Um outro olhar sobre The Mandalorian
Como é possível enxergar questões relacionadas com judaísmo secular, ortodoxia e sionismo na série live-action de Star Wars
Por GABRIELA FRANCO
Muitas vezes percebemos conceitos que estudamos e com os quais convivemos no dia a dia exemplificados de forma clara em produtos culturais que consumimos.
Já falei sobre as semelhanças entre o Holocausto e a Fuga das Galinhas aqui e agora chegou a vez de falar sobre como The Mandalorian (O Mandaloriano), série spin-off de Star Wars, aborda questões como sionismo & judaísmo secular e ortodoxo em seu roteiro.
Neste caso, a série tem propositalmente uma estética meio faroeste, e mostra a saga do “cavaleiro solitário” Din Djarin, um caçador de recompensas mandaloriano (que segue os preceitos do planeta Mandalore) nos confins da galáxia. Ele é inicialmente contratado pelas forças imperiais remanescentes para caçar um bebê da mesma raça do Mestre Yoda, que supostamente teria uma forte presença da Força e poderia se tornar um Jedi.
Ao invés de cumprir sua missão, Din não apenas não entrega a criança como passa a protegê-la, e as aventuras da série se passam enquanto são perseguidos pelo que restou do Império – lembrando que a série se passa depois do filme O Retorno de Jedi (1983) e antes da nova trilogia.
The Mandalorian é a primeira série live-action da franquia Star Wars, criada por Jon Favreau e Dave Filoni e estrelada por Pedro Pascal, com participação de diversos diretores e atores convidados ao longo dos episódios. Acabou se revelando uma produção incrível que trata de amizade, lealdade, paternidade e sim: identidade étnica, relações com religião, disputas territoriais e guerra. É aí que algumas semelhanças com o povo judeu podem ser traçadas.
Quem são os Mandalorianos?
Estamos falando do povo originário do planeta Mandalore, que sobreviveu a eventos terríveis e fez da sobrevivência e tecnologia de segurança praticamente seu modo de vida.
Entre tais tecnologias estão as armaduras infalíveis características de seus guerreiros, feitas do raro e valioso metal beskar, presente no interior da crosta de seu planeta.
Alguns mandalorianos acabaram desenvolvendo uma adoração ao beskar, atribuindo a ele valores sagrados. Para esses, somente grandes guerreiros tinham a permissão para usar as armas e armaduras forjadas neste metal e, para isso, precisavam jurar lealdade ao modo de vida repleto de regras e ordenanças, entre elas ”batizar-se” nas águas subterrâneas do planeta, jurando nunca tirar seu capacete em público.
Obviamente nem todos os habitantes do planeta partilham de uma mesma crença. Mandalore tinha uma população plural, tendo entre eles indivíduos progressistas, ateus e outros que acreditam que o planeta estaria melhor sob as ordens do Império. A esse grupo um pouco mais ortodoxo que vive sob o juramento eles deram o nome Children of the Watch (Filhos da Observância/Penitência) – e o protagonista da série, Din Djarin faz parte dele.
Grande parte dos eventos passados em Mandalore fizeram parte das sagas animadas de Star Wars como Clone Wars e Rebels – mas para quem não viu nenhuma das duas (SHAME ON YOU!), vamos explicar aqui rapidamente…
Mandalore passou por uma série de confrontos, desde guerras civis pelo controle do planeta até confrontos maiores de adversários externos para apropriação de sua tecnologia. Entre as grandes guerras que enfrentou está um grande genocídio que ficou conhecido como O Grande Expurgo ou A Noite das Mil Lágrimas.
Em resumo, tropas imperiais atacaram o planeta dizimando todo o seu povo, além de destruir cidades e tornar o local quase inabitável. Sua superfície, antes cheia de fauna e flora, foi reduzida a um deserto. Mais do que devastar Mandalore, o Império também confiscou todo o beskar para forjar armas, armaduras e naves mais resistentes para suas tropas.
Os poucos mandalorianos que restaram no planeta formaram um grupo pacifista chamado Novos Mandalorianos, que passaram a viver em guetos, rejeitando a ortodoxia pregada pelos Filhos da Observância. Já outros, espalharam-se pela galáxia, executando diversas funções, entre elas caçadores de recompensa, como é o caso do protagonista.
A coisa foi tão devastadora e traumática que muitos dos grupos e clãs que escaparam passaram a ver o planeta como amaldiçoado, uma terra para a qual ninguém deveria voltar sob o risco de levar a morte para seus queridos.
Portanto, os mandalorianos são entendidos como refugiados vagando pela galáxia, mas alguns deles nunca desistiram do sonho de voltar para a casa e reconstruir o planeta.
