X-Men ‘97: um massavéio divertido e bastante consciente
Série animada, continuação direta do clássico dos anos 1990, aposta na ação e amplia a adrenalina, mantendo a essência dos personagens e dando-lhes ENFIM mais camadas
Por THIAGO CARDIM
Graças aos muitos dólares que a Disney gastou comprando a Fox, a Marvel trouxe de volta para baixo de suas asas os direitos de adaptação dos X-Men – e desde então, os fãs ficam em polvorosa aguardando o QUANDO e o COMO alguns dos personagens mais populares da Casa das Ideias vão enfim dar as caras no MCU, como parte do tal “universo expandido e integrado”.
Enquanto não faltam teorias sobre futuros filmes envolvendo heróis e vilões X, enquanto sobram especulações sobre como “Deadpool 3” deve abrir estas portas depois da aparição do Fera ao final de As Marvels e do Professor Xavier naquele HORRENDO Doutor Estranho 2, a Marvel acertou DEMAIS ao construir, de alguma forma, uma NOVA visão dos X-Men com base em um belíssimo acerto audiovisual do passado. E eis que assim surgiu X-Men ’97, mostrando um vigoroso caminho para o que podem ser os mutantes em sua nova versão live-action.
A série animada que tem por enquanto dois episódios disponíveis no Disney+, obviamente ambientada nos anos 1990, segue como continuação DIRETA da animação daquela época, iniciando rigorosamente a partir da “morte” do Professor Xavier. Vejam, claro, “X-Men ‘97” é obviamente um produto saudosista, que apela descaradamente para a nostalgia. Mas consegue ser BEM mais do que apenas isso.
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Atualização que vai além do visual
O “clima” do desenho animado original, aquele que fez a infância de diversos trintões e quarentões que muito provavelmente chegaram a este texto com lágrimas nos olhos, está todinho lá. Sabe aquela coisa bem massavéio (“isso é massa, véio!”), com belíssimas cenas de ação e a adrenalina purinha que se privilegiava em tudo que é gibi da década do grunge e da Image Comics? Tá aqui, lindamente representada.
Quando o Gambit sobe nas costas do Wolverine e energiza as suas garras de adamantium, isso é muito massavéio. Não é difícil de entender o conceito.
A animação 2D, feita tradicionalmente pelas mãos de uma enorme equipe de animadores, deixou o visual mais moderno e dinâmico, criando sequências que perderam aquela dureza do original – ainda bem. Ao invés de termos um bando de bonecões bombados e minas sexualizadas com enormes peitos e coxas, temos heróis um tanto mais esguios e atléticos, como era de se esperar de um bando de gente em roupas coloridas que vive treinando para salvar o mundo. Da mesma forma, as expressões faciais ganharam contornos mais interessantes, de olhares efetivamente mais raivosos e sorrisos claramente mais convincentes.
Mas um dos grandes acertos aqui, de longe, é ENFIM construir mais camadas para os principais personagens da franquia, indo além do costumeiro protagonismo em torno do Wolverine.
Vejam, por exemplo, o que rola com o Ciclope no primeiro episódio. Claro, a sequência em que o avião dos X-Men é destruído por um Sentinela meio zumbi e ele pousa de maneira maravilhosa usando as suas rajadas, é nada menos do que sensacional (eu aqui, enquanto fã de carteirinha de Scott Summers desde sempre, vibrei horrores). Mas vale principalmente prestar atenção no momento em que ele entra num armazém repleto de terroristas humanos que capturaram o jovem Roberto da Costa (nosso brasileiríssimo Mancha Solar): Ciclope mostra que sabe lutar no corpo a corpo e fazer uso de suas rajadas ópticas de uma forma que NENHUM filme conseguiu até o momento.
A gente ama as muitas cenas de luta, os exageros propositais e gratuitos, as frases de efeito. Mas devo dizer que quem gosta dos personagens e curte uma boa HISTÓRIA, de verdade, vai amar PRINCIPALMENTE o que está por trás do massaveísmo.
Olha só, um gibi dos anos 90 COM DIÁLOGOS!
Quando Scott e Jean discutem seu relacionamento e o futuro do bebê que a telepata ruiva está esperando, além do impacto que isso teria para os X-Men agora liderados pelo aluno número 1 do Professor Xavier, fica claro que os roteiristas sabem que, apesar do desenho animado se passar nos anos 1990 (“me bipa”, diz um deles em certo momento), nós estamos em 2024. É preciso mais do que apenas uma bela trocação de socos.
É preciso, por exemplo, um diálogo tocante entre Jean Grey e a Tempestade, mostrando o quanto elas são amigas, enquanto duas mulheres em uma escola repleta de machões com a testosterona a mil. Ou mesmo uma sutil relação entre Vampira e Magneto, meramente sugerida mas já suficiente para abrir uma porta obscura dentro do coração do apaixonado Gambit. É nos detalhes que “X-Men ‘97” acaba me ganhando ainda mais. Como no café cheio de referências que Scott serve ao Magneto.
