As mulheres vão salvar o mundo: a Jornada da Heroína
É claro que você talvez conheça a Jornada do Herói de Joseph Campbell. Mas digamos que, quando uma trama é protagonizada por uma mulher, o olhar PRECISA ser diferente
Por GABRIELA FRANCO
O surgimento da mulher como heroína nas histórias em quadrinhos, lá pelos idos dos anos 1930, foi um evento MUITO, muito importante, pois foi uma quebra de padrão de comportamento altamente significativa em uma sociedade massivamente patriarcal e machista, que ressoa até nossos tempos e, infelizmente, a quebra ainda se faz necessária nos dias de hoje.
Foi justamente graças a essa quebra de paradigmas que temos uma gama rica e diversa de heroínas nas HQs e cultura pop hoje em dia.
Para explicar a importância deste acontecimento para toda nossa sociedade, que em nossos dias é ALTAMENTE influenciada pela cultura pop e de entretenimento, vamos ter que analisar o Monomito, ou o Mito do Herói.
Você já deve ter ouvido falar dele. Foi NELE que quase todos os heróis que conhecemos e curtimos foram baseados, desde os mitos da Grécia antiga até os super-heróis com os quais temos contato nos dias de hoje.
A teoria foi desenvolvida por diversos estudiosos através da análise de muitas fontes, mas tornou-se popular por meio da obra do antropólogo Joseph Campbell em seu livro “O Herói de Mil Faces”, que, em resumo da sua famosa Jornada do Herói, afirma que mitos clássicos de muitas culturas, diferentes épocas, sociedades e contextos, seguem mais ou menos uma mesma estrutura narrativa, um mesmo padrão básico.
Algo que é mais fácil de entender através do esquema abaixo:
Pode reparar, todo herói sobre o qual você já leu/viu/ouviu passou por isso. De Jesus Cristo a Buda, passando por Maomé, Luke Skywalker, Harry Potter, Batman, Superman, o ratinho Remy de Ratatouille. TODOS passaram, em detalhes:
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Mundo Comum – O mundo normal do herói antes da história começar.
O Chamado da Aventura – Um problema se apresenta ao herói.
Recusa do Chamado – O herói recusa ou demora a aceitar o desafio ou aventura, geralmente porque tem medo.
Encontro com o mentor – O herói encontra um mentor que o faz aceitar o chamado e o informa e treina para sua aventura.
Cruzamento do Limiar – O herói abandona o mundo comum para entrar no mundo especial ou mágico.
Testes de aliados e inimigos ou “A Barriga da Baleia” – O herói enfrenta testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, de forma que aprende as regras do mundo especial.
Aproximação do objetivo – O herói tem êxitos durante as provações.
Provação máxima – A maior crise da aventura, a batalha de vida ou morte.
Recompensa – O herói enfrentou a morte, se sobrepõe ao seu medo e agora ganha uma recompensa (o elixir).
O Caminho de Volta – O herói deve voltar para o mundo comum.
Ressurreição do Herói – Outro teste no qual o herói enfrenta a morte, e deve usar tudo que foi aprendido.
Regresso com o Elixir – O herói volta para casa com o “elixir” (o que aprendeu nessa jornada toda) e o usa para transformar o mundo ao seu redor.
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Para Campbell, tudo isso tem a ver com o conceito de arquétipos, a ideia do psicoterapeuta suíço Carl Jung de que os seres humanos têm um conjunto de ideias e símbolos mentais em comum, associados a uma série de situações humanas recorrentes. Ou seja, em um certo período da vida, sob certas condições e em certos ciclos históricos, todos acabam agindo da mesma maneira. Mas será que é isso mesmo?
A Jornada da Heroína
Até agora essa ideia, organizada por um HOMEM, se aplicava a todos os gêneros, para variar. Mas uma mulher, chamada Maureen Murdock, ao estudar as obras de Campbell, chegou à conclusão de que a estrutura sugerida pelo antropólogo podia ser útil para algumas narrativas – mas falhava ao retratar outros tipos de histórias, com buscas mais internas, densas e psicológicas. Então, em 1990, lançou o livro “A Jornada da Heroína”.
Para a autora, a teoria de Campbell também não levava em conta dilemas e conflitos femininos específicos e desafios que só as mulheres enfrentam em uma sociedade dominada por HOMENS. Assim sendo, ela criou uma versão paralela à jornada do herói.
Vejam bem: Maureen não quis invalidar seu objeto de estudo, ou seja, a teoria de Campbell. Muitos mitos cujas heroínas são mulheres se encaixam na estrutura dele. Ela foi concebida, afinal, para refletir aspectos da natureza humana, independente de gênero.
