Os donos da rua: protagonismo negro na Turma da Mônica
Conversamos com Rodrigo Sérgio Ferreira de Paiva, autor de uma obra que analisa o papel dos personagens pretos do Bairro do Limoeiro – e muito mais
Por THIAGO CARDIM
“Infelizmente, o Jeremias tinha pouca participação, era um coadjuvante sem muita expressão. Gostava quando ele aparecia, por me relacionar com ele, mas era raro”. A frase veio de ninguém menos que Rafael Calça, roteirista das Graphic MSPs do Jeremias, produzidas ao lado do parceiro Jefferson Costa. Em entrevista concedida a este que vos escreve, na época do JUDÃO.com.br, quando lançaram Pele, Rafael me contou que, assim como muitas crianças, lia bastante Turma da Mônica na infância. Só que sempre tinha este “mas…”.
Um “mas” que também marcou uma espécie de vírgula na relação da turminha do Bairro do Limoeiro com o publicitário e especialista em escrita criativa Rodrigo Sérgio Ferreira de Paiva. Em 2019, ele escreveu o livro Panther is the New Black: representação e cultura na comunicação do filme Pantera Negra, a respeito do personagem da Marvel Comics em sua migração para os cinemas. Durante a escrita do livro, o autor estava escrevendo justamente um capítulo sobre representatividade nas histórias em quadrinhos brasileiras quando teve a chance de visitar, como fã, a Mauricio de Sousa Produções. Nascia ali uma OUTRA ideia.
“Era um velho sonho de criança”, conta ele, em entrevista ao Gibizilla. “Lá pude conversar com um dos roteiristas sobre a (polêmica) evolução estética do personagem Pelezinho, que em 2013 perdeu a elipse ao redor dos seus lábios – que reforçava estereótipos depreciativos de que afrodescendentes teriam bocas carnudas, caricatas”.
Ele lembra que essa mudança desagradou o preciosismo de alguns fãs de longa data, o que os fez entender que debates como esse mereciam mais que um capítulo. “Assim, escolhi estender minha escrita em uma trilogia de obras sucessoras, unidas pela temática da representatividade na produção cultural”. Nascia ali Os Donos da Rua: Representatividade Racial e as Transformações do Protagonismo Negro no Universo Turma da Mônica, lançado em 2023, obra finalista na primeira edição do Jabuti Acadêmico e que concorreu recentemente ao troféu HQMix.
Sobre Jeremias, Milena e… quem mais?
Definido por Rodrigo como um “sucessor espiritual” de Panther is the New Black, Os Donos da Rua nada mais é do que o trabalho de mestrado do escritor. “Ou ainda a carta de amor de um fã de longa data do Mauricio de Sousa e da Turma da Mônica”. Ele descreve o livro como sendo quase trezentas páginas que debatem com criticidade a evolução dos valores estéticos e morais desse universo, indo além da temática racial, inclusive. O livro abrange outros grupos minorizados em sociedade, processos criativos, curiosidades de bastidores, polêmicas do tóxico espaço virtual, o tão controverso “politicamente correto”, a ressignificação de Jeremias, a chegada de Milena… E por aí vai.
Mas, afinal, como ele enxerga a atual questão da representatividade negra nos quadrinhos da editora? Já caminhamos bem ou ainda tem MUITO a ser feito e estes passos são por demais iniciais? “Sempre pode ser melhor”, afirma ele, reforçando que, em um mundo utópico, debates sobre a representação negra e LGBT não se limitariam apenas a graphic novels especiais e peças teatrais para maiores. “Deveriam ser naturalizados para todos os públicos. A criança não é burra para não saber que o racismo existe. Nem é cega para não enxergar casais gays. Mas, nossa sociedade é lenta e descaradamente preconceituosa, conservadora… Fazer o quê?”.
Mas ele deixa claro que também é importante se atentar para a qualidade, além da representatividade. Entregar produtos representativos vazios e esquecíveis apenas reforça o discurso estúpido de que “quem lacra não lucra”. Ou que a tal da lacração é a culpada pelas histórias ruins e personagens mal trabalhados. “Esse é um debate que vai muito além da Turma da Mônica. Basta olhar as polêmicas recentes que envolvem os filmes da Pixar… Lightyear é um filme fraco e a culpa é de um casal lésbico? Divertida Mente 2 é um sucesso e o mérito é da ausência da lacração? Francamente….”.
