Pearl: quando eu sou má, sou melhor ainda
Considerado desde já um dos melhores filmes de 2023, Pearl chega aos cinemas consagrando Mia Goth como musa do terror da nova geração
Por GABRIELA FRANCO
Pearl, precursor da trilogia de Ti West composta por X: A Marca da Morte e Maxxine (ainda em produção) chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, dia 9 de fevereiro, e merece muito ser assistido nas telonas.
Por conta do hype de X: A Marca da Morte, que já foi até liberado no streaming (está em cartaz no PrimeVideo), o público procurou meios “alternativos” (cof cof) de assistir Pearl, mas a produção é primorosa demais em cinematografia e enquadramentos diferenciados que perdem impacto na TV. Além do quê, muito da experiência imersiva de se estar em uma sala de cinema assistindo a um filme de terror, cujo foco acaba sendo o próprio cinema, também é minimizado se visto em outro lugar. Muito se debate sobre a questão cinema versus streaming, opiniões podem variar e pontos devem ser discutidos, mas, nesse caso, Pearl é uma obra de arte que MERECE ser vista naquela tela enorme. Até porque Pearl é uma ode ao cinema.
A história se passa muitos anos antes, na mesma fazenda que também serviu de cenário para X: A Marca da Morte – mas que agora, durante o período da Primeira Guerra Mundial, abriga a família da jovem e sonhadora Pearl. Recém-casada mas afastada do marido que se alistou no exército, a jovem se sente isolada e sozinha na fazenda, já que é encarregada de todos os serviços domésticos e de cuidar de seu pai doente, além de lidar com as crueldades de sua rígida mãe.
Numa tentativa de escapar de sua vida sufocante, Pearl acaba desenvolvendo um fascínio pelo mundo das artes: teatro de revista, mas especialmente pelo cinema, que era, para a época, uma nova forma de entretenimento. Ela enxerga na vida glamourosa e boêmia das atrizes uma forma de mudar seu destino de fazendeira, imposto por sua família.
Quando fica sabendo de um concurso promovido pela igreja local, que vai escolher uma representante de cada cidade para apresentar números de dança para tropas de soldados ao redor do país, fica totalmente obcecada com o fato de se tornar uma estrela e sair da fazenda e, para isso, extermina todo e qualquer obstáculo que possa vir a atrapalhar seus planos.
Nasce uma estrela
Uma das coisas mais assustadoras em Pearl é justamente a construção sutil do papel da vilã dentro da personagem aparentemente doce e ingênua de menina do interior, mérito da incrível atriz Mia Goth, que está sendo aclamada como a nova musa do terror.
Mia realmente está despontando como uma grande revelação em Hollywood e parece ter preferência por interpretar papéis complexos e alternativos, fora do óbvio.
Prova disso é que acabou de gravar o próximo filme de Brandon Cronenberg – filho do aclamado diretor de “body horror”, David Cronenberg – Infinity Pool, que promete ser uma das produções mais chocantes, polêmicas e grotescas de 2023. Mas ela não é nova no rolê. Já trabalhou com diretores como Lars Von Trier (Ninfomaníaca) e Claire Denis (no ficção científica High Life) – além disso, em 2018, ela fez um papel em Suspiria: A Dança do Medo, remake do clássico de 1977 dirigido por Luca Guadagnino.
Em entrevista cedida pela Universal, Mia, que é neta da atriz brasileira Maria Gladys, diz que a avó foi sua grande inspiração para iniciar no mundo artístico e que para compor Pearl se inspirou na icônica Shelley Duvall em O Iluminado. A semelhança entre as duas atrizes é notória, aliás. A composição física de Mia parece frágil, mas a força de sua atuação a torna gigantesca nas telas. Pearl é realmente assustadora porque alterna doçura e monstruosidade. Intensidade e serenidade. A tensão fica em suspenso porque você nunca sabe se ela vai fazer carinho em um bichinho da fazenda ou cortar sua cabeça com o machado espalhando sangue para todos os lados. Essa alternância de humor é apavorante.
