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O misterioso labirinto da obra da Laerte

Será que, de fato, a gente PRECISA entender as obras da Laerte? O quanto existe, de fato, esta necessidade de tudo ser tão rigorosamente explícito na compreensão da arte? Acabou o espaço pro subjetivo?

Por THIAGO CARDIM


Nas últimas semanas, as redes sociais – em especial, o Twitter – foram tomadas por uma espécie de “alucinação coletiva” envolvendo o mundo dos gibis. Aliás, para ser mais coerente… as redes sociais DA LAERTE foram tomadas, isso sim. Do nada, toda tirinha que ela posta na rede do menino Elão Moska acaba inundada por milhares (sem exagero) de replies com imagens dizendo “Laerte, não entendi”, com potenciais variações do tipo “Laerte, entendi parcialmente” e “Laerte, essa sim eu entendi”. E as tais imagens, em sua grande maioria, estreladas por um estranho lobisomem por vezes arrancando a camisa e uivando de dor, por vezes andando de moto, por vezes debruçado sobre seus livros com pose de intelectual.

Tudo isso porque, bom, quem acompanha o trabalho da Laerte nos últimos anos já sacou o quanto ela está focada em tiras mais introspectivas e reflexivas, cuja intenção é, antes de tudo, a provocação e não as gags simples e de solução fácil (sem perder, obviamente, o aspecto mais critico, ainda que nas entrelinhas). Até os personagens recorrentes sumiram, ficando em sua maior parte seres quase míticos e oníricos que são o espelho do ridículo e complexo que é a nossa realidade.

A situação meio que dividiu a comunidade quadrinística. Enquanto Thiago Ferreira, da Comix Zone, defende que é uma bobagem mas que acaba, de qualquer forma, resultando em engajamento que leva a obra da autora para públicos que sequer a conheciam, a Helô D’Angelo buscou um quadrinho mais antigo que ela mesma fez, sobre como pode ser difícil interpretar uma obra de arte menos óbvia. E esta ótima coluna em vídeo, parceria da HQ Sem Roteiro e do Fora do Plástico, faz uma espécie de “elogio à incompreensão”, além de trazer um trecho da entrevista da própria Laerte, pra Ana Paola Amorim, na qual ela diz que se incomoda com as menções porque elas não abrem espaço pra diálogo.

No MEU caso, busquei um texto que escrevi pro JUDÃO.com.br, ainda em 2014, quando Laerte ainda se entendia como homem crossdresser e não como mulher trans, na época da exposição Ocupação Laerte, no Itaú Cultural, em São Paulo. Acho que, devidamente adaptado (com as mudanças de pronomes, por exemplo), ele funciona não apenas para mostrar minha opinião, mas para dar um pouco mais de contexto.

Sobre a Laerte

Dos chamados “Los Tres Amigos”, tríade máxima de quadrinistas brasileiros que fez história na lendária revista Chiclete com Banana, meu preferido sempre foi o Angeli, com seu sarcasmo cinza e casmurrice assumida. Personagens como o Bob Cuspe e Os Skrotinhos foram parte importante da minha formação como leitor de gibis, um tipo de leitor pré-adolescente e cheio de espinhas que aprendia que o mundo das HQs era muito mais do que apenas super-heróis, patos falantes e meninas baixinhas, gorduchas e dentuças.

Sinceramente, nunca fui lá muito com a lata do trabalho do finado Glauco, cujo Geraldão sempre me soou tosco não apenas no traço, mas no resultado final das piadas: era tudo menos sutileza e mais grosseria. Mas preciso confessar que, nos últimos anos, a paulistana Laerte Coutinho subiu tanto no meu conceito que, arrisco dizer, tomou o posto do Angeli. Ela refinou o seu estilo narrativo a um ponto que passou a flertar com o non-sense e com o poético, com o onírico, mergulhando de cabeça nas referências literárias e deixando parte de seus fãs confusa e outra parte maravilhada. Eu me incluo nesta segunda metade.

