Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.
Andor e o fascismo na cultura pop

2022, o ano de chutar o fascismo na cultura pop

Três obras de ficção que mergulharam nos detalhes mais sórdidos do fascismo para sabotá-los, ludibriá-los, nos alertar de seus perigos e fazer piada deles

Por SILAS CHOSEN

AVISO – antes que eu me esqueça, vale avisar que o texto abaixo traz spoilers do Pinóquio de Guillermo del Toro e das séries Andor e Ruptura (Severance)

“Sempre que quiser vilões efetivos, faça deles nazistas”. Porque, assim como robôs e ninjas, nazistas não tem alma, então o herói sempre estará do lado certo quando bater neles.

É uma simplificação que funciona de Indiana Jones a Harry Potter: a nossa cultura concentrou a ideia de “mal” em qualquer organização centralizadora, racista, totalitária e fascistóide. Às vezes nem precisa chegar no ápice da vilania – o genocídio – para o público ligar os pontos. De vez em quando, dar para os vilões um uniforme e uma tara por militarismo desnecessário já funciona. A rigidez de homens m(f)achos, grandes líderes autocentrados deixa gente má bastante excitada – quer seja aqui ou numa galáxia muito distante. 

Calhou que, em 2022, nós fomos presenteados por várias obras da cultura popular onde essa simplificação saiu das camadas superficiais. Quero falar aqui de três obras de ficção que mergulharam nos detalhes mais sórdidos do fascismo para sabotá-los, ludibriá-los, nos alertar de seus perigos e fazer piada deles. Do mesmo jeito que é necessário reconhecer que a extrema direita ressurgiu nos últimos anos, dando a ela a devida atenção para que seja rechaçada, também é necessário rir dela. 

O diabo, diz um ditado, não suporta o riso. 

Um Sistema Perfeito Implodido por dentro

Uma das candidatas a série do ano, Andor (disponível no Disney+) chegou muito de fininho. Especialmente porque não havia interesse de ninguém em mais uma série sobre um coadjuvante de luxo do universo de Star Wars (depois de algumas delas meio desanimadoras ao longo do ano). 

Mas ao jogar fora toda a parafernalha que nos fez amar Star Wars, como Jedis, sabres de luz e ETs fofinhos, sobrou a parafernalha que nos fez precisar de Star Wars – uma paráfrase de como sistemas autoritários funcionam – e de como destruí-los. 

O protagonista, Cassian Andor (Diego Luna, reprisando seu papel de Rogue One), anos antes de se juntar à Aliança Rebelde, é só um trambiqueiro que quer viver sossegado e encontrar sua irmã perdida. É quase sem querer que ele esbarra, repetidas vezes, no gigante ativo e obcecado que é o Império Intergalático. 

Aqui, o império não é o fruto da ociosidade da caricatura enrugada que é o imperador Palpatine. O Império é um sistema de influência perfeito, com bilhões de ramificações e engrenagens, todas trabalhando incessantemente para que qualquer cidadão fora da linha seja esmagado, às vezes literalmente. Você nunca sabe quem pode ser um espião do império, e nunca sabe o que pode ser considerado um crime aos olhos vigilantes desse sistema. 

Os paralelos com a vida real são imediatos. George Lucas mesmo declarou que fez o Star Wars original inspirado na luta dos vietcongs contra… O Império Estadunidense. Já Tony Gilroy, principal nome por trás da série, disse que sua inspiração veio de várias histórias de revoluções, como a Russa, ou a situação da Palestina.

Do micromanagement grosseiro de governos ao uso da cultura de povos contra eles mesmos, o Império em Andor é culpado de praticamente todos os estilos de opressão política. Em especial a cena na qual o protagonista é preso e condenado a um destino terrível simplesmente por estar no lugar errado, na hora errada.

Engrenagens baratas rodando ao contrário

É na sequência da prisão que Andor mostra bem os elementos mais venenosos do Império. Transformar prisioneiros em mão-de-obra barata, menos custosa que robôs e praticamente infinita, é a garantia de que o Império garante que nunca terá queda na produção de seus armamentos.

Porém, é a experiência que dá a Cassian o primeiro e verdadeiro sentido de rebeldia. Até ali, o personagem ia de missão em missão só buscando dinheiro e paz. Todos os personagens com quem contracena têm um motivo diferente para odiar o Império e para querer que ele acabe. Mas o próprio Andor só vê a real função de uma rebelião – e de como ela só é possível porque o opressor é cegado em sua própria neurose por ordem e progresso – quando não tem outra saída. Quando a rebelião é a única resposta possível.

Andor é uma série riquíssima em personagens, conflitos, momentos tensos, e é algo muito além do que esperávamos para Star Wars em 2022. Em essência, seu sucesso vem por recuperar aquela fagulha inicial, de jogar um horror verdadeiro para um mundo de fantasia e nos dizer que podemos derrotar esse horror.

Mas e sobre uma versão de fascismo mais próxima do nosso mundo, porém ainda com um pé bem firme no mundo dos contos de fadas?

