Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

Os Anéis de Poder e o poder de uma boa adaptação

A segunda temporada da série da Amazon dá um exponencial salto de melhora na comparação com a temporada anterior – mas também toma decisões criativas que tiram os leitores puristas do sério. Cá entre nós, UFA, ainda bem.  

Por THIAGO CARDIM

Não lembro EXATAMENTE o ano, mas acho que foi algo em torno de 1998 ou 1999, mais ou menos. Meu primeiríssimo site de cultura pop, aquele que atendia pelo carinhoso nome de PQP (e cuja URL hoje é impublicável), tinha acabado de inaugurar uma área de conteúdo dedicada ao mundo dos RPGs. Eu era o editor responsável e, antes mesmo de Peter Jackson inventar que ia se aventurar pela Terra-Média, inventei de escrever um texto sobre Senhor dos Anéis, obra seminal para a fantasia medieval que se tornaria fundação de qualquer Dungeons & Dragons da vida.

Só tinha um problema: por volta dos meus 20 aninhos, eu fui inocente e me meti a escrever de cabeça, com o que eu lembrava daquela que até então era a primeira vez que eu tinha lido a trilogia, ainda adolescente, com meus 13 anos de idade. Tá bom, as redes sociais nem existiam ainda. Mas você acha que, ao errar este ou aquele nome, eu deixei de ser massacrado pela turba de leitores fiéis do Tolkien? Ah, faz-me rir. Recebi umas boas duas dezenas de e-mails indignados com a minha, pasmem, OUSADIA.

Sabe quem também levou uma boa dose de pancadas dos tolkienmaníacos por conta das liberdades tomadas na adaptação da obra? Não, não tô falando da dupla Patrick McKay e JD Payne, showrunners de Os Anéis de Poder, a série original do Prime Video que é uma espécie de prólogo de Senhor dos Anéis. Tô me referindo ao próprio Peter Jackson. Sim, ele mesmo, que dirigiu uma trinca de filmes consagrados, hoje chamados de “clássicos” com certa justiça, responsável por arrecadar mais de US$ 6 bilhões globalmente com a trilogia original.

E, mesmo assim, na época, o que não faltou foi fã do cânone de Tolkien defendendo que Jackson tomou liberdades DEMAIS, que cortou isso, que não deveria ter corrido tanto com esta ou aquela sequência… “Pobre Boromir”, repetiu pra mim sem parar um expert na obra do velho mestre inglês, ao ver o destino dado ao personagem de Sean Bean, segundo ele bastante injusto na comparação com a sua contrapartida em forma de letrinhas.

Talvez muita gente tenha se esquecido disso. Mas eu, enquanto jornalista especializado em cultura pop, me lembro bem DEMAIS. Até porque, quando o primeiro filme saiu, lá estava eu relendo a trilogia pela segunda vez. E o quanto eu acho que as mudanças feitas por Peter Jackson estragaram a experiência? Em rigorosamente NADA.

(se a conversa fosse sobre os filmes inspirados em O Hobbit, aí o papo ia ser outro, rs)

“Ah, mas o Gandalf só surge na Terceira Era…”

Apesar de todos os pesares, apesar de uma Galadriel sem um mínimo de consciência de classe, confesso que gostei da primeira temporada de Os Anéis de Poder. E digo mais: acho que gostei até mais do que da temporada inaugural da Casa do Dragão, por mais novelão que fosse (até porque eu AMO um novelão). Logo, tava ligeiramente empolgado pela segunda temporada, que ainda era um mistério se realmente ia rolar mesmo. Mas rolou. E os produtores entenderam por onde de fato podiam (e DEVIAM) seguir. Se sentiram mais soltos, mais livres. Deram mais peso a algumas subtramas, deixaram algumas com um tom mais sombrio, se permitiram “brincar” com trechos da obra que Tolkien apenas mencionou de maneira breve (um nome pra vocês: Celebrimbor) e até criaram uma tensão sexual entre Sauron e Galadriel que, diabos, faz um sentido DANADO pra história.

Para a história DELES. Para a versão DELES d’O Senhor dos Anéis. E o resultado foi uma coleção de oito ótimos episódios, expandindo a SUA mitologia própria de Senhor dos Anéis. Nos meus primeiros anos do site A ARCA, quando falei sobre o primeiro filme da franquia Harry Potter, disse que algo me incomodou deveras na obra dirigida por Chris Columbus – algo que chamei de “pecado da ultrafidelidade”. Um diretor que fica com tanto medo de sequer tocar em qualquer detalhe do material original sagrado que acaba transliterando quase ipsi literis as páginas do livro. E aí perde a real força da mídia que está ganhando aquela nova versão.

Um pecado que, graças aos deuses, a turma d’Os Anéis de Poder não cometeu. E que, antes que você diga, tá longe de ser uma coisa BOA.

