrada Perdida (1997). Três filmes que parecem estar em um mesmo mundo onde esses personagens são maiores do que o que gira ao seu redor e então precisam descobrir mundos maiores para eles viverem.
Até hoje me pego pensando o que quer dizer aquela transformação do Fred Madison de Bill Pullman em Pete Dayton de Balthazar Getty em Estrada Perdida. E isso não importa, o que interessa é a história que foi contada de um jeito tão único e poderoso, que isso pouco importa para você conviver com o Mystery Man de Robert Black protagonizando seus pesadelos.
Os coelhos antropomórficos de Rabbits (série de curtas) podem ou não ser uma sitcom esquisitona. Império dos Sonhos é ainda mais surreal e conversa diretamente com aquele mesmo Lynch de Veludo Azul e companhia. O mesmo Lynch de Cidade dos Sonhos, talvez seu mais respeitado trabalho e que mistura o surreal com uma trama realista e com uma “chave” muito mais simples, o que o colocou mais facilmente no colo do grande público.
Lynch tinha esse poder. Conseguia se tornar obrigatório mesmo diante da história mais difícil de ser desvendada, ao mesmo tempo em que conseguia ser fácil, sem perder essa vontade de provocar, como o faz em Uma História Real e um personagem com seu trator.
Com se sempre pinçasse da realidade alguma coisa que colocasse ela dentro desse seu mundo.
Existe algo de diferente em David Lynch e você vai encontrar isso em absolutamente tudo que estiver com seu nome envolvido, o IMDb aponta mais de cem obras, entre curtas, clipes, comerciais e maluquices em geral. Tudo isso eterniza Lynch, mesmo diante de sua ida. Nunca se referindo a ele no passado, já que estará sempre presente.
O Dicionário Oxford conta com o adjetivo “Lynchian” (em português seria “Linchyano”): “justaposição do surreal e de elementos sinistros com o mundano, ambientes do dia a dia e pelo uso de imagens atraentes para enfatizar as qualidades oníricas de um mistério ou ameaça”. Com certeza um legado eterno como poucos cineastas já conseguiram alcançar.
Por aqui, continuo sem vontade de rever os filmes de Lynch, já que sinto que aquele sentimento que tive sendo provocado por cada um deles continua tão vivo em minhas lembranças que acho que isso irá faltar na minha experiência diante de qualquer revisão. Descobrir Lynch e desvendá-lo é algo único e ele consegue fazer isso.
Assim mesmo, no presente.
Para sempre.
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* Editor, criador e crítico do CinemAqui, jornalista por formação, escritor por definição e chato por natureza. Viu filmes demais e leu mais quadrinhos do que devia, o resultado foi essa vontade de discutir, entender e se emocionar com ambos. Se tornou crítico de cinema pelo amor à Sétima Arte e continua a cada dia ainda mais apaixonado por cada frame, quadro, quadrinho ou linha escrita.