Ao invés de se preocupar com o fato de que Jeremias e Milena se tornem apenas tokens dentro do panteão de personagens da editora, ele diz que se preocupa com a possibilidade de todos os personagens virarem tokens. E explica, ao dizer que “a gula da Magali não pode mais ser exagerada. Cascão não gosta mais de lixo. Cebolinha não pode chamar a Mônica de Gorducha. E nada de coelhadas explícitas. Tudo isso não seria um problema, se as histórias continuassem boas. Mas estão genéricas”.
Ele conecta este panorama com o que chama de desenhos vazios (“sem o capricho de antes, feitos à mão”), arte final sem expressão, letras computadorizadas…. “A qualidade vem caindo muito. Milena chegou em uma fase muito precária, o que é uma pena”.
Em Os Donos da Rua, Rodrigo fala justamente sobre o protagonismo dela e de Jeremias não soar de forma orgânica. “Muitos veem ela [Milena] como uma personagem vazia, sem defeitos, sem carisma… Mas esse tom genérico tem definido o padrão de toda a Turma da Mônica atualmente”, opina. “A exceção está em projetos diferenciados e mais caprichados, como as Graphics MSP. Ou na produção audiovisual de Daniel Rezende”.
Pois então, se a própria Mônica e cia estão virando tokens genéricos e sem personalidade, o que dizer então dos personagens mais representativos, de aparições mais raras? “Terminam por virar figuras sem peso algum. Como fã, eu sempre vou torcer para que as coisas melhorem. A representatividade é e sempre será muito bem-vinda, mas não deveria (e nem precisa) vir às custas da qualidade”.
E o Cascão?
Poisé, ainda tem isso, uma discussão cada vez mais frequente entre os fãs a respeito do Cascão ser ou não um menino negro – tem gente que defende que os códigos em torno do personagem estão todos lá. Rodrigo, no entanto, discorda veementemente da afirmação. “Não por coincidência, esse tipo de associação costuma vir dos mais leigos e desinformados sobre o tema e sobre a própria Turma da Mônica. Associar seu cabelo (crespo devido à sujeira) a traços negroides diz muito mais sobre aquele que associa do que sobre o personagem. Só por ser sujo e vir de uma família com relativa baixa renda ele seria necessariamente negro?”.
E ele tem MUITA razão nesta conversa…
Rodrigo lembra, no entanto, que o cabelo do Cascão não rende apenas polêmicas, mas também ótimas gags e histórias. “A exemplo das do roteirista Emerson Abreu, que já brincou sem pudores com a ideia (não canônica) de que Cascão seria um menino loiro de olhos azuis por debaixo de tanta sujeira”.
Ainda que a obra carrega num olhar mais crítico, o escritor reforça que a equipe da Maurício de Sousa Produções acompanhou de alguma forma todo o processo do livro, a começar por uma entrevista concedida em forma de “pessoa jurídica” pela editora. “Foram muitas trocas de e-mail. Isso é importante, mostra como o estúdio está disposto a acompanhar possíveis críticas. E homenagens. Não é porque o livro é uma pesquisa de tom crítico que não deixa de ser uma celebração a Mauricio e seu legado”.
Ele revela que presenteou a MSP em peso com o livro, da família Sousa aos artistas do estúdio. “Sidney Gusman [editor] ficou surpreso com o quanto havia escrito. Entreguei o de Mauricio pessoalmente, no evento Imagineland, em 2023. Ele disse que ficou curioso e prometeu que ia ler. Bem, não sei se falou sério, mas quem sabe…”.
Mas o autor conta que, de todo modo, é legal ver o livro por aí nas fotos que alguns deles postam dentro do estúdio. “Em geral, o feedback tem sido bastante positivo”.
Além do terceiro livro que deve completar a série, que deverá ser fruto do doutorado do autor em Ciências da Linguagem sobre a representação LGBTQIA+ na cultura pop japonesa, no próximo ano ele deve estrear como quadrinista, com uma graphic novel de 300 páginas coloridas chamada “Com Gosto de Liberdade”.
Aguardamos as cenas dos próximos capítulos por aqui. 😉