Tintim e uma treta em quatro atos
Obra máxima de Hergé, o eterno garoto jornalista volta a ser alvo de questionamentos nas redes sociais por conta de HQs racistas e colonialistas. Mas… será que o assunto se encerra aí de verdade?
Por THIAGO CARDIM
Tudo começou em março deste ano, com o que deveria ser o simples anúncio dos novos uniformes que a seleção da Bélgica vai usar na disputa da Eurocopa 2024, aquela que acontece a partir do meio do ano (eu não manjo nada de futebol, mas meu filho garantiu que sim). O uniforme número 2, aquele a ser usado em disputas “fora de casa”, é claramente uma homenagem a ninguém menos do que Tintim, personagem mais famoso do cartunista belga Georges Remi, mais conhecido pelo nome de Hergé.O grande ponto é que sabemos o quanto a internet está atenta – e as redes sociais prontinhas pra pegar fogo ao menor sinal de faísca. Neste caso, estamos falando da retomada de um assunto recorrente, o racismo e o colonialismo por trás de algumas das obras do autor, em especial os que vemos claramente no segundo álbum reunindo as páginas do personagem, “Tintim no Congo” (ou, no caso, “Tintim na África”, como saiu originalmente por aqui pela Editora Record), cuja primeira edição em preto e branco data de 1931.
O assunto costuma retornar, de tempos em tempos, tal qual acontece no caso de Monteiro Lobato ou H.P. Lovecraft, por exemplo.
Levemos em consideração ainda os muitos jogadores negros em atividade no escrete belga, tal qual o craque Romelu Lukaku, e você vai ver que o cenário para a discussão era ideal. Uma discussão JUSTÍSSIMA, é preciso deixar claro. Mas uma discussão que tem mais camadas do que parece.
Vamos ao ato 1.
Sim, sim, este gibi é racista PRA CARALHO
É importante tirar isso da frente, antes de qualquer coisa. Tamos falando de um trampo originalmente encomendado pelo jornal belga conservador Le Vingtième Siècle para o seu suplemento juvenil Le Petit Vingtième – que foi editado semanalmente entre maio 1930 e junho de 1931, para depois ser republicado no formato álbum pela Éditions du Petit Vingtième em 1931. A missão original de um Hergé que jamais tinha pisado no Congo era justamente reforçar a visão dos belgas como os “salvadores brancos” dos selvagens congoleses. Esta era a ideia inicial do padre Norbert Wallez, dono do jornal e apoiador do movimento fascista (depois condenado pela justiça belga por colaboração com o nazismo, OLHA QUE GENTE BOA).
A história mostra Tintim e seu cachorro Milu visitando o Congo Belga para denunciar acontecimentos criminosos no país e descobrindo uma operação de contrabando de diamantes. Mas, no meio do caminho, o rapaz acaba se tornando reverenciado por uma população de “pobres diabos” sem o mínimo de educação, que chegam inclusive a instalar uma estátua em sua homenagem, glória glória, o menino e seu cãozinho.
Vale lembrar que, na década de 1940, quando se tornou muito mais famoso, Hergé chegou a “redesenhar” algumas de suas obras da fase em preto e branco – e esta visita do heroico garoto ao Congo foi uma delas. Ele chega até a “suavizar” o colonialismo que estava abertamente presente, como na aula que Tintim é convidado a dar às crianças do local. Aquela mesma que era uma saudação à “Vossa Pátria, a Bélgica” e que, posteriormente, se tornou uma aula de matemática. O traço exagerado dos homens e mulheres negros, no entanto, seguindo a cartilha do black face na pegada Jim Crow, permaneceu.
Vale lembrar ainda que, em 1975, portanto oito anos antes de sua morte, Hergé chegou a falar sobre a história que tanto lhe rendeu questionamentos ao longo da vida e disse que ela foi escrita quando “estava alimentado de preconceitos do meio burguês no qual vivia”. O autor ainda disse que desenhou os africanos de acordo com estes critérios, “de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica”.
Porém, isso é motivo pra cancelamento?
Olha só, vamos dar às coisas os nomes que elas REALMENTE têm. Hergé era um europeu extremamente privilegiado e isso é FATO. Caso ele estivesse vivo, nos dias de hoje, seria “cancelado”? Obviamente que não. E aqui está o meu ponto de discordância a respeito da tal “cultura do cancelamento”, que eu acho um termo BEM MERDA.
Porque nenhuma destas pessoas, apesar das cagadas que cometam, serão de fato CANCELADAS. Afora um apanhado de críticas – que podem ser justas ou não, isso vai variar de caso a caso – não podemos esquecer que é muitíssimo difícil um homem branco cis sofrer algum tipo de sanção. Ele não vai deixar de fazer seus gibis, seus filmes, seus livros, lançar seus discos por aí.
No máximo, vai sumir durante algum tempo, até que se sinta confortável para voltar à opinião pública, carregando uma narrativa de sofrimento e afins… Um herói, vamos dizer, como Johnny Depp bem pode atestar.
