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Absolute Batman e a vitória do Morcegão maromba

Mais do que apenas fazer uma “versão Ultimate” do principal personagem da DC, Scott Snyder e Nick Dragotta desmontam o Homem-Morcego para mostrar que aquilo que o faz ser o Batman é OUTRA coisa

Por THIAGO CARDIM

Quando a gente fala das duas grandes editoras de quadrinhos de heróis lá dos EUA, digamos que este lance de versões alternativas de seus principais personagens, devidamente ambientados em universos paralelos e reinventados num liquidificador criativo, costuma ser meio que expediente padrão de tempos em tempos. Especialmente quando os editores querem passar longe de expressões desgastadas (e desgraçadas) como reboots, retcons e por aí vai.

Basicamente, é um jeito de manter tudo praticamente igual com os mesmos hominhos com os quais os fãs estão acostumados há décadas, sem perder os leitores leais pelo meio do caminho, enquanto os autores ganham uma chance de brincar com novos conceitos cá e acolá. A DC está experimentando este gostinho com a criação de um novo universo, o Absolute, resultado direto do recente especial All-In, que enfim afunila a interminável saga Absolute Power (o Leo, do Fala, Animal, explica um tantinho da confusão cronológica sem fim neste texto aqui).

O ponto é que esta edição especial mostra uma treta entre o Darkseid e o Espectro, cujos detalhes são absolutamente dispensáveis, mas que acaba gerando uma NOVA realidade alternativa na DC (Marv Wolfman deve estar sentindo umas pontadas no coração desde que isso foi anunciado, aliás). Enquanto a editora não inventa uma nova Crise pra acabar com tudo e começar a parada completa de novo, temos o universo “normal”, cujos títulos ganharão em sua maior parte novas equipes criativas em histórias que prometem ser “excelentes” pontos de partida para novos leitores (sei…) e temos este universo Absolute – que carrega nas tintas mais sombrias, em narrativas mais espinhosas, oferecendo um olhar que dá até para chamar de distópico.

Os primeiros títulos anunciados começam a sair por agora nas bancas americanas – a começar por aquele que justamente vinha dando de fato o que falar a cada prévia que era anunciada: o Absolute Batman, que marca o retorno de Scott Snyder aos gibis do Morcegão, com a arte estilizada de Nick Dragotta.

Certeza que pelo menos UM meme do Batman fortão, na pegada marombeira, com aquele símbolo de morcego achatado no peito tal qual um pente de tirar piolho de criança dos anos 1980, passou pelas suas redes sociais em algum momento…

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Mas calma, vamos lá, segura a onda com este lance aí de “Ultimate da DC”

Desde que começaram os primeiros rumores sobre este novo universo dentro da Distinta Concorrência, as comparações com o Universo Ultimate da Marvel se tornaram inevitáveis. Mas aqui, é preciso fazer um importante parênteses. Porque quando a Marvel inventou este papo todo de Ultimate lá no começo dos anos 2000, o objetivo era muito claro: repensar os seus heróis como se eles tivessem sido criados em pleno século XXI e não nos efervescentes anos de 1960, com o intuito claríssimo de atrair uma nova leva de leitores.

No fim, o Universo Ultimate – pelo menos aquele que conhecemos lá atrás e não o seu atual revamp – nos trouxe como principal ativo a criação de Miles Morales (depois incorporado à cronologia “regular” da Marvel) e inspirou franca e abertamente o MCU – o Homem de Ferro de Robert Downey Jr., uma espécie de proto Elon Musk, é de longe bem mais o retrato Ultimate de Mark Millar do que aquele dândi sessentista criado por Stan Lee.

O que o Absolute da DC propõe, pelo menos a partir do primeiro número do Absolute Batman que tivemos a oportunidade de ler recentemente, é “descascar” os personagens e encontrar, no núcleo, aquilo que eles realmente são de verdade. Retirar as muitas camadas, desconstrui-las, substitui-las por outras e mostrar que ser o Batman, o Superman ou a Mulher-Maravilha é mais do que apenas um par de óculos, um avião invisível ou uma conta bancária recheada.

Um novo Bruce Wayne, uma antiga Gotham City

Snyder, que não é o Zack, já tinha registrado uma passagem marcante (goste você ou não) pelo Morcegão, na qual teve a chance de mexer um pouco nas origens do sujeito ao criar toda aquela história da sociedade secreta, a tal Corte das Corujas. Mas agora deram liberdade para que ele fosse MUITO além, se soltasse, e fosse criando um Batman só seu.

Este não é um Batman playboy milionário. É um Bruce Wayne que trabalha na construção civil, um cara comum, vida simples, que circula ao lado dos operários como seus iguais.

Este não é um Batman ágil, dinâmico, um acrobata de corpo delgado. É um Bruce Wayne enorme, musculoso, preparado pra descer a mão em vagabundo folgado.

Este não é um Batman marcado pela tragédia do Beco do Crime. É um Bruce Wayne cujo pai, um professor de escola, foi assassinado à luz do dia, ao ar livre, na frente de um monte de gente, durante uma inocente visita ao zoológico.

Este não é, aliás, um Batman órfão. É um Bruce Wayne que perdeu o pai mas, veja só, cuja mãe ainda está viva.

