Cangaço Overdrive finca raízes de olho no futuro
Batemos um papo com o roteirista Zé Wellington a respeito da continuação de um dos melhores gibis nacionais dos últimos anos – que chega com novas doses de cangaço e igualmente de cyberpunk
Por THIAGO CARDIM
Em 2018, o roteirista Zé Wellington, natural de Sobral, interior do Ceará, resolveu brincar com o conceito diferente. Depois de experimentar os clichês dos vigilantes uniformizados em plena realidade nua e crua da favela em Quem Matou João Ninguém?, ele resolveu que era hora de flertar com o cyberpunk. E mais do que fazer a centésima versão diferente de Blade Runner ou Matrix, ele fez o cyberpunk ser LITERALMENTE aqui. Nascia portanto Cangaço Overdrive, uma das mais incríveis HQs nacionais lançadas nos últimos anos.
Fã de longa data da animação Samurai Jack, aquela do Genndy Tartakovsky, Zé sempre pensou com seus botões de que forma poderia criar algo que tivesse a mesma pegada. “Mas já temos bastante samurais no futuro: Samurai Jack, Ronin (do Frank Miller), Afrosamurai… Se fosse para ser feito no Brasil, era preciso um personagem do nosso imaginário e o cangaceiro caía como uma luva”, contou ele pra mim numa entrevista que fizemos à época pro JUDÃO.com.br.
Com inspirações que misturavam Neuromancer (clássico literário de William Gibson) e Da Lama ao Caos (o icônico disco de Chico Science e Nação Zumbi), ele costurou a trama de um Ceará num futuro próximo, enfrentando sua maior seca em séculos. E aí que, numa terra esquecida pelo governo e dominada pelos interesses dos conglomerados empresariais, um lendário cangaceiro e um impiedoso coronel são reanimados para continuar a peleja que deixaram no passado. Enquanto isso, uma comunidade autogerida tenta manter a independência ao defender sua terra de um ataque da polícia orquestrado por uma grande corporação.
Mas a história do Capitão Cotiara, este herói improvável, ainda não tinha acabado. E em 2024, o quadrinista retorna a este universo com Cangaço Overdrive: Além das Raízes, que está no meio de uma campanha de financiamento coletivo lá no Catarse neste exato momento.
Migração, caçada e vingança
Trabalhando com uma nova equipe criativa, com desenhos de Rafael Dantas (Mandacaru Vermelho, Lâmina Azulada) e Rodrigo Matos (Arquivos secretos da Segunda Guerra Mundial), cores de PH Gomes e capa de Daniel Canedo, Zé conseguiu que o projeto fosse apoiado pela Secretaria da Cultura do Ceará, por meio do XII Edital Ceará de Incentivo às Artes, lei 18.012, de 1º de abril de 2022, além de ter a garantia de lançamento pela Editora Draco.
“Neste volume, a gente resolveu fazer o protagonista Cotiara passar pelo que passou muito cearense quando migrou pra São Paulo, só que no caso pra caçar os responsáveis por revivê-lo no futuro”, explica o autor, num papo inédito com o Gibizilla. “Só que essas pessoas fazem parte do poder vigente na cidade e Cotiara acaba se envolvendo numa disputa entre poder público e uma ocupação urbana. É uma desculpa pra gente falar de um monte de coisas, como o sistema político brasileiro, poder e propriedade”.
Ele conta que a ideia aqui foi trabalhar com um cenário mais próximo do cyberpunk tradicional, embora tenham sido mantidos os flashbacks no sertão nordestino do passado. O transumanismo (movimento que visa transformar a condição humana com o uso de tecnologias emergentes), que era apenas mencionado por cima no volume anterior, fica mais central na trama, com a apresentação de Key Key, um antagonista meio Elon Musk meio cantor de k-pop.
“Acho que em Além das Raízes, a receita ficou ainda mais balanceada do que no primeiro volume, com a trama urbana mais classic cyberpunk, enquanto a gente tem mais páginas de flashback na era áurea do cangaço”, explica ele. “Nessa parte mais sertaneja, a gente explorou o que fez de Cotiara o tipo de cangaceiro que é e conseguiu ir mais longe nessa coisa de ‘cangaceiro pode ser herói?’, explorando o caldeirão social maluco que deu origem ao banditismo da época. Pra quem queria ter visto mais sobre o cangaço no volume 1, a hora chegou”.
