Novo disco do Metallica é poderosa sessão de terapia pro James (e pra nós)
Mais do que qualquer integrante da banda, o frontman do Metallica brilha e não tem medo de se expor em 72 Seasons, seu 11º disco de estúdio, no qual abre o peito e berra a plenos pulmões
Por THIAGO CARDIM
Olha só, vamos ser honestos aqui. Você pode gostar ou não do Metallica. Tá tudo bem. Mas é impossível deixar de dizer que eles são não apenas a maior banda de heavy metal do planeta como, indo mais além, uma das maiores e mais importantes bandas de ROCK, assim mesmo, de maneira ampla, do mundo. Portanto, quando a revista Classic Rock afirma categoricamente que o lançamento de um disco novo do Metallica é o equivalente ao lançamento de um novo filme ou série de Star Wars, eles estão cobertos de razão. É, de fato, um acontecimento da cultura pop.
Perceba aqui: eu disse “maior” banda. Não “melhor”. O quarteto ainda é gigante, um colosso, com números de vendas de discos ainda bastante relevantes, com uma quantidade monstruosa de plays nas plataformas de streamings, com turnês lotadas em lugares gigantescos… E, mesmo assim, cercados de cifras e com a grana dos royalties pingando todo mês, eles não se deitam em berço esplêndido e continuam lançando discos novos.
Claro, eu sei, a questão de lançar discos novos, para bandas clássicas, nem sempre significa uma espécie de desafio criativo. Por vezes, o grupo faz apenas uma nova coleção de músicas que soam exatamente como tudo que eles já fizeram na vida e tá tudo bem. No caso do Metallica, bem ou mal, os discos pós Load/Reload – no caso, St. Anger (2003), Death Magnetic (2008) e Hardwired… to Self-Destruct (2016) – sabem conversar de maneira bem OK com o passado, mas até que arriscam uma ou outra modernidade, com resultados variados (no caso de St.Anger, uma porcaria mesmo).
Mas em se falando do recém-lançado 72 Seasons, o que a banda mais faz é arriscar. Mas nem estou falando de correr riscos em termos de som, fazendo um experimento do tipo Lulu – e sim de se arriscar ao dar as caras nas letras. Se expor. Construir faixas sobre suas vidas, sobre sua história, sobre seu passado, sem receio de escancarar feridas. Especificamente aquelas de um sujeito chamado James Hetfield.
A terapia sonora de James
Do alto de seus 59 anos, James Alan Hetfield está longe de ser uma pessoa fácil de entender. De infância humilde, em um ambiente violento, foi criado no coração de uma família bem religiosa, que não acreditava na medicina – o que lhe tirou a mãe, vítima de câncer, aos 16 anos. Isso inclusive fez com que ele se manifestasse “cético” sobre tomar a vacina contra a covid-19 – tornando-o alvo (com razão) da opinião pública tanto quanto naquela ocasião em que se tornou narrador de um documentário sobre caçadas.
Vindo de uma vizinhança conservadora e tradicionalista, James ainda carrega muito isso dentro de si, por mais que há mais de 40 anos divida uma banda com dois homens notada e abertamente mais progressistas (Lars e Kirk, no caso) e tenha envolvimento em uma série de importantes projetos sociais.
Uma imensa contradição ambulante, para dizer o mínimo.
Enfrentando uma série de problemas com drogas e alcoolismo, voltou recentemente de mais uma temporada de internação na reabilitação. Pouco depois, em turnê pelo Brasil, mostrou um lado bastante frágil durante um show em Belo Horizonte. “Preciso dizer que eu não estava me sentindo muito bem antes de vir aqui. Eu me sentia um pouco inseguro, como um cara velho, que não consegue mais tocar – todas essas besteiras que falo a mim mesmo, na minha cabeça”, afirmou. “Então eu conversei com esses caras, e eles me ajudaram – simples assim. Eles me deram um abraço e disseram: ‘ei, se você está sofrendo no palco, te daremos apoio’. Isso significa o mundo para mim”. Para completar, ainda se divorciou da esposa, com quem era casado há 25 anos.
