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O tal do Dia do Rock e o festival que quase deu MUITO errado

A data que representa a celebração de um gênero hoje tão reaça surgiu justamente graças à uma iniciativa humanitária de justiça social criada pelo músico irlandês Bob Geldof

Por THIAGO CARDIM
(publicado originalmente no JUDÃO.com.br)

E então que 13 de julho é o tal Dia do Rock. Assim, não que estejamos exatamente no melhor momento do mundo pra celebrar ESTE gênero musical em particular porque, vejam só, os roqueiros reaça se ergueram de todos os bueiros possíveis, inclusive entre os punks e metaleiros, assumindo um conservadorismo bizarro de quem não entende as letras de um U2, The Clash, System of a Down ou Rage Against The Machine. Mas as origens tão lá, pra quem tiver um mínimo de bom senso. De uma sonoridade surgida entre os negros, popularizada entre as classes oprimidas e com um discurso fortíssimo de rebeldia e revolução desde sempre.

Só que sobre o Dia do Rock EM PARTICULAR, vejam só, tamos falando de uma data que virou comemoração no calendário BRASILEIRO porque remete ao dia 13 de julho de 1985, quando aconteceu um dos maiores e mais representativos festivais da história da música, o Live Aid. Uma ambiciosa iniciativa com o objetivo de arrecadar fundos para combater a fome na Etiópia, realizada simultaneamente no Estádio de Wembley, em Londres, e no JFK Stadium, na Filadélfia, vista presencialmente por cerca de 200.000 pessoas e transmitida para quase 2 bilhões de pessoas em 100 países via satélite. O resultado foi uma arrecadação de polpudos 100 bilhões de dólares.

Ou seja — o Dia do Rock surgiu graças a uma empreitada de justiça social. PONTO. Durma-se com um barulho destes.

Obviamente que muita gente lembra do Live Aid pela monstruosa reunião de astros e estrelas como Paul McCartney, Elton John, David Bowie, Mick Jagger, Keith Richards, Madonna, Bob Dylan, Eric Clapton e Crosby, Stills & Nash and Young. Impossível falar do Live Aid sem relembrar que ele ajudou a reunir nomes como The Who, Led Zeppelin e Black Sabbath em suas formações mais clássicas depois de um tempão sem tocarem juntos. Não tem como mencionar o Live Aid e não relembrar que Phil Collins fez o impensável e tocou nos dois locais — primeiro subiu no palco da Inglaterra, depois pegou um avião e chegou a tempo de tocar nos EUA. E simplesmente não tem como falar em Live Aid sem pensar na meteórica apresentação do Queen, histórica e lendária, aquela mesma reconstruída ao final do filme Bohemian Rhapsody.

Mas claro que chega a ser injusto pensar no Dia do Rock sem lembrar justamente do homem que idealizou tudo que aconteceu ali, no caso o músico e ativista político irlandês chamado Bob Geldof. O cara cuja carreira musical, vejam vocês, ficou até em segundo plano sob a sombra do Live Aid.

“Eu me tornei o Santo Bob”

A frase de Bob foi dita numa entrevista pra Associated Press. “Por um tempo fiquei perplexo com o que aconteceu depois. Eu não tinha muito dinheiro na época. Isso afetou inteiramente minha vida particular. Provavelmente acabou me custando meu casamento”, diz Bob, que se revela incomodado por não ter sido lembrado por sua excelência musical, como um Elvis ou os Beatles. “Não me foi permitido voltar ao trabalho. Eu sou um cantor pop. É literalmente assim que eu ganho meu dinheiro. Esse é o meu trabalho. Eu acordo de manhã, se estiver de bom humor, e vou tentar escrever músicas. Vou tentar ensaiar. E eu não podia. E ninguém estava interessado. O Santo Bob não podia mais fazer isso porque seria muito mesquinho e sem sentido. Então, eu estava perdido”.

Nascido em Dún Laoghaire, subúrbio costeiro da capital irlandesa Dublin, Robert Frederick Zenon Geldof foi um fracassado aspirante a jogador de rúgbi antes de se encontrar no mundo da música — primeiro como jornalista musical para um tabloide canadense e depois como vocalista da banda Boomtown Rats, um combo pop / new wave que no entanto estava intimamente ligado ao movimento punk. Portanto, as sementes de um olhar mais “social” estavam ali plantadas. Em setembro de 1981, ele foi convidado a tocar o maior sucesso de sua banda, I Don’t Like Mondays, uma reflexão sobre um massacre acontecido dois anos antes numa escola californiana, durante uma apresentação na sede da Anistia Internacional.