Um futuro que fala do presente
Mesmo com comunicadores de última geração, conexões neurais e implantes cibernéticos, o cyberpunk sempre foi um gênero que, de alguma forma, conversa mais com os dias de hoje do que se imagina. Em Cangaço Overdrive, obviamente, isso não é diferente. “Existem alguns rótulos de tempo nos dois volumes onde dá pra calcular o quanto no futuro nossos personagens estão”, conta o escritor. “Mas eu sempre disse para minha equipe de trabalho que estamos num futuro muito próximo. Nos dois volumes há confrontos do poder contra comunidades pobres e discussões sobre propriedade que, para mim, são discussões atuais (e do passado também)”.
O mesmo dá pra dizer sobre o nosso sistema político, tema importante no segundo volume. A primeira versão da história falava ali sobre crescimento da extrema direita, mas a bem-vinda mudança presidencial recente trouxe novas discussões políticas pro Brasil. “Eu definitivamente não estava pensando no que vai acontecer no futuro, mas no que já está acontecendo”.
Ele lembra que a reação ao quadrinho original foi excelente. “Eu ia em evento e as pessoas queriam dar um abraço em quem escreveu Cangaco Overdrive. Recebi e-mails calorosos, com coisas doidas do tipo ‘esse quadrinho salvou a minha vida’. Li um monte de artigo científico sobre a HQ (que fez eu me sentir mais inteligente)”, brinca.
Zé relembra que Cangaço Overdrive surgiu dentro de um zeitgeist da valorização das narrativas que vinham da região Nordeste, um ano antes de lançarem o filme Bacurau. “Nesse tempo, veio também um movimento importante de problematizar a representação dos povos nordestinos, com os textos do professor Durval Muniz ou movimento Sertãopunk”, revela. “A gente inclusive absorveu essa problematização e pensou sobre as escolhas que tomamos no primeiro volume. Eu tô bem atento a tudo isso, tentando aprender a ser um escritor melhor no processo. Até isso Cangaço Overdrive proporcionou”.
Este é um futuro que tem futuro?
“Como um cara integrado ao quadrinho nacional há vinte anos, eu não costumo pensar minhas HQs como grandes sagas”, confessa o Zé, quando pergunto se esta segunda parte já estava pensada lá atrás, assim que o primeiro gibi saiu. “Eu sei que isso é muito difícil de sustentar (e eu já estou justificando o grande hiato de seis anos entre os dois volumes), então tendo sempre a histórias fechadas”.
Ele diz que pensou várias vezes no que mostraria na última página do volume 1 e chegou a cogitar um final bem fechado MESMO, pra quem ninguém sentisse que seria preciso voltar a esse universo. “Sei lá por que eu mudei de ideia, mas acabei colocando alguns elementos que davam essa esperança de que poderia ter mais alguma coisa depois. Aí o quadrinho saiu e se tornou minha HQ mais lida e mais comentada, vieram ainda os famosos ‘quando sai o número dois’ e um cadinho de incentivo dos meus editores na Draco, então a vontade de fazer uma continuação venceu meu pessimismo”.
A gente aqui agradece. 😉
Agora, tá bom que o segundo volume ainda não saiu OFICIALMENTE, mas não dá pra gente evitar aquela pergunta… Cangaço Overdrive vai virar uma série de quadrinhos? Podemos esperar um novo capítulo daqui um tempo? “O Raphael Fernandes [editor da Draco] leu o roteiro do segundo volume, disse que era o meu melhor roteiro e depois mandou logo um ‘agora é fechar a trilogia’”.
Ou seja, a pressão tá mais do que feita, hahahahaha. “Além das Raízes é feito pra ser também uma história fechada, mas foi pensada pra definir alguns conceitos e expandir o universo. As raízes já estão fincadas, vamos ver o quando esse mandacaru cresce depois que a nova HQ estiver no mundo”.
Se depender de nós, vamos cuidar desta planta com MUITO carinho. <3