Quebrando a quarta parede com o Deadpool
Ou: quando o personagem transforma o espectador/leitor em parte integrante do contexto da história
Por THIAGO CARDIM
Deadpool é um personagem divertido, sem papas na língua, uma mistura das piadas infames do Homem-Aranha com a violência desmedida do Justiceiro e a responsabilidade, bem, de um adolescente de 15 anos com superpoderes. Mas tem um elemento fundamental do personagem que se tornou uma de suas características mais reconhecíveis – tanto nos gibis quanto nos filmes. Estamos falando da habilidade de conversar com VOCÊ. É, isso, você mesmo aí, que tá lendo.
Sim, porque Deadpool fala sozinho, com sua consciência. Mas também fala com você, que está lendo o gibi. E mais: Deadpool ainda sabe que é apenas um personagens de HQs. Isso cabe numa adaptação para as telonas? Antes, vamos discutir este tipo de fenômeno, derivação de uma teoria cunhada e conhecida primariamente por quem trabalha com teatro batizada de quarta parede.
A “quarta parede” (além das três que, em teoria, delimitam o espaço do palco) é uma parede imaginária que fica na frente do palco, criando uma espécie divisão entre os atores e a plateia – e condicionando o público a um papel passivo, que está ali apenas para assistir. O conceito teria surgido no século XVIII, com base nas teorias do escritor e filósofo francês Denis Diderot, que teria dito “Imaginai, na borda do teatro, uma enorme parede que vos separe da plateia; representai como se a cortina não se levantasse”.
Pense na quebra da quarta parede – que teria começado na teoria do teatro de Bertolt Brecht – como um recurso que faz com que o personagem dirija sua atenção para a plateia ou tome conhecimento de que ele e suas ações são apenas fictícias ou, como no caso de Deadpool, ambas. É algo que vai além da metalinguagem, o recurso que faz com que vejamos uma história em quadrinhos sendo desenvolvida dentro de uma história em quadrinhos ou uma série de TV filmada dentro de uma série de TV. Episodes, série que traz Matt LeBlanc (o Joey de Friends) interpretando a si mesmo como o protagonista de uma série americana inspirada numa série britânica de sucesso, é um ótimo exemplo de metalinguagem.
Quando se quebra a tal da quarta parede, você acaba com o espaço imaginário e faz com que o espectador/leitor lembre que aquilo que está diante de seus olhos é ficção, acabando com a chamada suspensão da descrença – expressão cunhada por Samuel Taylor Coleridge (aquele, de Rime of The Ancient Mariner) para se referir ao ato da pessoa que está do outro lado da obra aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, “mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou contraditórias”.
Filmes como O Último Grande Herói (que eu amo, apenas para constar), no qual o personagem do filme dentro do filme descobre que é apenas um herói ficcional interpretado por Arnold Schwarzenegger, ou O Show de Truman, no qual o Truman de Jim Carrey se descobre como o protagonista de um reality show que é sucesso global, são exemplos de uma quase quebra da quarta parede. Lembrem também do personagem que sai da tela em A Rosa Púrpura do Caio, de Woody Allen, ou dos irmãos que vão parar dentro da série de TV em Pleasantville, bonitinha comédia romântica com Tobey Maguire e Reese Witherspoon. O mesmo pode ser dito de Mais Estranho Que a Ficção, com Will Ferrell, ou das inesquecíveis passagens de Grant Morrison à frente do Homem-Animal e de John Byrne escrevendo a Mulher-Hulk, quando os personagens da ficção se encontram com seus escritores de alguma forma, iniciando uma interlocução. Criatura encontra criador.
O recurso começa a ser usado em sua totalidade, no entanto, quando o personagem passa a se dirigir à plateia – como fazem o Frank Underwood (Kevin Spacey) da série House of Cards, o Ferris Bueller (Matthew Broderick) do clássico filme oitentista Curtindo A Vida Adoidado ou o Caco Antibes (Miguel Falabella) da sitcom brasileira gravada ao vivo Sai de Baixo.
Neste último caso, bastava um simples improviso, quando um ator resolvia sacanear o outro, para que eles se admitissem como personagens da ficção e, inclusive, pedissem a participação dos presentes na audiência para tirar uma onda com convidados especiais, mencionando fatos correntes da política, do esporte ou da própria programação da Rede Globo.
Aproveitando a levantada de bola sobre uma obra nacional, no entanto, talvez um dos mais conhecidos exemplares de quebra de quarta parede, da forma mais ousada como acontecesse com Deadpool, seja a Turma da Mônica. É, amigão, não estranha não que é verdade. Não são raros os casos em que a baixinha+gorducha+dentuça e seus amiguinhos do Bairro do Limoeiro falam com o leitor, admitindo que são personagens de quadrinhos e ainda brigam com roteiristas/desenhistas por conta dos rumos da história. Quem não se lembra dos inúmeros apelos do eterno coadjuvante Xaveco, pedindo pra ser tratado com mais respeito e buscando participações maiores nos gibis e, quem sabe, até um gibi próprio…?
