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Tàr Cate Blanchett

Tár: Cate Blanchett larga na frente na corrida para o Oscar 2023

Após hiato de 15 anos, Todd Field volta com Tàr, novo filme em que aborda a cultura do cancelamento sem apelar para moralismos, mas coloca mulheres em uma situação discutível e até desonesta

Por GABRIELA FRANCO

A cena de abertura de Tàr já começa com uma metalinguagem: na tela, vê-se a imagem de um vídeo da personagem central, Lydia Tàr (Cate Blanchett), sendo captado via celular por alguém que supostamente viajava com ela em uma cabine de primeira classe de avião. Ela está dormindo com uma máscara de descanso sobre os olhos, alheia às piadinhas que o tal voyeur troca com outra pessoa por um aplicativo de mensagens.

Corta pra própria Tàr, nervosa, parada no que parece ser uma coxia de um teatro. Por se tratar de uma película que fala sobre o ofício de uma maestrina, espera-se que ela adentre um anfiteatro e enfrente uma orquestra, mas não é o que acontece. Ela está prestes a dar uma entrevista exclusiva a Adam Gopnik(que interpreta ele mesmo), renomado redator da célebre revista The New Yorker, defronte a uma seleta plateia. E a partir desta cena você entende qual vai ser a tônica do filme, com a assinatura de direção e roteiro de Todd Field.

A entrevista se dá em um tom profundamente erudito e elitista, quase hermético e bastante bajulador. Afinal, os holofotes e aplausos são todos dirigidos à grande Lydia Tàr, primeira mulher a ocupar a direção da premiada Filarmônica de Berlim, pupila do grande maestro Leonard Bernstein (a quem se refere carinhosamente como “Lenny”) e uma EGOT (acrônimo para Emmy, Grammy, Oscar e Tony, respectivamente, indicando uma celebridade ganhadora dos quatro maiores prêmios do entretenimento americano).

Ela é totalmente segura de si, elegantérrima como só Cate Blanchett consegue ser e transita entre assuntos como a “Quinta de Mahler”, sua sexualidade e analogias religiosas referentes a seu mentor, Bernstein. O entrevistador desfia uma longa lista de elogios à Tàr, enquanto um plano mais aberto mostra sua assistente, Francesca (Noémie Merlant), observando na platéia e recitando até a última palavra, dando a entender que fora tudo cuidadosamente ensaiado, tal qual uma orquestra. 

Tàr - Cate Blanchett
Tàr – Cate Blanchett

Logo após essas essas cenas iniciais,a primeira coisa que o espectador pensa é “Como eu nunca ouvi falar desta mulher?” e trata de pegar seu celular para procurar mais informações sobre Tàr na Wikipedia, que eventualmente sua assistente aparece atualizando. E com certeza o diretor sabia que fariam isso, pois todo o marketing do filme, incluindo o lançamento e exibição no Festival de Veneza (que rendeu à Blanchett o prêmio de melhor atriz) foi voltado para criar a sólida impressão de que Lydia Tàr era real. Mas por mais que ela pareça, a personagem NÃO é. Pura ficção. Mas com um baita sabor de realidade. 

Ascensão e queda de Narciso

A marca de Todd Field, do ótimo Pecados Íntimos (2006), são os detalhes e subtextos – e nisso, Tàr é riquíssimo. O fato de Lydia ser uma maestrina, aquela que conduz uma orquestra com sensibilidade e firmeza, não a exime de usar os mesmos predicados para manipular e machucar pessoas. Sua obsessão e metodologia com a música também se refletem em sua vida pessoal, assim como sua ambição e o pedantismo.

Não podemos deixar de notar que, mesmo sendo uma personagem fictícia, o filme joga luz em um segmento da cultura e entretenimento pouco explorado do ponto de vista popular e que ainda é majoritariamente ocupado por homens. São pouquíssimas as maestrinas que obtiveram destaque na vida real: Antonia Brico, Carmen Campori e Sarah Caldwell e até mesmo a contemporânea Hildur Gudnadottir (premiada compositora da trilha de Coringa), que é citada no filme e ainda assina sua trilha sonora, são alguns exemplos de mulheres no cruento mundo da música profissional.

No filme, Tàr encarna o pioneirismo e a virtuose apaixonada de quem abre esse caminho na indústria da música clássica dominada por homens, mas também mostra o lado sombrio de quem aprendeu a jogar o jogo deles. Um jogo que envolve muita politicagem, dinheiro e um beija-mão conveniente das pessoas certas.

Como se não bastasse, a protagonista também se prepara para o lançamento de suas memórias enquanto concilia trabalho, família e a criação da filhinha que tem com a primeira violinista de sua orquestra, Sharon (Nina Hoss). Lydia também está prestes a enfrentar um dos maiores desafios da carreira de um músico de renome: uma gravação ao vivo da Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler, sob sua condução.

O diretor brinca o tempo todo com demonstrações de força e fragilidade, ternura e monstruosidade, peso e leveza, luz e sombra, direcionado à interpretação impressionante de Blanchett como se ele mesmo fosse o maestro e a personagem da atriz uma sinfonia difícil, dissonante e paradoxal. 

Pequenos e grandes deslizes causam rachaduras na fachada aparentemente impenetrável de Tàr, mas ela parece mais interessada em passar uma demão de verniz por cima do que ter que lidar com a raiz do problema. 

Uma sinfonia que dá uma bela desafinada

Tár é cheio de camadas que valeriam análises profundas em termos estéticos, plásticos e de roteiro – e Cate Blanchett prova, mais uma vez, que é uma atriz de peso capaz de interpretar qualquer papel sob uma direção certeira e sensível. 

Mas (e sim, temos um MAS aqui), é importante ressaltar que Todd Field faz uma falsa simetria ao associar a personagem com crimes de abusos contra outras mulheres (dar mais detalhes do que isso seria spoiler). 

Não que isso não possa acontecer. Acontece. Mas se ele quis transferir para Lydia a frieza, dissimulação e sede de poder masculinos, achei uma escolha controversa e desnecessária, quando sabemos que os principais autores de crimes sexuais são homens em sua grande maioria, sendo que segundo estatísticas 1 a cada 3 mulheres já sofreu violência ou abuso sexual ou psicológico cometido por homens, no mundo, segundo dados da ONU.

Quaisquer tentativas de mascarar ou transferir isso, ainda que por meio de uma produção cultural fictícia é, no mínimo, desonesto. 

Tàr pode ser uma personagem fictícia, mas o crime que comete, infelizmente é bem real e muito próximo de todas nós.

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