Três anos depois, em 1984, Bob viu um documentário televisivo da BBC sobre a fome na África. Os Boomtown Rats tinham acabado de lançar seu sexto álbum, In the Long Grass, mas ele não conseguia se concentrar naquilo. “Eu me senti enojado, com raiva e indignado, mas mais do que tudo isso, senti uma vergonha profunda”, afirmou, pra revista Rolling Stone. “O que eu poderia fazer?”. Bom, logo ele descobriu, quando se meteu a organizar um single com renda revertida para a caridade, ao lado de Midge Ure, do Ultravox. Lançada sob o nome Band Aid, a faixa Do They Know It’s Christmas? contou com a participação de nomes como Phil Collins, Paul Weller (The Jam), Sting, Simon Le Bon (Duran Duran), George Michael, Tony Hadley (Spandau Ballet), Bono Vox (U2) e Boy George.

A iniciativa deu certo, vendendo mais de 2 milhões de cópias no mundo todo e arrecadando mais de 24 milhões de dólares — além de inclusive influenciar o icônico We Are the World. Mas para ele, não era o bastante, principalmente à medida que o músico começou a entender que cada dólar arrecadado já chegava ao país de destino desvalorizado, principalmente pela obrigação de fazer pagamentos de empréstimos que haviam sido tomados de bancos ocidentais. “Dívida externa”, conhece? Apenas uma canção não seria o suficiente para resolver uma questão tão grande. E eis que veio a ideia de um festival.

É bom lembrar que Bob Geldof não era exatamente o cara mais experiente do mundo em termos de organização de eventos deste porte, mas tinha minimamente muita boa vontade e uma série de bons contatos, pra começar, graças ao Band Aid. No entanto, ele precisava se garantir e, obviamente, garantir a presença dos convidados. Contou logo de primeira com a ajuda de Harvey Goldsmith, um dos maiores produtores de shows da Inglaterra, que estava disposto a fazer o sonho virar realidade, uma apresentação na ilha da Rainha, outra na terra do Tio Sam, tudo transmitido globalmente pela TV para arrecadar fundos.

Nos EUA, ele contou com a primordial ajuda de Bill Graham, lendário produtor relacionado com o movimento da contracultura, dono das casas de shows Fillmore West e Fillmore East, homem muitíssimo bem relacionado.

Geldof chegou a ligar pro David Bowie garantindo que o Queen tava na parada e vice versa, só pra não perder nenhum dos dois, ainda que nenhum dos dois estivesse fechado. O mesmo fez Michael C. Mitchell, o homem que cuidou das finanças do Live Aid, que correu pra vender os direitos de transmissão que garantiriam toda a parte de produção — lembremos que, embora eles e os artistas não estivessem COBRANDO nada, toda uma galera de backstage precisaria ser paga, com justiça, né. Aí, depois de receber negativas da CBS e NBC, Mitchell foi bater um papo com a ABC e disse que ambas estavam interessadas, que era melhor eles correrem pra fechar… Deu no que deu.

Agora imagina a treta pra negociar isso com CADA um dos países que transmitiram a parada, parcial ou integralmente?

Vivendo todos os dias sem aceitar NÃO

Geldof se tornou basicamente aquele cara pilhado que não aceitava NÃO como resposta. Chegou até a ser acusado de usar “chantagem” moral pra fazer a galera comparecer, meio na pegada de “como assim você está se recusando a ajudar quem está passando fome?”. Ele diz que era uma coisa pragmática. “Eu não me importava se alguém ia ou não participar do Live Aid. Mas tinha que anunciar o show — faltavam seis semanas para o evento e eu tinha que fazê-lo. Uma coisa era falar com os músicos ao telefone, mas até que estivesse carimbado no papel, eles não iam se comprometer DE VERDADE”.