Mas, segundo a estudiosa, ele não se encaixa nos desafios da mulher de hoje. Para Maureen, a jornada do herói é uma busca por si mesmo e é baseada em mitologia e contos de fadas do mundo todo. Esse propósito, no entanto, não contempla a jornada arquetípica da mulher. Para as mulheres contemporâneas, isso inclui a cura de uma fera do feminino que existe dentro dela e na sociedade. Ou seja: a mulher não pode buscar a si mesma, como o herói. Isso se ela não sabe quem é e se a sociedade a exige e escraviza, impedindo-a de que ela descubra e seja quem realmente é.
A Jornada da Heroína é um conflito mais íntimo e pessoal que a Jornada do Herói. Enquanto o original se resume a uma pessoa comum sendo convidada a uma aventura, a heroína, diferentemente do herói, vive em si a dualidade entre o que se espera de alguém como ela e o que ela é realmente. É essa dualidade que Maureen Murdock chama de masculino-feminino.
Para Maureen, a Jornada da Heroína ficou assim:
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As fases desenvolvidas por Murdock no mito da heroína descrevem a jornada de uma mulher que começa tentando se libertar dos arquétipos típicos femininos impostos a ela, na intenção de buscar aprovação e reconhecimento num contexto/sociedade criada por homens, que a obriga a agir como homem (Troca/Deslocamento do Masculino pelo Feminino).
A heroína passa por um período de conflito (Caminho/Estrada das Provações) e de perda de identidade, pensa que conquistou seus direitos, mas se questiona se os conseguiu de verdade ou simplesmente por ter assumido um papel masculino (Ilusão do Sucesso).
Isso culmina na morte simbólica de sua falsa identidade criada para agradar a sociedade (Descida/queda) e, por fim, ela renasce (Encontro com a deusa), buscando pela reconexão com os poderes do que é realmente feminino (Reconciliação com o feminino) e o equilíbrio com os valores femininos e masculinos, porém sem conflitos de identidade, sabendo quem ela é de verdade: uma mulher, capaz de cumprir a jornada sendo ela mesma e protagonizando sua própria história.
E assim, agora, tendo essa ideia de heroína em mente (uma mulher que não precisa de um homem para cumprir seus objetivos de vida), vamos entender um pouco como as mulheres surgiram nas histórias em quadrinhos.
Um longo caminho
Vamos nos lembrar que, nos anos 1930 e 1940, com o surgimento dos heróis, logo abriu-se caminho para a participação da mulher… mas não como heroína e sim, na maioria das vezes, como par romântico e coadjuvante, a donzela que precisava ser salva e nunca a protagonista da história.
A participação da mulher era relegada ao famoso “eye candy”, o papel de servir como colírio para os olhos em histórias de terror, violência, ou ficção científica cujos temas eram pesados. Eram sempre esteticamente belas, doces, sensuais, porém com uma aura de pureza, o alívio em meio à feiura e o caos. Vide as famosas Dale Arden, parceira de Flash Gordon; Diane Palmer, de Fantasma; e Wilma Deering, de Buck Rogers.
Isso sem falarem Miriam Lane (mais conhecida por nós hoje como Lois Lane), interesse romântico de Superman, que não tinha nada da intrépida repórter que conhecemos hoje.
Havia também tirinhas com personagens femininas, mas que tinham o mesmo papel das pinups do cinema hollywoodiano: levantar a moral sexual dos soldados que combatiam na Segunda Guerra. Como a famosa Betty Boop de Max Fleisher de 1931 e o caso de Burma e Miss Lace, criadas pelo americano Milton Canniff especialmente para as tirinhas chamadas MALE CALL (Chamado Masculino) e que eram distribuídas para os soldados em praças de guerra. A publicação durou de janeiro de 1943 a maio de 1946. Essa foi a primeira compilação de tiras em uma edição, o que podemos chamar de “revista em quadrinhos” só com mulheres. Pena que o objetivo era: agradar aos homens.
Mas antes das heroínas aparecerem e mudarem nossas vidas para sempre, editoras como a Archie Comics perceberam que mulheres também se interessavam por quadrinhos – até porque, com os homens em campo de batalha, na Guerra, elas formavam uma grande massa trabalhadora e consumidora que passou a reger o mercado. Assim sendo, lançaram as primeiras revistas em quadrinhos estreladas por mulheres, que se dividiam em quatro tipos:
Romances: tramas em torno de namoros, vestidos para festas, problemas de “meninas casadoras” e intrigas entre colegas, bem parecidas com as telenovelas que conhecemos hoje. Exemplo: “True Bride to Be Romances” (algo como: Romances de uma noivinha verdadeira).
Mulheres no mercado de trabalho: o cenário era MUITO novo na época e rendia séries de roteiros do tipo “oh, como será que vou redigir esta carta para meu chefe bonitão? É muita pressão para uma garota!” e coisas do tipo. Os melhores exemplos dessas revistas são “Millie, a modelo”, “Nellie, a enfermeira” e “Tessie, a datilógrafa” (!!).
