Sobre Longlegs e a misoginia
Venha com a gente numa análise dos elementos simbólicos do tão hypado filme estrelado por Nicolas Cage
Por GABRIELA FRANCO
Finalmente, o filme de terror Longlegs: Vínculo Mortal – dirigido e roteirizado por Osgood Perkins, com Nicolas Cage no elenco – chegou ao Brasil, no final de agosto, gerando opiniões divididas.
O longa, que teve uma excelente campanha de marketing e foi promovido como “o melhor filme de terror de 2024”, talvez tenha elevado as expectativas a ponto de frustrá-las para alguns. No entanto, não é um filme ruim, embora também seja um exagero dizer que é o melhor do ano. A produção se aproxima mais de um suspense com toques sobrenaturais, no estilo de Seven, Zodíaco ou das primeiras (e últimas) temporadas de True Detective, do que de um terror puro e simples como conhecemos.
A história segue a investigadora do FBI, Lee Harker (Maika Monroe), uma mulher tímida e reservada que possui uma habilidade incomum de “prever” certos acontecimentos. Por isso, ela é designada para reabrir um caso arquivado: uma série de assassinatos misteriosos atribuídos a um serial killer conhecido como Longlegs.
Os crimes seguem um padrão macabro: pais, de alguma forma influenciados por uma força sinistra, matam suas famílias – sempre compostas por mãe e filha(s). Todos os assassinatos ocorrem perto do décimo aniversário da filha mais nova, e, em todas as casas, é encontrada uma carta escrita em um código estranho e indecifrável, assinada por Longlegs. Mas ninguém encontra nenhum vestígio da entrada do homem nestas casas.
Conforme Lee se aprofunda na investigação, ela descobre uma conexão perturbadora entre os crimes e alguns elementos bem próximos de sua própria vida. A trama mistura terror psicológico com mistério, à medida que Lee enfrenta o crescente medo e a incerteza sobre as forças misteriosas que cercam Longlegs, além de seus próprios traumas do passado.
A direção de fotografia de Andres Arochi é espetacular, criando uma sensação constante de desconforto. As cores lembram o estilo italiano giallo, com tons saturados de vermelho, azul e amarelo, conferindo ao filme uma atmosfera retrô, semelhante aos anos 1970. Os personagens são frequentemente inseridos em ambientes distorcidos, como corredores que parecem infinitos, escadas em ângulos estranhos e enquadramentos assimétricos, tudo para intensificar o desconforto visual.
A trilha sonora é repleta de sucessos do glam rock, com referências a T-Rex e Velvet Underground. No entanto, a história parece ambientada nos anos 1990, uma época anterior ao vício em smartphones – algo que, se existisse na trama, tiraria boa parte da tensão.
Nicolas Cage está excelente no papel de uma figura que lembra uma espécie de bruxa pós-moderna de um conto sombrio. Usando uma máscara ou prótese desproporcional, sua aparência remete a uma harmonização facial grotesca. Sua pele é extremamente pálida e descascada, e sua figura magra e longilínea, com gestos erráticos e falas teatrais, faz lembrar uma marionete manipulada por forças sinistras.
Agora… CUIDADO COM SPOILERS!
É nesse cenário de pesadelo que o filme explora suas mensagens simbólicas, especialmente relacionadas à sexualidade feminina, um tema recorrente no gênero.
A trama começa com uma cena de grande impacto: uma menina, prestes a fazer 10 anos, encontra pela primeira vez Longlegs em um cenário branco e gelado. Vemos a figura sinistra apenas das pernas para baixo, do ponto de vista da criança, o que explica o nome “longlegs” (pernas longas). Esse breve vislumbre é suficiente para gravar a imagem do vilão em nossa memória, causando uma sensação de inquietação.
A oposição entre a paisagem branca e a presença assustadora do vilão reforça a ideia da corrupção da inocência, evocando o medo primitivo de violação da pureza infantil.
Lee, a protagonista, também carrega simbolismos. Inicialmente, ela parece socialmente retraída e emocionalmente distante, mas é altamente analítica e inteligente. Enquanto desvenda os padrões dos assassinatos, parece que a trama seguirá um caminho mais investigativo. No entanto, conforme ela desenterra memórias reprimidas, elementos sobrenaturais surgem, numa metáfora de quando confrontamos nossos próprios medos internos. Isso, no entanto, enfraquece a narrativa policial, pois muitas pistas são resolvidas de maneira rápida, graças à sua intuição quase sobrenatural, um estereótipo problemático da “intuição feminina”.
Outra questão simbólica presente é o papel da boneca. Comumente associada à infância, a boneca evoca inocência, pureza e simplicidade, representando o brincar e a imaginação antes da chegada das responsabilidades adultas. Em outra perspectiva, ela também simboliza controle e manipulação, refletindo a perda de autonomia, onde personagens são comparados a marionetes manipuladas por forças externas.
Além disso, a boneca funciona como um reflexo do ser humano, abordando questões de identidade e autenticidade, temas que são fortemente explorados no enredo do filme.
Sob outro ponto de vista, a boneca pode representar uma versão idealizada ou distorcida de alguém, um modelo imutável que não envelhece, não evolui nem se transforma. No universo sobrenatural, ela é frequentemente associada à morte ou a forças malignas, como em narrativas de terror onde bonecas são possuídas, amaldiçoadas ou usadas como condutores do mal, como no caso de Annabelle ou na mitologia dos bonecos vodu. O uso de bonecos explora um medo ancestral: o temor de que objetos inanimados ganhem vida.
Um ponto crucial, considerando o recorte de gênero desta análise, é a associação da boneca com a feminilidade e os padrões de beleza, como ocorre com a Barbie, por exemplo, que muitas vezes simboliza a pressão social para se adequar a padrões estéticos irreais. A boneca pode também representar vazio e frieza emocional, sugerindo desconexão ou superficialidade. Em todas essas interpretações, a boneca carrega um peso simbólico que se adapta a diferentes narrativas, refletindo emoções e questões psicológicas profundas, muito presentes nos argumentos do filme.
Outro elemento chave na trama é a religião. No filme, as bonecas são dadas às meninas pela igreja local, através de uma freira, uma mulher que abdicou de suas próprias ambições e desejos para se dedicar à religião, surgindo como “mulher correta, virtuosa” em contraponto às possíveis mulheres que essas meninas poderiam se tornar.
Isso reforça a ideia de controle e manipulação da igreja sobre a sexualidade feminina, impedindo que as meninas atinjam sua completude e complexidade como seres humanos. A força maligna, que deveria agir em oposição à igreja e ser libertária, luxuriosa e tentadora, parece trabalhar em conjunto com ela na opressão, reforçando a misoginia e interrupção da vida, da sexualidade e de todas as possibilidades daquelas meninas que nem chegaram a se confirmar, tema já tão bem trabalhado de diversas formas, em obras cinematográficas como Carrie, O Bebê de Rosemary, Possessão, entre outros clássicos do terror.
Longlegs: Vínculo Mortal (ah, esse subtítulo…) é um filme visualmente impressionante e cheio de simbolismo, especialmente dentro deste recorte de gênero. Embora tenha falhas em explorar mais profundamente seus personagens e subtramas, seu clima claustrofóbico e psicológico o torna uma obra intrigante, mesmo que não seja o melhor filme (de terror ou não) de 2024.