Fazendo aqui a trinca das referências aos meus antigos sites, na época do JUDÃO, tinha um mantra que a gente defendia para deixar de lado a chiadeira dos fãs xiitas de gibis de super-heróis: gibi é gibi, filme é filme. PONTO. A mesma lógica TEM QUE valer aqui. Os Anéis de Poder são uma série inspirada em um livro. Mas eles são uma série. E não um livro. Uma série produzida para o audiovisual, com seu ritmo próprio, com sua própria lógica.

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Assim como os filmes do Homem-Aranha de Sam Raimi são a visão DELE para a obra de Stan Lee e Steve Ditko, com direito a teias orgânicas e tudo mais. Assim como os filmes dos X-Men de Bryan Singer são da visão DELE para a obra de Stan Lee e Jack Kirby, com direito a uniformes pretos de couro e tudo mais. Daria para escrever um texto inteiro só com exemplos similares, apenas pra reforçar o meu ponto: o diretor e o roteirista são CRIADORES e PRECISAM ter liberdade criativa. Para fazer o filme deles, a série deles. E não um pedaço de película com uma muleta.

Veja, você não precisa gostar d’Os Anéis do Poder. Tá tudo bem. É parte do jogo. Pode não ter gostado da construção de Adar, o “pai” dos orcs que não existe na obra original de Tolkien (eu gostei). Pode não ter gostado da forma que Tom Bombadil foi ENFIM retratado em formato audiovisual (eu também gostei, até porque eles foram bem comedidos e evitaram o que poderia ser um exagero de pentelhação e cantorias). Pode não ter gostado da solução pro nome do Gandalf (não foi a coisa mais criativa do mundo, ok, mas a cena final é uma fofura e me encheu o coração de ternura). Pode não ter gostado do Rei Durin pulando pra cima do Balrog com o machado em punho (aí eu já te acho meio maluco, mas gosto é gosto).

Nota mental: dependendo do seu motivo pra não gostar do elfo Arondir, grande destaque da série e outro personagem criado especialmente para este universo, eu tenho um adjetivo bem específico pra você… 😉

Mas usar de platitudes como “esta série está pisoteando o legado de Tolkien” é uma bobagem sem tamanho. Até porque, pra história que ELES estão contando, pouco importa se o Gandalf aparece na segunda ou na terceira era, vamos combinar, vá.

Em uma rara entrevista concedida ao Le Monde, Christopher Tolkien, o finado filho do mestre e principal responsável por sua obra, contou que recusou um convite para conhecer Peter Jackson e reclamou de ter visto a obra de seu pai ser diluída, transformada em um “filme de ação para jovens entre 15 e 25 anos”. Disse ele: “Tolkien se tornou um monstro, devorado por sua própria popularidade e absorvido pelo absurdo dos tempos nos quais vivemos hoje. O abismo entre a beleza e seriedade de seu trabalho e aquilo que se tornou simplesmente me esmagou. O senso comercial reduziu a estética e o impacto filosófico da criação à nada. Existe uma única solução para mim: virar o rosto para o outro lado e ignorar”.

E a gente sabe que aquilo que ele preferiu ignorar é justamente a obra que hoje tem uma galera usando como base de comparação com Os Anéis de Poder. “Ah, porque os filmes do Peter Jackson eram muito melhores, porque respeitavam a obra…”. Olha, não é o que o filho do cara achava, hahahahahaha.  

Assim, se te incomoda, se não curtiu, simplesmente não veja e boa. Vire o rosto pro outro lado. Mas dizer que quem faz a série odeia Tolkien e merece queimar no fogo do inferno, que não tem fãs envolvidos na produção, que se você gosta da série simplesmente não gosta ou NÃO ENTENDE Tolkien, cara, é uma cagação de regra TREMENDA.

Isso porque, volto a dizer, eu preferi nem entrar no mérito de que os produtores optaram por contar um período da história da Terra-Média cheio de pontas soltas na própria obra original de Tolkien, contados em trechos nunca finalizados e jamais amplificados em detalhes ou sequer costurados. PORTANTO…

Ao falar sobre suas expectativas a respeito da até então recém-anunciada série, nosso amigo Silas Chosen disse algo bem interessante lá no JUDÃO, e que eu reproduzo aqui.

“O time Terra-Média Amazon terá que resistir a essa tentação de colocar o anel do ‘mundo moderno’ no dedo, se quiser manter alguma coisa do espírito que tornou O Senhor dos Anéis o que é. Ou talvez vai precisar encontrar um caminho do meio que consiga traduzir a alma de aventura e magia que nos inspirou e nos assombrou por décadas, ao mesmo tempo que crie uma série com a linguagem certeira para aplacar este público complicado que temos hoje. Nós precisamos da desconstrução tanto quanto precisamos da mitologia aspiracional. Ambas são importantes para a ficção. E elas não precisam se cancelar. É só saber o momento e a linguagem certa”.

Pra mim, esta segunda temporada encontrou lindamente este equilíbrio.

Pois que Jeff Bezos abra mais uma vez o seu escoadouro de dinheiro e nos brinde com uma terceira temporada, que pode até ser a última, tá tudo bem, eu não ligo.

Só vem.

E se tiver o Sauron detonando aquele bando de arrombados de Númenor, creio que me dou por satisfeito. 😀

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