72 Seasons é o reflexo de tudo isso. As 72 estações que representam os primeiros 18 anos da vida de uma pessoa, quando se formam os seus verdadeiros “eus”. Um disco que fala do James de hoje e do James do passado. Com letras que falam sobre luz e sombras. Aurora e trevas. Claridade e escuridão.
Ouvindo (e sentindo) 72 Seasons
Se você é da turma que ficou empolgada com o sabor old school do primeiro single divulgado, Lux AEterna, talvez vá ficar decepcionado. No conjunto geral, apesar de ríspido e pesado, sem baladas, 72 Seasons não é um disco que, em termos sonoros, conversa com o Metallica mais thrash raiz do Kill ‘Em All. Como o Spock, grande amigo que mora em terras suíças, bem definiu, é “Black Sabbath com Motörhead com um toque de Ramones”. É isso. Mas acho até que é bem mais.
Tal qual acontece com a trilogia de canções The Unforgiven, boa parte das letras deste novo álbum versam sobre o impacto que os traumas da juventude podem ter na vida adulta, tudo tratado de maneira absolutamente autobiográfica. Apesar de não ser um disco “conceitual”, a questão da saúde mental permeia cada faixa – e a força do amarelo na capa e nos materiais artísticos de divulgação, obviamente, não é por acaso.
Se a bolacha abre com a faixa-título, justamente uma discussão sobre o vazio e a confusão que fica na cabeça de quem chega à maioridade e o quanto a gente fica perdido e sem saber o que vai acontecer dali pra frente, a dobradinha Shadows Follow e Sleepwalk My Life Away (lindamente carregada pelo baixo de Robert Trujillo, aliás) versa, cada uma a seu modo, sobre as sombras que te perseguem sem parar. Ambas, ao lado de Room of Mirrors, com sua guitarreira de inspiração punk e falando sobre como não apenas você mas o mundo te enxerga em sua luta contra a depressão (“Would you criticize, scrutinize, stigmatize my pain? / Would you summarize, patronize, classify insane?”), talvez estejam entre os momentos mais dolorosos da narrativa.
Mas se If Darkness Had a Son, de alguma forma, seja sobre a eterna tentação de voltar aos antigos vícios, que fica circundando para sempre a vida de quem é adicto, por outro lado Too Far Gone?, com sua melodia cavalgada que deixaria Lemmy orgulhoso, tem um recado muito direto: nunca é tarde para encarar os seus demônios. E se a quase setentista Crown of Barbed Wire fala sobre os bastidores amargos da fama, sobre o rei de um império em ruínas e sua coroa de espinhos, sobre o vício na fama, Lux AEterna traz literalmente luz ao assunto, revelando o bem que o mero ato de subir ao palco faz a um músico, a adrenalina nos shows e o contato com os fãs.
72 Seasons, no todo, enquanto obra, tem este lado de ser uma conversa sobre exorcizar demônios, sobre tentar se livrar as amarras do passado – mas, no fundo, é um disco que pretende trazer uma mensagem positiva. Apesar do sofrimento, sim, ainda há esperança. A luz está lá, no fim do túnel, ainda que muitas vezes seja difícil de enxergar. Um bom resumo, definitivamente, é Screaming Suicide, uma bela exaltação sobre a luta diária que é, pra quem enfrenta questões ligadas à depressão, manter os instintos negativos sob controle. Um dia de cada vez.
A longa faixa final, Inamorata, escancara esta dualidade, com um refrão sobre o quanto a miséria (aqui, como sinônimo de “tristeza” ou “sofrimento”) precisa do protagonista… mas ele está tão acostumado com ela que acaba precisando ainda mais. O quanto ela o ama, mas ele ama este sentimento ainda mais. Só que na sequência, ele faz questão de dizer:
“Misery, she kills me
Oh, but I end this war
Misery, she fills me
Oh, no, but she’s not what I’m living for”
Porque, como diz a letra de Chasing Light, de longe a minha favorita do disco, “without darkness, there’s no light”. Sem escuridão, não existe luz. E precisamos aprender a lidar com ela, sem deixar que ela nos domine.
72 Seasons é uma daquelas obras que, no fim, provam que a música não é APENAS sobre a música.
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