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Ninguém quer… ser retratada assim

A nova série hit do Netflix é deliciosa, dinâmica e faz a gente re-acreditar no amor… mas falha bastante em retratar mulheres judias

Por GABRIELA FRANCO

A nova série romântica Ninguém Quer (Nobody Wants This), que estreou em meados de setembro na Netflix, é a nova sensação que está sendo compulsivamente maratonada na plataforma. Com cerca de 10 episódios de 30 minutos cada, é uma comédia dinâmica e que conta com dois nomes de peso que a conduzem com eficácia: Kristen Bell (de The Good Place) e Adam Brody (o eterno Seth Cohen de The O.C.).

A trama gira em torno de Joanne (Bell), uma mulher 30+, apresentadora de um podcast sobre relacionamentos em tempos de aplicativos de namoro (mais sexo em relacionamentos casuais do que sobre as relações em si) chamado “Nobody Wants This”, e Noah (Brody), um rabino progressista, boa praça, tranquilo, sensivel, o típico “nice jewish boy”.

Eu, que não gosto nem de comédia nem de romance, me dispus a assistir à série exatamente por esse detalhe: tá falando da minha comunidade, logo quis saber como ela foi retratada. 

Joanne é o oposto de Noah. Ligada nos 220v, ela é bem o estilo das personagens que Bell interpreta regularmente: perspicaz, audaciosa, engraçada, sem filtro, uma mulher que tem uma vida amorosa caótica e apresenta um histórico de relacionamentos problemáticos. Mas isso está prestes a mudar quando ela conhece o seu príncipe encantando, Noah, em um evento social.

Ela só não contava com o fato de ele ser um rabino e ter terminado um noivado recentemente, o que, para a comunidade judaica, é algo bem traumático – e esse drama todo acaba afetando Joanne também. Apesar das diferenças culturais e religiosas, os dois acabam se dando bem e desenvolvendo uma conexão profunda, bem-humorada e sincera, que desafia as expectativas de amigos, familiares e até as suas próprias. 

A série foi criada pela atriz Erin Foster, ex-colega de Adam Brody em The O.C., e é baseada na própria história de como conheceu seu atual marido. A série em si não é ruim, conta com uma abordagem leve e divertida, ao mesmo tempo que toca inteligentemente em questões sobre relacionamentos e identidade nos tempos atuais.

Além de Bell e Brody (que já foram par romântico em outro filme, Some Girls de 2013, o que garante uma belíssima química)  o elenco ainda inclui Justine Lupe como Morgan, a irmã de Joanne; Timothy Simons como Sasha, o irmão de Noah; Jackie Tohn, que faz o papel de Esther Roklov, cunhada de Noah; e Tovah Feldshuh como Binah, a matriarca da família judaica.

Ninguém quer, mas é o que é

Relacionamentos são complicados, isso é fato. O que me incomodou foi ver uma mulher de 30 e poucos anos, em pleno 2024, esperando que tudo fosse simples e sem desafios. Mas ponto positivo para a série por mostrar as dificuldades de forma honesta. O jeito sem filtro da Joanne – desbocada e elétrica – faz com que os problemas sejam abordados de maneira direta, sem aqueles joguinhos e rodeios que cansam tanto na vida real quanto na ficção.

Outro ponto que gostei foi a relação entre Joanne e Morgan. As duas são super ligadas, melhores amigas e ainda trabalham juntas no podcast. Isso criou uma dinâmica familiar tão forte que, de certo modo, fez com que a proximidade intensa das famílias judaicas, que às vezes pode parecer estranha para quem está de fora, soasse mais natural. A ligação das irmãs ajudou a suavizar essa percepção e tornar tudo mais crível.

Agora, o que realmente me incomodou foi a forma como a série retratou a comunidade judaica em certos aspectos. Tem alguns pontos cruciais que precisam ser discutidos e vale um toque aqui. 

Ninguém quer ser rotulado

Vamos lá, que surpresa: mais uma vez, falta de diversidade étnica na representação da comunidade judaica. Tudo bem, a família de Noah é judaica-russa, mas o showbiz insiste em retratar judeus apenas como os refugiados do leste europeu, os chamados ashkenazitas. Alô, Hollywood, tem mais tipos de judeus por aí! Temos os sefarditas, da Península Ibérica; os mizraim, do Norte da África e países árabes; os Beta Israel, judeus etíopes, negros… e pasmem, até judeus chineses e japoneses!

Já passou da hora de mostrar a pluralidade dentro da comunidade judaica e acabar com a ideia de que todo judeu é branco e do leste europeu, não acha?