Como tudo começou
Existe uma parte da origem de Deadpool que talvez nem todo mundo conheça. Antes de assumir a alcunha de Deadpool, ele assumiu o nome de Wade Wilson – que, na verdade, nem era dele. O nome pelo qual atendia era apenas Jack. Foi como Jack que ele entrou para o exército, foi como Jack que ele saiu do exército e foi como Jack que ele se tornou um matador de aluguel, um mercenário que atendia quem pagasse primeiro. Até o dia em que um trabalho não saiu exatamente como o sujeito queria e ele acabou baleado e em fuga.
Foi então auxiliado por um jovem casal, Wade e Mercedes Wilson. Eles o acolheram, cuidaram do sujeito – e, assim que melhorou, Jack retribuiu atacando o casal e tentando roubar a identidade de Wade para seguir fugindo. Mercedes acabou morta por acidente. Isso mexeu com a cabeça de Jack, que começou a pirar naquele momento. A partir de então, Jack passou a atender pelo nome de Wade Wilson. Porque, vejam, ele realmente acreditava que era Wade Wilson (por mais que o verdadeiro Wade Wilson surgisse em seu caminho anos depois, agora sob a forma de um grandalhão zumbi chamado T-Ray…mas isso é outra história).
Saindo do Canadá e indo para os EUA, arrumou um trampo como executor de um chefão do crime e se apaixonou por uma jovem prostituta (Vanessa Carlysle, que depois se tornaria a metamorfa Mímica). Mas foi só descobrir que tinha um tipo incurável de câncer para que sua vida virasse do avesso novamente. Não quis causar mais sofrimento para a garota. E desapareceu.
Foi parar, graças aos contatos certos, sob os cuidados do programa Arma X – é, você sabe, aquela fábrica de supersoldados do governo canadense e que, anos antes, tinha sido responsável por um lance envolvendo adamantium e um cara chamado Logan. Como cobaia, teve seu câncer extirpado (vitória!), ganhou um fator de cura graças à manipulação dos genes do próprio Wolverine (vitória dupla!), mas o seu corpo ficou repleto de cicatrizes (putz…), além do processo de enlouquecimento ter se acelerado mais do que qualquer cientista podia prever…
Mesmo assim, Wade tornou operativo de campo. Um agente um tanto instável, na verdade, que depois de matar um de seus colegas de trabalho, foi considerado, er, inadequado. Acabou indo parar na tal Oficina, um lugar onde super-humanos que “não deram certo” era tratados como cobaias (de novo…) pelo Dr.Killerbrew. Resistente, bem-humorado e respeitado pelos colegas, ele atraiu a inveja do assistente de Killerbrew, um sujeitinho de nome Ajax. Seu coração foi arrancado mas, vejam só, seu fator de cura foi rápido o bastante para que ele se regenerasse e renascesse. Foi quando ele assumiu o codinome de “Deadpool”, em referência à lista de apostas que os internos tinham para determinar quando cada um deles morreria (em inglês, uma “dead pool”).
Foi aí que Wade Wilson adotou o traje vermelho e preto e resolveu encontrar uma nova vida. Trabalhou fazendo serviços para o Cabeça de Martelo e para o Rei do Crime (substituindo o Mercenário), integrando o Quarteto Terrível do Mago, tentando ajudar os colegas canadenses da Tropa Alfa. Mas foi na Casa do Inferno, um ponto de encontro de mercenários, que Deadpool arrumou um trampo trabalhando para o viajante do tempo conhecido como Tolliver. Sua primeira missão para este sujeitinho seria matar um camarada chamado… Cable. Foi neste momento que Wade Wilson foi apresentado inicialmente dentro do Universo Marvel, como parte do título dos Novos Mutantes – que, mais tarde, se tornariam a X-Force. Cortesia de um jovem e irascível quadrinista conhecido como Rob Liefeld.
Uma história engraçada…
Quando adentrou a Casa das Ideias chutando a porta da frente, o jovem aspirante a desenhista Rob Liefeld não tinha lá muito talento visual a oferecer. Mas ele tinha muitas ideias (sendo que nem todas eram boas, vá). Depois de um ano à frente da arte dos Novos Mutantes, ele ganharia a chance de tornar-se roteirista e arte-finalista do gibi. Em New Mutants # 98, contando com o escritor Fabian Nicieza como parceiro, Liefeld apresentou três novos personagens (os primeiros de uma legião que surgiria anos depois) – Dominó, Gedeão e Deadpool.