E este não é um Batman criado pelo Alfred. Porque, na verdade, o Alfred que ele acaba de conhecer na vida não é um frágil mordomo, mas sim um agente secreto BEM duro na queda e que está genuinamente interessado no vigilante marombado.

Tudo isso teria um potencial gigantesco de fazer com que este Batman não fosse, bem, o Batman. Mas ele é. Porque o que é GENUINAMENTE importante para o personagem, sim, está lá. O que faz o Batman ser o Batman não é a fortuna, não é a ambientação gótica, não é a batcaverna, o cinto de utilidades. Mas sim: 1) a inteligência e 2) a intrínseca conexão com Gotham City. Isso está lá. Intacto.

Claro que a piada de “meu superpoder é o dinheiro” que a gente viu no filme da Liga da Justiça de Snyder-Whedon é divertida, coisa e tal. Mas, no fim, o que difere Bruce Wayne dos semideuses ao lado dos quais ele caminha é a capacidade afiadíssima de raciocínio. E é este o seu principal talento, seja como detetive brilhante, seja como planejador imbatível. Em Absolute Batman, descobrimos que ele tem uma imensa sede de saber e que, claro, se debruçou com o dobro de esforço sobre todos os tipos de ramos do conhecimento, formando a rede de conexões que é o cérebro do Cavaleiro das Trevas.

Além disso, e aqui é onde eu enxergo de fato o MAIOR acerto desta reinvenção, a conexão deste Bruce com a engenharia não é por acaso. Trabalhando em diferentes áreas da cidade, do saneamento ao fornecimento de energia, ele não apenas foi conhecendo cada canto de Gotham City em detalhes como também ajudou a construi-la, nos bastidores, nos becos, nos corredores. E se tornou integrado a ela de maneira praticamente simbiótica. Essa sacada é brilhante – e dá, por incrível que pareça, um tipo de camada que o Batman tradicional, criado em berço de ouro, JAMAIS teria.

Porém… vai, vamos lá, sempre tem um porém…

Assim, veja. Nem tudo são flores. Tem algo aqui que me incomoda, pelo menos neste começo, que é o massavéio pelo massavéio. Especialmente na sequência final, quando o Batman dá as caras diante da quadrilha de mascarados que vem apavorando a cidade (ainda meio sem graça ou carisma, um tanto genérica, mas vou dar o benefício da dúvida) e distribui porrada pra tudo quanto é lado, a coisa toda soa por demais anos 1990. Aqueles quadrinhos de heróis da era Image Comics em sua primeira fase, com músculos saltando, diálogos truculentos, armas de tamanho monstruoso e dentes trincados… APENAS PORQUE SIM.

Neste ponto, a narrativa do Snyder (suportada pela boa arte do Dragotta, que funciona bem depois do estranhamento inicial) me pareceu “estou metendo essa apenas porque eu posso, porque me deixaram, olha como o meu Batman é ultraviolento e raivoso, ele corta a mão do cara, OHYEAH”.

Eu teria ZERO problemas com um Batman cujos métodos fossem diferentes – e que, apesar de TAMBÉM evitar matar (como bem percebe o Alfred ao sacar que ele ataca apenas pontos não-vitais de seus adversários), fosse um tanto mais brutal, usando o símbolo de morcego em seu peito como um machado, transformando as extremidades da capa em algo como chicotes, usando os chifres como lâminas, e por aí vai. Tá bom. Eu também sou fã de uma bobajada qualquer, uma diversão sem compromissos, coisa e tal.

Mas claramente não é isso que Snyder quer e tampouco é a proposta desta linha Absolute. Portanto, as coisas precisam ter CONTEXTO. E não apenas porque é massa ter uma splash page de ossos sendo quebrados de cima até embaixo só porque fica estiloso, porque a molecada (que, no fim, tem mais de 30 anos na cara, mas tudo bem, vamos fingir por um minuto) vai achar “irado”. Aqui, em certo momento, Snyder se aproxima do OUTRO Snyder, caminhando para a coisa do “para fazer uma história adulta, eu tenho que fazer os meus heróis serem porradeiros e sem limites”. Se eu já tinha uma preguiça disso com meus 15 anos de idade, imagina só agora, com mais de 40.

Mesmo com este, digamos, incômodo, o saldo final de Absolute Batman é EXTREMAMENTE positivo. E o potencial que Snyder tem para continuar o seu estudo de personagem é IMENSO (embora muita gente defenda que ele costuma COMEÇAR bem os seus projetos, mas não necessariamente manter a mesma qualidade até o final – só que aí é outra conversa). Porém, este Batman poderoso e absoluto pode continuar em alto nível – a dica final que ele deixa para que a gente entenda o quão diferente ele pretende que o seu Coringa seja é sensacional, por exemplo – desde que o autor evite se intoxicar com o vírus da Robliefeldização.

Porque, bicho, de Youngblood e derivados, já me bastavam os originais mesmo. E juro que, se ao invés de uma nova linha Ultimate na DC, os caras me decidirem fazer um “Heróis Renascem – Parte 2”, melhor desistir desta leitura desde já.

Mas muito que bem. Vamos ao Superman, à Mulher-Maravilha… e esperemos com ansiedade o Flash do Jeff Lemire. Um passo de cada vez.

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