Algo que também me incomodou foi a forma limitada como a diversidade religiosa judaica foi retratada. Noah, um rabino reformista, é um ponto positivo – mérito dos roteiristas por não se limitarem à representação de judeus ortodoxos, como Hollywood costuma fazer. Porém, é importante ir além e mostrar que o judaísmo é uma etno-religião, ou seja, há muitos judeus que não praticam a religião, e ser judeu vai além da prática religiosa. Existem várias correntes dentro do judaísmo, como o ortodoxo, o reformista, o conservador e o humanista. Um alívio na narrativa é Sasha, irmão de Noah, que, em uma cena, revela seu desconhecimento da Torá, trazendo um contraste interessante na comparação com o protagonista.

Ainda falando de Sasha, outra coisa que que também é praticamente um tropo quando se trata de representar judeus na cultura popular: nem todo judeu é rico. Pelo que dá a entender, os pais de Noah têm grana e Sasha é um encostado, que tem um cargo (cujo nome nem imagina) na empresa do pai e vive disso. Se existem judeus que são assim? Devem existir. Mas infelizmente sou uma judia pobre e cercada de judeus pobres no meu círculo de família e amigos, portanto não conheço nenhum. Seria importante mostrar todas as possibilidades dentro da comunidade.

E por fim, mas não menos importante: a forma como as mulheres judias foram retratadas na série foi simplesmente HORRÍVEL e VEXATÓRIA.

Todas elas, sem exceção, parecem mesquinhas, manipuladoras, controladoras, pérfidas, falsas, beirando a paranoia. Em certo momento, fica parecendo que são loucas para arrumar um marido e o romance, a alegria e a profundidade dos relacionamentos que se danem. Em uma cena, Noah diz que seu relacionamento com sua ex-noiva judia era “raso e automático” em relação ao que mantém com Joanne… ao mesmo tempo que uma caixa de fotos de ambos é descoberta por Joanne e demonstra totalmente o contrário. A forma como tratam Joanne é vergonhosa, me causou muita revolta e mal-estar.

Em contraste, Joanne e sua irmã mais nova, Morgan, hilariantemente interpretada por Justine Lupe, são, claro, retratadas como doidinhas, mas de uma forma adorável e descontraída, algo que não é concedido às suas contrapartes judias.

Já os homens judeus parecem PERFEITOS. Noah com certeza tem um quê de príncipe encantado que faz sentido para a trama, mas os demais homens também acabam despertando a simpatia do público: o pai de Noah é sábio e amoroso, o irmão é um pateta engraçado e agradável, o rabino-chefe é fofo e tem uma clara preferência por Noah. Mas as mulheres? Todas bruxas (e não no bom sentido da palavra).

A criadora Erin Foster disse recentemente, em uma entrevista ao The Los Angeles Times, que, apesar de ser casada com um judeu e viver entre a comunidade, tomou o cuidado de cercar-se de consultores judeus para escrever a série. 

No entanto, quando questionada sobre os críticos que consideram os personagens judeus “estereotipados”, sua resposta não foi satisfatória. “Acho que precisamos de histórias judaicas positivas agora”, afirmou Foster ao LA Times. “É curioso quando as pessoas se concentram em: ‘Oh, isso é um estereótipo de judeus’, especialmente quando você tem um rabino como protagonista. Um rabino jovem, atraente e que fuma maconha. Isso é a antítese da percepção tradicional sobre um rabino judeu, certo? Se eu retratasse os pais judeus como dois hippies vivendo em uma fazenda, alguém diria: ‘Nunca conheci uma pessoa judia assim. Você claramente não sabe como escrever personagens judeus e não está fazendo isso de forma a nos representar bem”. 

Eu discordo.

Existem judeus de todas as formas, Bob Dylan é um judeu hippie que vive em uma fazenda, por exemplo. O que eu quero dizer é: séries como The Marvelous Mrs. Maisel ou filmes como You Are So Not Invited to My Bat Mitzvah são super autênticos na representação da dinâmica familiar judaica moderna. Isso é muito bem explorado.

Este ponto me leva a questionar como seria Ninguém Quer se tivesse explorado relacionamentos familiares complicados sem reforçar estereótipos prejudiciais e potencialmente danosos, especialmente neste momento em que o antissemitismo está disparado no mundo inteiro.

No final, Ninguém Quer aborda a complexidade dos relacionamentos contemporâneos, especialmente quando se trata de diferenças culturais e familiares. A série explora como o amor pode florescer em meio a expectativas sociais e tradições, e desafia os preconceitos enraizados nas dinâmicas familiares.

Por meio de diálogos engraçados e situações inusitadas, destaca a importância de abrir mão de preconceitos e aceitar a diversidade nas relações amorosas​.

Que possamos levar isso para todas as nossas relações, isso sim.