Dá muito prazer ver o que ela vinha publicando em seu espaço diário em jornais como a Folha de S.Paulo. Costumava ser uma das partes mais mágicas e singelas do meu dia. Da crítica incendiária e esquerdista da época dos Piratas do Tietê, ela foi tornando-se uma observadora delicada do cotidiano. No meu ponto de vista, tudo começou com o Homem-Catraca, um de seus personagens mais fantásticos – mais até do que o Overman, por mais que meus instintos marvetes relutem em admitir – e com uma abordagem inicial mais provocativa. A mudança já se fazia presente em sua obra, cada vez menos óbvia.

Na comparação com a Santíssima Trindade dos quadrinhos gringos, Glauco sempre foi uma espécie de Frank Miller: pouco papo e muita ação, do tipo “vou esfregar isso na sua cara”, splash page. Para o Angeli, ficou o papel de Alan Moore – mal-humorado, por vezes meio ignorante e genial. No caso da Laerte, a comparação com o Neil Gaiman de Sandman não poderia ser mais apropriada.

Tira da Laerte
Tira da Laerte

Um pouco de história

Depois de concluir, em 1968, o Curso Livre de Desenho da Fundação Armando Álvares Penteado, Laerte chegou a estudar comunicação (jornalismo) e música na ECA, dentro da USP, mas nunca chegou a se formar. Mas foi aí, no ambiente universitário, que se iniciou sua trajetória nos quadrinhos – junto com o camarada Luiz Gê, fundou, nos anos 1970, uma revista universitária chamada Balão, que ajudou a revelar uma série de talentos naquela época. Profissionalmente, começaria a trabalhar com ilustrações em 1970, ao desenhar o personagem Leão para a revista Sibila – o que a levaria a trabalhos ocasionais para títulos como Banas e Placar.

Em 1974, começou uma virada em sua carreira. Foi quando foi publicado seu primeiro trabalho para um jornal, uma charge na finada Gazeta Mercantil – abrindo um relacionamento com uma mídia que se estenderia até os dias de hoje. Neste mesmo ano, ganhou seu primeiro prêmio, na edição inaugural do Salão Internacional de Humor de Piracicaba. E foi também em 74 que sua inspiração marxista começou a falar mais alto, levando-a a se envolver com movimentos sociais/sindicalistas/políticos. Fez material de campanha para o MDB; desenhou um personagem para a publicação oficial do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. E chegaria até a fundar, quatro anos depois, uma agência chamada Oboré, em parceria com jornalista Sérgio Gomes, que era especializada em produzir material especificamente para sindicatos.

O prestígio que a artista tem hoje começou a ser moldado na década de 1980, quando começou a colaborar nas revistas da chamada Circo Editorial. Foi neste período que começou a trabalhar com as tiras e as histórias mais longas dos Piratas do Tietê – que apareceriam inicialmente em Chiclete com Banana (editada pelo Angeli) e Geraldão (editada pelo Glauco), além da publicação-título da editora, a Circo. Mais tarde, ela lançaria a Piratas do Tietê, sua própria revista – em cujas páginas começariam a surgir personagens como os Gatos e Fagundes, O Puxa-Saco. Mesmo com o fim das revistas, Laerte se manteria em plena atividade. No seio de suas colaborações para O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, surgiriam a paródia de super-heróis Overman, a doce artista circense Suriá (com foco no público infantil) e a sua brilhante representação de Deus, que não é assim tão onipotente…

Laerte ainda faria, com igual talento, uma passagem importante pela televisão. Como roteirista, colaborou com o marcante programa humorístico TV Pirata, até hoje uma referência de comédia anárquica, experimental e sem amarras. Também faria parte da equipe de roteiristas do programa infantil TV Colosso, talvez um dos últimos programas infantis na televisão aberta, fora da tela da TV Cultura, que sabia fazer humor para crianças respeitando a inteligência dos pequenos.