Detalhe fundamental: tá tudo muitíssimo bem transcrito diretamente do universo dos gibis, é preciso dizer. Afinal, OK, a série original já tinha trazido a Fênix Negra e demais clássicos dos X-Men para serem adaptados, mas esta continuação ainda tem um belo cardápio a escolher, do Julgamento de Magneto ao momento em que Ororo perde seus poderes (e descobre que é algo muito maior do que somente uma semideusa que controla os elementos). E sabemos que a obsessão do Senhor Sinistro pela família Summers tá logo ali, rondando a esquina…
Importante reforçar que, tal qual acontecia tanto na série animada noventista quanto AINDA rola nos gibis originais até hoje, os produtores não deixaram de lado também a questão do PRECONCEITO. Opa. Pois é. Isso mesmo.
O ódio dos humanos aos mutantes continua sendo o centro da história – levando inclusive a um discurso EXCEPCIONAL de Magneto (um judeu sobrevivente dos campos de concentração, é bom lembrar) diante de um júri formado por legisladores do governo americano. Um discurso que é X-Men puro, na veia. Um discurso que é o epicentro de tudo que estes personagens sempre foram.
Pois sim, era óbvio que eu ia chegar ao imenso elefante branco no meio da sala.
Ah, sim, temos que falar sobre LACRAÇÃO
Mas antes de qualquer coisa, eu queria falar um pouco sobre um sujeito chamado Chris Claremont.
Por mais que os X-Men tenham sido concebidos por Stan Lee e Jack Kirby lá em 1963, é difícil pensar em autor tão intrinsecamente associado aos personagens quanto Claremont. Além de ter sido responsável pela criação de um monte de personagens da mitologia mutante que hoje são essenciais para as suas histórias, o americano de 68 anos nascido na Inglaterra também é o autor de clássicos como A Saga da Fênix Negra e Dias de Um Futuro Esquecido, hoje icônicos não só dentro do universo X mas também para a história dos quadrinhos como um todo. Foi ele quem transformou Xavier em Martin Luther King e Magneto em Malcolm X. A série animada dos X-Men, inclusive, é baseada na icônica fase escrita por ele e com desenhos do Jim Lee.
Apesar de uma longa passagem quase ininterrupta pelos x-heróis, que durou entre 1975 e 1991, Claremont nunca ficou realmente muito tempo afastado dos personagens, já que invariavelmente a Marvel volta a convidá-lo para escrever nem que seja uma edição especial. Mas, em quaisquer que sejam as suas idas e vindas, ele sempre mostrou que entende o CERNE do que são os gibis dos pupilos do Professor X: “os X-Men são odiados, temidos e desprezados coletivamente pela humanidade por nenhuma outra razão a não ser que eles são mutantes. Então o que temos aqui, intencional ou não, é uma HQ que é sobre o racismo, a intolerância e o preconceito”.
Você deve ter sacado onde eu tô querendo chegar, né?
Numa entrevista concedida ao antigo Newsarama, atual Gamesradar, em 2019, para falar sobre a esperada chegada dos mutantes ao MCU e a Era Krakoa de Jonathan Hickman, Claremont é perguntado sobre quais são as partes do mito dos X-Men que ele enxerga como fundamentais para definir o time para a era moderna?”. E então Claremont responde aquilo que usamos lá em cima: “Infelizmente, como conceito, os X-Men são tristemente mais necessários e relevantes hoje do que nunca”.
Ele lembra, por exemplo, da trama que escreveu com o Magneto para a edição 1 da antologia, X-Men: Black, só sobre os vilões dos títulos mutantes. “Era uma história na qual os Estados Unidos, sob o chamado Ato de Controle de Mutantes, estão reunindo famílias mutantes e aprisionando-as no Novo México ‘por sua própria segurança’. As crianças são colocadas em uma instalação, os pais são colocados em outra, e serão mantidos até que seja determinado se eles são uma ameaça ao país e, se forem, serão tratados de acordo com a política federal”.
Magneto está numa cafeteria falando sobre suas próprias experiências quando era jovem, num campo de concentração, ao lado de algumas pessoas que estão vendo as notícias. E alguns saem dizendo “já estava na hora, precisávamos fazer algo sobre esses mutantes”. Obviamente, o mestre do magnetismo vai para a tal instalação, é reconhecido como um mutante, começa a treta e Magneto, é claro, derrota todo mundo e desmonta o local.
“O ponto é: se um grupo pode ser tratado dessa maneira pelo decreto do governo, o que os impede de perseguir qualquer outro grupo?”, pergunta Claremont. “O lance com os mutantes é que eles sempre representaram os marginalizados e oprimidos. E não importa o quanto lutem, o quanto trabalhem para viver entre os humanos, os humanos sempre recuam com novas leis e novas maneiras de ferir mutantes”.
“O que estou dizendo é que, quando avançamos enquanto sociedade, damos alguns passos à frente, estes passos não são irreversíveis, infelizmente. Então, como abordamos as pessoas que são prejudicadas por isso? Como abordamos nossos concidadãos que são apanhados no meio desta coisa toda?”, questiona ele.
Claremont não acredita que exista uma resposta fácil, mas esta é uma pergunta que precisa ser feita. “E para o bem ou para o mal, dependendo das circunstâncias, o gibi dos X-Men é o lugar nos quadrinhos que sempre traz este questionamento”. Porque SEMPRE foi uma história sobre preconceito, não importando o quão coloridos fossem os uniformes, né?
E tem gente que ainda mete estes loucos de “quadrinhos sem política”…
PS: Se você usa a expressão “lacração” de maneira não-irônica, saiba que te acho um imbecil e gostaria que não voltasse mais a este site. Grato.