Anatomia de Uma Queda: o tombo é maior do que parece
O ganhador da Palma de Ouro em Cannes 2023 parece, de cara, apenas um filme de investigação criminal – mas guarda reflexões muito mais densas em suas muitas camadas.
Por GABRIELA FRANCO
O francês Anatomia de Uma Queda (l’anatomie d’une chute – 2023), dirigido por Justine Triet, não só abocanhou o que é considerado o maior dos prêmios de cinema de arte em 2023 – no caso, a Palma de Ouro, em Cannes – como também foi indicado à premiação mais mainstream da indústria cinematográfica, o Oscar, em cinco categorias: melhor filme, roteiro original, direção, atriz e montagem.
Os holofotes da tal “premiação máxima do cinema” podem acabar chamando (com justiça) a atenção de um público mais pop para a película que é um caso clássico de “parece mas não é”: parece ser um filme sobre um julgamento criminoso, mas revela muito mais do que podemos imaginar.
À primeira vista, o filme conta a história de Sandra (Sandra Huller), seu marido Samuel (Samuel Theis) e o filhinho de ambos, Daniel (Milo Machado Graner). Logo nas primeiras cenas, percebemos que a família mora em um charmoso chalé de madeira nos alpes franceses, meio isolados da civilização.
O menino Daniel sai para passear com seu cão. Enquanto isso, em casa, Sandra (uma escritora de renome) tenta dar uma entrevista para uma aluna interessada em sua vida e obra. Ambas bebem vinho e conversam despretensiosamente quando o papo precisa ser interrompido porque Samuel, em outro cômodo, coloca uma versão instrumental da música “P.I.M.P”, do rapper 50 Cent, a altos decibéis no repeat (e acredite, isso é BEM importante para a trama).
Sandra pede desculpas e se despede da jovem, que vai embora. Corta para Daniel se aproximando de casa, de volta com o cão (que o guia, pois o menino é deficiente visual) quando se depara com o corpo do pai caído na neve, com sangue ao seu redor. Ele grita pela mãe, que não ouve pois a música AINDA está tocando há longuíssimos minutos, em looping e em volume ensurdecedor, o que causa um desconforto quase extra-sensorial na audiência.
Temos aí a trama principal.
Um choque para todos, dias de luto e revolta se seguem. Porém, durante a investigação da polícia, é notada uma lesão na cabeça de Samuel que os médicos concluem que possa ter sido causada por um golpe violento, anterior à queda. É aí que Sandra passa de viúva e mãe de uma criança em luto a principal suspeita de assassinato do marido.
Queimem a bruxa
A partir de então, o filme muda de cenário e toda a história migra para um tribunal onde um velho amigo de Sandra atua como seu advogado e uma corte se prepara para dissecar a vida íntima de Sandra e Samuel. Um embate se instala: de um lado, o promotor e grande parte da opinião pública alegando que a mulher é uma assassina fria e calculista; e do outro, o advogado de defesa tentando provar sua inocência, alegando que Samuel suicidou-se.
Mas “embate” é uma palavra suave.
O que se segue durante seu julgamento é uma verdadeira carnificina em tempos de internet. Temos praticamente uma bruxa sendo queimada na estaca a olhos vistos, enquanto toda a sociedade grita ao seu redor.
Temos todos os seus passos, gestos, seu modo de vida, seu desempenho como mãe, profissional, esposa, amiga e cidadã julgados severamente. Temos todo o machismo estrutural da sociedade escancarado ali de sua forma mais cruel, através das conclusões do promotor e de como a mídia trata o caso.
Mas, engana-se quem pensa que “Anatomia de Uma Queda” é um filme “lacração” ou “panfletário” como dizem os críticos por aí – ele até PODERIA ser, se não fosse a condução MAGISTRAL de Justine Triet.
A diretora, roteirista e editora francesa é célebre por retratar de modo franco nossa humanidade e incertezas nas telas. Foi assim, por exemplo, com “Sybil”, de 2019, entre outros filmes de menor projeção, sempre tendo mulheres como protagonistas. Neste, Triet, além de trabalhar muito bem os diálogos, os cortes e enquadramento, dá à música e à sonoplastia um papel muito especial na condução da história, o que faz com que o espectador se envolva em um plano além do drama latente da narrativa.
Dubiedades em um mundo de certezas
Por fim, podemos dizer que outro grande pilar que sustenta “Anatomia de Uma Queda” seja irônica e justamente o escancaramento de ambiguidades, incertezas, paradoxos que fazem parte de todo ser humano.
Não apenas narrativamente, mas também em termos cinematográficos – com habilidade, a cineasta brinca com as nossas expectativas, enquanto público. Estamos acostumados a dramas ambientados em tribunais, tanto nas telonas quanto nas telinhas. E muitas vezes, ela direciona a trama para um caminho que o espectador logo imagina: “ah, certeza que agora vai ter uma daquelas viradas surpreendentes”. E a surpresa vem JUSTAMENTE de como as coisas não acontecem conforme o roteiro hollywoodiano básico alerta.
É um daqueles filmes que não te dá explicações e sim te enche de perguntas, não só sobre o que está na tela, mas sobre a vida, sobre nossas escolhas, sobre nossa sombra e paixões que nos movem.
O relato vai nos conduzindo por erros e acertos que fazem parte de nossa trajetória mas que, agora, em tempos de mídias sociais, são editados, escondidos e nunca assumidos.
Não podemos deixar de mencionar que, assim como todo produto cultural (por mais que alguns não queiram admitir), o filme também tem grande carga política e social. Além do forte teor feminista, é igualmente uma crítica veemente ao sistema judiciário francês.
Triet é militante de esquerda, bem envolvida no coletivo pela igualdade de gênero Collectif 50/50 – e, em seu discurso da vitória em Cannes, declarou apoio ao movimento de protesto pela reforma da previdência na França e se opôs à repressão do presidente Emmanuel Macron.
Também acusou o governo neoliberal de “promover apoio ao entretenimento mainstream e de enfraquecer a diversidade cultural da França”. Ao final de sua fala, também dedicou seu prêmio àqueles que enfrentam desafios na indústria cinematográfica, pedindo maiores oportunidades e apoio para talentos em ascensão, comentário que foi diretamente ligado aos debates que ocorreram na França em outubro de 2022 no Appel aux Etats Generaux (Convocação para Assembleias Gerais), nos quais membros da indústria cinematográfica culparam o cinema autoral pela diminuição das bilheterias.
Do nosso lado, torcemos por ela e por seu cinema.