Ser uma pessoa pública e, portanto, passível de críticas, não significa um tal “cancelamento”. Significa apenas que você não é perfeito e à prova de balas e que, no mundo de hoje, em que as pessoas encontraram as suas vozes (e isso é, sob certo ponto de vista, uma ótima notícia), elas vão falar sobre você e sobre sua arte, esteja você vivinho da silva ou já tenha se tornado nota de rodapé nos livros de história. E vão decidir se param ou não de consumir você, enquanto produto de cultura pop. E tá tudo bem. Cada um sabe como determinadas questões calam no seu peito.
Isso significa, obviamente, pelo outro lado, TAMBÉM entender que as pessoas e suas obras são produtos de seu tempo, de seu contexto. Que podem e devem ser discutidas (como estamos fazendo aqui AGORA, aliás). Que não necessariamente devem ser proibidas, mas sim estudadas. “Temos que parar com esta mania de querer classificar obras como sendo do bem ou do mal”, diz o professor Alexandre Linck, do canal Quadrinhos na Sarjeta, em seu vídeo a respeito do assunto.
Ele reforça ainda que é danoso, para o estudo da arte, querer “higienizar” a arte. E diz: “Todas as obras são manchadas de sangue”.
Dito isso…
Como os congoleses enxergam esta parada toda?
Porque, afinal, é até injusto discutir este assunto falando apenas e tão somente do ponto de vista dos belgas – ou mesmo de um bando de fãs brasileiros esbravejando nas redes sociais.
Em entrevista ao Trivela, o advogado Augusto Chidozie, membro do podcast Ponta de Lança, especializado em política, esporte e cultura no continente africano, disse que esta questão não pode desconsiderar a importância de Tintim como obra, muitíssimo importante para países falantes da língua francesa como o próprio Congo. “A primeira versão do segundo álbum do Tintim tem um caráter extremamente racista. Porém, estamos falando de uma obra que é extremamente influente nos países de língua francesa, ou seja, Congo, França e outro países francófonos na África”, diz. “Desconsiderar isso e entender que a obra não merece ser homenageada é, na minha visão, forçar um pouco a barra”.
Ele acredita ainda que uma HQ como esta pode e deve ser utilizada como exemplo para mostrar como a arte pode ser cooptada para favorecer visões de mundo, em que se coloca o homem branco como centro do universo acima de todas as outras raças.
Linck também completa dizendo que os congoleses acham engraçada a forma com que são retratados na história. “Eles acham isso ridículo e incorporam como uma forma de deboche aos belgas. Eles foram formados pelo Tintim, têm uma relação afetiva – mas isso não apaga a crítica”.
Onde entra a tradução nesta parada toda?
Márcio Rodrigues, historiador, tradutor, editor, pesquisador de quadrinhos e africanista, fez um fio bem interessante no Twitter (aqui não tem X coisa nenhuma, só em X-Men) no qual explica que as traduções brasileiras da obra do Hergé tendem ainda a produzir um enorme desserviço adicional, introduzindo aspectos do nosso racismo brasileiro que não existem no contexto original da obra – e reproduzindo uma visão distorcida e inadequada do trabalho original de Hergé, que, por si só, já era problemático.
No texto original, Hergé reproduz ali o lingala, uma língua de contato: estamos falando de qualquer língua criada, normalmente de forma espontânea, a partir da mistura de duas ou mais línguas e que serve de meio de comunicação entre os falantes. “Um congolês lendo aquilo ali pode não se sentir nada ofendido”. Mas um tradutor brasileiro, por mais versado em francês que ele seja, raramente vai ter conhecimento ou contato com variantes linguísticas do francês africanizado ou mesmo conhecimento sobre línguas crioulas.
“Consideremos o texto original da versão de 1946 e como o mesmo texto aparece em uma tradução da [editora] Cia das Letras, numa edição que tenho de 2008. Não há razão alguma para introdução de ‘nhô’ ou mesmo de ‘preto véio’ numas das passagens em que no original não existe isso”, contextualiza. “Em outras palavras, a tradução que temos aqui acaba em vários momentos inserindo expressões e termos do universo racista brasileiro que não existem no original e que se estão ali é por corroborar estereótipos nossos e não do autor, que também se valia de estereótipos”.
Além disso, a tradução torna a fala dos congoleses, que no original é um francês “africanizado”, bastante formal, em algo rudimentar. “Há uma passagem em que o registro é bem formal, mas na tradução dessa aí de 2008 ficou como ‘isso é que é trabáio! O branco marvado vai tudo pro xilindró’. Quando se vai ver no original, a frase é sintaticamente correta, dentro das regras do francês ensinado”, ensina ele. “Então, ao se falar dessa obra por aqui, cabe antes de tudo considerar que o que temos contato é uma versão que torna as coisas ainda mais problemáticas”.
Ele finaliza dizendo que o público brasileiro fica um tanto alheio ao tema justamente por não existir um investimento das editoras em termos de paratextos – aqueles textos complementares que ajudam a dar informações adicionais a respeito de como era o mundo quando aquela obra foi escrita, por exemplo.
“Tintim costuma circular em escolas, eventualmente”, lembra, exaltando uma preocupação ainda maior sobre COMO isso seria recebido por um jovem estudante sem contexto.
Camadas. De fato, muitas camadas.