“Tudo que eu sabia na época é que ele era um matador letal e ágil”, contou Nicieza, em entrevista a Mike Conroy (responsável pelos encartes que vêm junto com as estatuetas colecionáveis da Eaglemoss), a respeito do momento em que viu as primeiras imagens de Deadpool nos layouts de Liefeld. Para Nicieza, aquele personagem parecia bastante familiar. Então, o roteirista ligou para Liefeld e deu a cartada: “Este sujeito é o Exterminador!”, comparando Deadpool com o vilão surgido nas páginas dos Novos Titãs, da DC. “É, você me pegou”, admitiu Rob, conhecido por, digamos, se inspirar em outros personagens para criar os seus. Considere ainda que Deadpool se chama Wade Wilson e o Exterminador (também um mercenário) tem o nome de Slade Wilson para entender o tamanho da piada interna de Nicieza/Liefeld, ambos fãs dos Titãs.
Inicialmente, Deadpool seria um personagem descartável, destinado a sumir. Então, Liefeld liberou Nicieza para escrever o sujeitinho como uma metralhadora falante, um sujeitinho irritante, insano e mal-humorado destinado a tirar do sério qualquer um com quem fosse lutar. Esta era a forma de Nicieza brincar com um pouco de humor nos títulos X, geralmente conhecidos por sua seriedade. “Deadpool nunca teria sido introduzido desta maneira no título principal dos mutantes, porque o editor não deixaria que este tipo de humor, quase uma paródia, fosse parar no núcleo sério dos X-Men”, conta Nicieza. Para ele, Deadpool é algo diferente até mesmo do Homem-Aranha – sendo praticamente um comediante.
A iniciativa de colocá-lo quebrando a quarta parede foi cortesia de Joe Kelly, roteirista que cuidava dos roteiros dos primeiros gibis solo do personagem – pois é, ele faria tanto sucesso que acabaria angariando suas próprias chances de estrelar um título só seu. Kelly, hoje parte do coletivo Man of Action (criadores do personagem infantil Ben 10, ou seja $$$), era na época um ilustre desconhecido. E a chance que ele e Ed McGuiness, dono de um estilo de desenho quase cartunesco, ganharam para trabalhar com Deadpool em 1997 poderia mudar tudo. “Parecia adequado. Queria ter uma resposta melhor – estávamos num título que deveria ser cancelado em seis edições, então achamos que seria uma boa hora para experimentar”, conta Kelly.
O processo de quebrar a quarta parede, no entanto, acabou sendo gradual para Kelly.
Pouco antes, em Deadpool #0, uma edição promocional publicada junto com a revista especializada Wizard, Kelly já tinha brincado com o recurso, mas como esta é uma edição que não faz parte da cronologia regular da editora, digamos que não pode ser considerada. Os especialistas dizem que o “ponto zero” desta característica hoje intrínseca ao mercenário falastrão é o quadrinho abaixo, que mostra o reencontro de Pool com o Mercenário, tradicional inimigo do Demolidor – e no qual nosso astro faz referência ao último gibi em que ambos se encontraram.
Depois da saída de Kelly, a chegada de Christopher J. Priest aos roteiros só ajudou a estabelecer este recurso como a mais saborosa parte do humor do título. E com Gail Simone, que assumiria a tarefa a partir do número 65 e que vinha de uma experiência como redatora de uma coluna de humor no site ComicBookResources.com, a quebra da quarta parede seria complementada por outra situação que vemos comumente em seus gibis: a utilização das conversas de Wade via “caixas amarelas de texto”, usadas para organizar (?) seu pensamento e situar o papo com o leitor.
Depois de um cancelamento e uma brilhante passagem de Nicieza, seu criador original, como escritor do personagem em Cable & Deadpool, Wade Wilson voltaria a ganhar um novo título mensal, que se mantém até hoje. O motivo? Cable vivia sendo arrancado das páginas de Cable & Deadpool para participar dos gigantescos crossovers da Marvel, fazendo com que Deadpool estivesse praticamente em seu título-solo. Então, era hora de institucionalizar aquilo.
A chegada do roteirista Daniel Way acrescentou à personalidade de Deadpool um tantinho de esquizofrenia, já que ele passou a manifestar mais algumas personalidades distintas – com as quais conversava via diferentes quadros de narrador. E mais: por vezes, tornou-se possível enxergar o mundo pelos olhos do anti-herói por meio da chamada Pool-O-Vision.
O próprio Ryan Reynolds, intérprete do Deadpool, já tinha dito ANTES MESMO do filme solo do personagem existir, em uma entrevista para a revista Empire, que um dos planos era manter a quebra da quarta parede, fazendo o Deadpool conversar com os espectadores no cinema – e ele mesmo seria defensor da manutenção do formato.
E que bom que, enfim, a coisa se manteve. 😉