Um novo ciclo

A partir da década de 2000, Laerte passou a questionar a si mesma como artista – e, por que não dizer, como ser humano. Aos poucos, começou a abandonar o humor focado em personagens e começou a se dedicar a outros tipos de narrativas, explorando metalinguagem, non-sense, um quê de absurdo. Começou a misturar traços, a questionar a dinâmica dos três quadrinhos das tiras de jornal, a usar simbologias diferentes – às vezes falando menos e sugerindo mais.

Em 2004, Laerte aproveitou a tira de Hugo Baracchini, o personagem que ele usava para fazer piada do homem contemporâneo, brincando com a já nascente dependência tecnológica, para criar situações sobre gênero.

“Joguei a tira do Hugo na qual ele se vestia de mulher gratuitamente, não estava fugindo da máfia nem nada. Ele simplesmente se veste de mulher e sai à rua”, conta Laerte, em um papo aberto com a Revista Trip. Ela revela que a tira chamou a atenção de uma crossdresser, de uma travesti, que lhe mandou um e-mail e disse “será que você não tem isso também?”. Funcionou como uma porta aberta, que colocou uma pulga atrás da orelha da artista. “Foi em 2004 que eu percebi que essa ideia estava desvinculada de qualquer fantasia, era uma vontade mesmo. Vontade de frequentar a área cultural do outro gênero, o reservado das mulheres”. Demoraria, no entanto, mais cinco anos até que Laerte resolvesse adotar o estilo de vestimenta pelo qual se tornou conhecida – e também para que Hugo se transformasse na Muriel das tiras atuais.

Mas o principal ponto de mudança aconteceria no ano seguinte, em 2005. Foi quando, num acidente de carro, Laerte perdeu Diogo, 22 anos, um de seus três filhos. Laerte se transformou de vez. A dor de uma tragédia tão repentina a fez passar por uma das mais significativas reviravoltas dos quadrinhos nacionais – quiçá até do mundo. Começou pelas tiras da Ilustrada, o caderno de cultura do jornal Folha de S.Paulo. Os personagens caricatos foram sumindo, dando lugar a visões mais filosóficas e poéticas sobre o mundo. Um tipo de humor que, por vezes, pode nem parecer necessariamente humor.


Tira da Laerte
Tira da Laerte

A atual produção da Laerte

Na mesma entrevista para a Trip, Laerte admite que a morte de seu filho fez com que ela enxergasse diversos véus caindo ao seu redor. “O modo de trabalhar fazendo aquele humor mecanicamente conhecido e clichê de piada, o desenho de humor convencional com olhões, narigões, isso tudo me pareceu sem sustentabilidade depois que o ciclo se cumpriu. Fiz aquilo por trinta e tantos anos. Precisava ir para outro lugar”. A autora conta que agora está buscando “uma linguagem”, traçando um paralelo com o que a poesia busca, no sentido de transcender a representação tradicional, a função tradicional que as palavras e a gramática tem. “Nas tiras eu tenho sentido presenças e possibilidades parecidas com essas. Faço as tiras e vejo que às vezes elas foram para lugares inesperados”. Ela está provocativa, intensa e cheia de significados ocultos em uma simplicidade que chega a chocar.

“Neste labirinto que é a sua obra, existe uma figura que ronda, tal como no mito do Minotauro”, diz o texto escrito por Rafael Coutinho, seu filho, para um dos pedaços do labirinto na Ocupação Laerte. “Inquietação ou angústia, um superego solto, uma entidade sem sexo, que ataca, acuada. (…) Pode ser a própria Laerte, criatura entre nós”. A referência, que tem sido usada frequentemente para se referir ao trabalho recente da autora, fala sobre “as várias Laertes, as diferentes carreiras dentro da carreira de quadrinista”. E tem uma origem muito clara: a história chamada Minotauro, publicada na revista Geraldão entre 1987 e 1989, na qual o herói se torna o próprio Minotauro depois de matar a criatura mitológica.

Alguns descrevem esta fase de Laerte como estranha. Eu a descrevo como especial e única.

A Laerte de hoje em dia se diz em crise. Pode parecer egoísta, mas nós agradecemos.