O que aconteceu é que, na coletiva de imprensa de Londres e Nova York, um mês antes do show, diversos nomes como o cantor country Waylon Jennings, além de Mick Jagger, Tears for Fears, Paul Simon e Huey Lewis, não tinham dado o OK oficial e constavam na listagem de anunciados. “Bryan Ferry me ligou e disse: cara, eu não tinha concordado com isso ainda. E eu disse: bom, tá legal, Bryan, se quer pular fora, está tudo bem. Eu só vou precisar ir lá e anunciar isso. E é claro que ele não conseguiu pular fora”. O mesmo aconteceu com Stevie Wonder, que tinha inclusive declinado e, segundo seu agente, nada foi dito até que eles viram o anúncio na TV e mandaram um WTF. ¯\_(ツ)_/¯

Geldof sonhou noites a fio com o fracasso e ficou morrendo de medo que uma galera não aparecesse, por mais que os produtores tivessem que dizer “não” para uma galera que pintou de última hora querendo participar, bandas de medalhões das paradas como Foreigner ou então os cultuados progressivos do Yes. Bruce Springsteen e Billy Joel talvez tenham sido as baixas mais visíveis, o primeiro por questões envolvendo sua banda (que estava no primeiro período de folga depois de cinco meses de turnês intermináveis), o segundo por discordar do formato previsto para ele (tocando um piano para o estádio lotado). Mas, quando as cortinas se fecharam, 39 apresentações rolaram nos EUA, enquanto 22 tomaram conta do palco em Londres.

Isso não impediu, claro, que Geldof tenha ficado pilhadíssimo ao longo de todo o processo, chegando a ter que deixar o telefone fora do gancho na madrugada para poder dormir um pouco. Pouco antes dele mesmo entrar pra se apresentar com sua banda, recebeu uma massagem nas costas de ninguém menos do que David Bowie, pra ver se ficava mais calmo. Ainda assim, durante a transmissão, quando as doações estavam abaixo do esperado, chegou a chocar os espectadores ao aparecer falando palavrões e batendo na mesa ao dizer que as pessoas deveriam deixar de ir pro pub encher a cara e ficar em casa vendo o show e doando pra quem precisava. “Give us your fucking money!”, teria dito ele, ao vivo, embora Geldof negue que o “incidente” ocorreu de fato.

No fim, deu tudo certo e o Live Aid entrou pra história. O cantor transformado em ativista chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz e virou cavaleiro honorário da Coroa Britânica. Claro que o evento está LONGE de ser à prova de balas e sofreu questionamentos, ao longo dos anos, mais do que justos — a começar pela falta de mais artistas negros na seleção, à exceção de poucos nomes como Four Tops, Run–D.M.C., Ashford & Simpson e Patti LaBelle (Geldof chegou inclusive a pedir a ajuda do icônico produtor Quincy Jones para resolver a questão, mas esteve longe de encontrar um equilíbrio).

Diversas reportagens, logo depois, de publicações como The Guardian e Spin, tentaram entender o caminho que toda esta grana seguiu, algumas delas defendendo que houve um desvio de parte dos lucros para as mãos do governo de Mengistu Haile Mariam, líder da junta militar Derg e conhecido por sua brutalidade perante os inimigos.

Ainda assim, boa parte dos especialistas são unânimes ao dizer que o resultado causado pelo Live Aid foi muito mais benéfico do que qualquer outra coisa, ao expor publicamente as mazelas da África, a pobreza, a fome, a violência, ajudando a cobrar a comunidade internacional diante da questão do crescente endividamento das nações africanas e fazendo com que os artistas entendessem que sua posição de privilégio e amplificação poderia ser usada para outros fins.

Mas Geldof acredita que replicar um evento nos mesmos moldes seria impossível nos dias de hoje, ainda que nomes como Bono Vox, por exemplo, continuem sendo bastante ativos politicamente. “Aquele foi o fim de um período político de cooperação, consenso e compromisso. Isso aconteceria hoje? Não. É só olhar para os palhaços que governam o planeta atualmente para entender que nunca mais poderia acontecer novamente”.

Complementando com OUTRA entrevista que ele deu a respeito, agora para a rádio canadense CBC, ele afirma que não apenas o rock perdeu a sua relevância enquanto ferramenta de mobilização, mas a internet ajudou a dividir o mundo em uma maré de individualismo e se tornou ferramenta fácil para os autoritários usarem a seu favor.

Mesmo assim, ele tenta ser otimista e diz que não podemos deixar de nos enfurecer contra a “morte da luz”. Segundo Geldof, embora possamos reconhecer que todas as gerações fracassam e algumas falham mais espetacularmente do que outras, isso não significa que você não pode ser Greta Thunberg ou ficar na frente da sua escola em silêncio e apenas dizer NÃO em sinal de protesto. “A possibilidade de direcionar seu mundo na direção em que você precisa viver AINDA está aí”.



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