Uma nova Mandalore
Em um certo momento da série, os mandalorianos resolvem reconstruir sua sociedade – fazendo então as diferenças entre os clãs começarem a aparecer e eles precisarem lidar com isso. Aí vemos os religiosos se tornando mais flexíveis e os mais belicosos aprendendo a ser mais pacíficos com os Novos Mandalorianos. Também passam a aceitar estrangeiros chamados de “rejeitados” como mandalorianos, parte de sua sociedade (lembremos ainda que Din não era, por exemplo, nascido em Mandalore).
Depois de uma série de disputas que abordam conceitos filosóficos e sociológicos, fica claro que só aceitando as diferenças é possível criar uma um novo Mandalore.
Traçando paralelos
Bem, em primeiro lugar não podemos deixar de notar a semelhança com o fato de os mandalorianos terem sido expulsos de seu planeta depois do Grande Expurgo e terem se espalhado pela galáxia, alguns ainda com o sonho de voltar e refazer sua sociedade – levando em consideração as diversas vezes em que judeus também foram expulsos de Israel, o que chamamos de Diáspora Judaica – o Grande Expurgo pode ser um paralelo ao Holocausto, mas infelizmente houve diversos expurgos ao longo da história dos judeus (não com a mesma estrutura e sistema sob os quais o Holocausto foi imposto, por isso ele difere de todos), como o exílio Neobabilônico e a Primeira Guerra Judaico-Romana no século II, que culminou na destruição do Segundo Templo, por exemplo. Eles podem também ser comparados ao evento fundamental abordado na série.
A questão da sociedade mandaloriana se dividir entre nômades do deserto, sábios, sectários pacifistas que vivem em guetos, ateus, guerreiros apátridas e outros que acham que o planeta estaria melhor sob as ordens do Império, também faz um paralelo com a diversidade do povo judeu. Falamos de um grupo etno-religioso, ou seja, que se distingue por seus costumes e culturas próprios e também pelo judaísmo. Mas existem judeus ateus, judeus de outras religiões, judeus ortodoxos, judeus reformistas, sionistas, não-sionistas, judeus de todos os jeitos, cores e sabores.
Não podemos deixar de mencionar os mandalorianos religiosos que têm uma profunda ligação com o metal Beskar, o qual julgam sagrado e construíram em volta dele toda uma estrutura litúrgica. Isso também é uma semelhança do ponto de vista religioso do judaísmo.
Algumas correntes religiosas judaicas realmente têm a visão de Israel como “Terra Prometida” e sagrada, além de uma ligação com o local físico onde o país se encontra, o que torna sagrados alguns de seus pontos geográficos. Como é o caso, na série, das Águas de Mandalore, que devem banhar o guerreiro – isso também é semelhante à mikvé, o banho de purificação e consagração no judaísmo.
O fato de fazerem um juramento e de não tirarem o capacete também pode ter uma analogia com o uso da kipá (yarmulke, e o véu para as mulheres religiosas) que sempre “cobre a cabeça” dos judeus. Para o judeu, a kipá é um lembrete constante da presença de D’us. Relembra o homem de que existe alguém acima dele, de que há Alguém Maior que o está acompanhando em todos os lugares e está sempre o protegendo.
Finalmente, ainda traçando paralelos com a série, nos capítulos finais fica o desejo de criar uma “nova Mandalore”, mais igualitária e pacífica, que pode ser comparado ao desejo dos judeus socialistas fundadores dos primeiros kibutzim, responsáveis pelas funções centrais no assentamento, imigração e defesa dos judeus, pouco antes da formação do Estado de Israel, em 1948. Isso está ligado intrinsecamente ao sionismo, que nada mais é do que o apoio à ideia de que o povo judeu tem o direito de decidir seu próprio destino, incluindo o direito de ter sua própria nação, assim como outros grupos étnicos também têm.
Ainda falando sobre os paralelos entre a Nova Mandalore e os Kibutzim (que, em hebraico, significam “conjunto” ou “assembleia”): são comunidades onde todas as pessoas, judias ou não, vivem, trabalham e produzem em conjunto. Surgiram no século XX, calcados em princípios socialistas, igualitários e comunais, com bens e meios de produção de propriedade coletiva. Sua economia, no início, era essencialmente agrícola. Tudo era compartilhado. Não havia propriedade privada. Foi o modelo socialista que mais teve êxito na história da Humanidade.
Pois que a vida possa imitar a arte e, assim como na série ficcional de uma galáxia não tão distante, todos os povos que compõem Nova Mandalore possam encontrar uma forma de viver em paz, respeitando acordos, limites territoriais e principalmente a vida uns dos outros.
This is the way.
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Iara
Adoro a série e adorei a relação que você fez. Não tinha pensado em nada disso antes. Fez sentido.