Dramas adolescentes: aqui as histórias mostravam meninas mais maluquinhas e o traço era bem cartunesco, dando a impressão de que “meninas que fazem o que querem e agem desse jeito não podem ser reais” ou similar. Algumas eram bem descoladas, como “Betty and Veronica” ou “Josie e as Gatinhas” (que depois virou desenho nos anos 1970) mas, no final, eram apenas garotas que competiam entre si na escola, geralmente por conta de um homem.
Heroínas de romances pulp/terror/policial/aventura: nesses gêneros, as histórias já eram mais dirigidas ao público adulto masculino, mas as mulheres também gostavam e liam, principalmente as mais velhas, aquelas em torno dos 30 anos. Algumas dessas revistas traziam lampejos de empoderamento e feminismo, e alguns de seus roteiros foram criados por duplas famosas, responsáveis por histórias de heróis que já iam de vento em popa, como Joe Simon e Jack Kirby, criadores do Capitão América, por exemplo, que continuavam testando possibilidades em tiras de jornais – e quando estas faziam sucesso, viravam revistas.
As mulheres nessas histórias já haviam perdido aquela aura de pureza, castidade e docilidade do começo dos anos 1930. Tinham um apelo sexual bem mais explícito e eram bem mais elaboradas que Tessie, a datilógrafa. Eram complexas e paradoxais. Podiam até começar dando a impressão de serem boas meninas, mas podiam se tornar bad girls criminosas e assassinas frias. Foi nessa época (anos 1940 e 1950) que surgiu o termo “femme fatale”, que justamente caracteriza uma mulher encantadora, mas mortal, bem típica dos romances pulp/noir.
Sheena, a rainha das selvas, criada por Joshua B. Power, foi a PRIMEIRA heroína mulher a sair das tirinhas e ganhar uma revista solo, pela editora Fiction House. Ela tomou as bancas de assalto em 1937, três anos antes da Mulher-Maravilha, tanto na Inglaterra quanto nos EUA. Era bem sexualizada e foi também a precursora da objetificação da mulher para aumentar a venda das revistas: andava em trajes sumários, uma pequena pele de leopardo sobre o corpo escultural, e era frequentemente retratada em poses sensuais.
Foi baseada na personagem Rima, A Menina das Selvas, personagem do livro “Mansões Verdes” de William Henry Hudson, e tem uma história bem parecida com Tarzan e Mogli: perde os pais em um naufrágio e é criada em uma selva. Sheena, porém, pode se comunicar com animais e mais tarde ganhou poderes de se transformar em qualquer animal com o qual fizesse contato visual. É hábil com punhais, lanças, zarabatanas e até ganhou um seriado nos primórdios da TV em 1955, nos EUA.
Não demorou para que agentes secretas e combatentes do crime fantasiadas surgissem. Foi o caso de Invisible Scarlet O’Neil (A Invisível Scarlet O’Neil), criada por Russel Stamm, que havia sido assistente de Chester Gould, criador do então hypado herói Dick Tracy. Scarlet acabou ganhando tirinha exclusiva no jornal Chicago Tribune, em 1940, e foi uma das primeiras mulheres a ganhar superpoderes: ela podia ficar invisível e, com isso, acabava ajudando a polícia a capturar criminosos.
Ainda assim, essas agentes secretas mascaradas ainda eram, em sua grande maioria, criadas por homens. A primeira personagem feminina de tiras que pode ser catalogada no mercado de comics (heróis) americanos como tendo sido criada por uma mulher foi Miss Fury, criada em 1941 por Tarpé Mills. Miss Fury era uma socialite que usava sua cultura, contatos e conhecimentos para combater o crime, geralmente em histórias de espionagem, mas lutava e era bem dura na queda, algo bem legal para a época. Muito antes de James Bond.
A primeira heroína a ganhar poderes fantásticos e a não apelar para a beleza para conquistar fãs foi Fantomah, criada por Fletcher Hanks em 1940 para a editora Fiction House, especializada em terror e ficção científica. Era uma mulher egípcia que invocava poderes ancestrais e se transformava em um ser com cabeça de caveira e combatia o mal.
Mas parece que o ano de 1940 foi mágico, porque foi (perto) dele que surgiu o grande ícone de justiça, força e poder da mulher, que até hoje é símbolo da luta feminina. Nomeada embaixadora da ONU para a promoção dos direitos das mulheres. Mas as histórias que cercaram a criação da Mulher-Maravilha, a gente deixa para um outro texto, porque são muitas e interessantíssimas. 😉
Em suma, a Jornada da Heroína é diferente daquela do herói porque a mulher passa por questionamentos internos bem diferentes, todos eles resultantes da cultura e do meio em que ela vive. Por conta disso, o surgimento, a PERMANÊNCIA e PROTAGONISMO das mulheres nas HQs é tão importante.