Mia conta que o roteiro de Pearl nasceu um pouco antes do início das gravações de X: A Marca da Morte, do qual Pearl é prelúdio. Para interpretar a velhinha aterrorizante de X, ela precisou criar um histórico para a personagem a fim de facilitar sua imersão no papel. Nascia a assassina frustrada que queria ser atriz de cinema.
Vilania é poder
O papel das mulheres em filmes de terror está, aos poucos, sendo revisitado e modificado – e Mia Goth e a trilogia de Ti West fazem parte desta mudança. Por muito tempo, as mulheres no terror não passaram de figurantes estereotipadas que morriam nas primeiras cenas, vítimas de um tropeção ou outro movimento estabanado, reforçando a pecha de que eram burras e frágeis. Na tentativa de corrigir isso, passaram a atuar como as clássicas final girls, últimas sobreviventes da trama, que davam a sorte de não serem mortas pelo facão do psicopata assassino, tornando-se fortes por terem sobrevivido às torturas mais vis. O ponto em comum entre os estágios era o de sempre estarem no papel de vítimas, nunca de algozes.
Com o avanço do feminismo e o questionamento à estereotipização das mulheres em todos os níveis da sociedade, isso acabou refletindo no cinema e acabamos por ter grandes exemplos de vilãs, mas suas motivações AINDA eram ligadas a figuras masculinas, de alguma forma. Analisemos o tropo da femme fatale, que por exemplo, que seduz e mata: serve totalmente a um fetiche masculino, a um “olhar” masculino de como uma “mulher má” deve ser. Vilãs que são motivadas por ciúme, por um amor, por rivalidade feminina, por sentir a falta de um homem, por ter sido violentadas por um homem.
O homem é sempre o centro. Isso quando elas não se tornam vilãs por estímulos padronizados à sua própria condição de ser mulher: a perda de um filho, a sexualidade reprimida, uma violência de gênero sofrida.
Não que tais motivos não sejam justos e não seja catártico observar a vingança de uma mulher mas, ainda assim, o problema é justamente esse. A vilania da mulher precisa ser SEMPRE justificada. A mulher precisa ter sempre um motivo para ser má. Ela não pode simplesmente ser NATURALMENTE má. Ter nascido má. Porque a mulher está sempre associada a dois eternos arquétipos: o de santa ou o de puta. Ela não tem direito de ser os dois ao mesmo tempo ou mais quinhentos outros, se quiser.
Isso a tornaria complexa demais para a mente masculina decifrar e, vejam bem, uma mulher indecifrável é uma ameaça à masculinidade. Uma mulher não pode ser uma psicopata, porque “uma mulher não faria isso”. Ela precisa de uma justificativa para sempre ser identificada como humana e não como uma aberração. Até o direito de ser uma aberração é negado a uma mulher. O direito de ser cruel e fria. O direito de ter coragem de fazer coisas vis. Uma mulher não teria essa capacidade. E filmes que retratam mulheres VERDADEIRAMENTE MÁS, que não precisam pedir licença para o serem, nem sentir culpa por isso ou justificar seus atos, são incríveis por esse simples diferencial. Pearl é naturalmente má. Suas motivações são egoístas e rasteiras. Ela mata porque está entediada. Ela esquarteja porque isso dá a ela sensação de controle sobre algo, já que seu destino parece marcado. E em uma crítica a esse padrão de feminilidade, a “doce” Mia Goth consegue ser cruenta e livre, como toda ótima vilã deveria ser.
Poderia ainda falar sobre a fotografia, a colorização, a trilha sonora, a produção, as referências a clássicos do gênero mas Mia rouba toda a cena e o conjunto da obra faz de Pearl um dos melhores exemplos de que fazer cinema está longe de precisar ter orçamentos trilhardários para esquadrinhar a alma humana através de uma boa história.
Assistam.