Soldado Imortal

Guillermo del Toro já conseguiu misturar o mundo infantil com os horrores da guerra e do autoritarismo não uma, mas duas vezes, em A Espinha do Diabo e O Labirinto do Fauno. Para completar essa “trilogia”, decidiu que sua versão de Pinóquio, criada com um stop motion magnífico, voltaria ao berço do fascismo.

No filme, lançado na Netflix, encontramos um Gepetto (na voz de David Bradley) em luto pelo filho, morto por conta de uma bomba lançada no lugar errado. Numa noite de bebedeira, ele decide que vai recriar um filho para si. Esculpe um boneco que se torna vivo pela ação de um espírito misterioso (Tilda Swinton).

Só que estamos na Itália dos anos 30, sob o governo de Benito Mussolini. Um dos habitantes do vilarejo, Podesta (Ron Perlman), é um agente do governo, constantemente à procura de novos cadetes dispostos a morrer pela pátria e pelo grande líder. 

Por conta de um arranjo com os espíritos do além, Pinóquio (Gregory Mann) não morre ao ser ferido fatalmente. Podesta imediatamente vê nisso uma vantagem militar: um soldado perfeito, que pode dar sua vida inúmeras vezes em nome da Itália fascista.

O diretor del Toro retrata os governistas (e o próprio Mussolini) de maneira ridicularizada, todos caricatos e infantilizados. E critica a estrutura de pensamento fascista na essência principal de Pinóquio. 

O boneco de madeira não quer se tornar um menino perfeito. Quer ser aceito pelo que é. E nunca aceita uma ordem sem questioná-la, sem tentar entender o que está fazendo – o que dá a Gepetto algumas lições sobre paciência e aceitação. Obedecer cegamente é algo que está longe desta versão de Pinóquio, e fica claro que ele não vai ser o escravo de ninguém. Sai aquela lição de moral, onde o boneco de madeira aprende a ser obediente, e fica uma lição de desobedecer o fascismo sempre.

O único personagem capaz de dobrar o carismático garoto é Volpe (Christoph Waltz), que o faz apelando para o sentimento mais forte que o boneco tem: o amor por seu pai. E mesmo assim, Pinóquio é instigante, questionando o dono de circo até mesmo acerca de seu cachê. 

O filme tem muito humor e é um espetáculo visual. Reconta a história clássica com tons mais sombrios, mas nunca deixando a poesia de lado. Sem falar da participação de outras vozes talentosas, como Ewan McGregor (como o Grilo Falante) e Cate Blanchett (como… o quê??). Mas sua força real está no que tem a dizer sobre a morte, a vida e como ninguém pode forçar outros a viverem-na dentro de um regime autoritário.

Por falar em regime autoritário, uma outra série de 2022 também quis mostrar uma versão do autoritarismo, mas este um bem mais próximo de todo mundo que já se sentiu preso a uma mesa de escritório.

Escravidão sem fim

A trama de Ruptura (em inglês, Severance, disponível na Apple TV) é promissora: acompanhamos a vida de Mark (Adam Scott), funcionário das Indústrias Lumen, uma empresa que está mudando a relação entre vida privada e trabalho.

Quando Mark entra na empresa, no começo do dia, um chip implantado em seu cérebro bloqueia qualquer memória de quem ele é fora de lá. Ali dentro, ele é uma pessoa completamente nova, sem nenhuma identidade ou relacionamento com o mundo exterior. Quando Mark deixa a empresa, o oposto acontece: ele não se lembra de nada do que ocorreu lá dentro.

Sendo assim, o Mark de fora pode viver sua vida sem as preocupações de um trabalho. Mas para o Mark de dentro, 100% de sua existência se resume a trabalhar.

A natureza do trabalho em si não é tão importante (embora seja bizarra o suficiente para deixar o espectador intrigado) quanto o fato de que Mark e seus colegas estão aprisionados. Mais do que isso: é bem possível que a empresa ou até mesmo suas contrapartes exteriores nem pensem neles como pessoas. 

Afinal, essas entidades que estão na empresa, simplesmente funcionando por funcionar… eles têm direito a qualquer coisa? Qualquer escolha? E se essa escolha entrar em contradição com o que quer a corporação? Ou com as vontades de seu eu “lá de fora”?

Sem vida fora do trabalho, os personagens começam a questionar… Bem, tudo. Não há necessidade para descanso, já que seus corpos voltam do lado de fora descansados. A empresa cria artifícios cada vez mais anormais para motivar os funcionários, por vezes sendo ligeiramente paternalistas – e muitas vezes tratando todos como ratinhos de laboratório.

De um lado, os “internos” querem liberdade. Do outro, a empresa luta para manter o controle completo e total.

É uma série que almeja criticar diretamente o corporativismo, o “vestir a camisa da empresa” e como somos condicionados a trabalhar horas sem parar pela riqueza de outras pessoas que às vezes nem conhecemos. Mas isso não deixa de criar uma história também sobre como poderosos têm a necessidade fascistóide de comandar cada ação mínima de seus dominados. 

A série é um 1984 com mais comédia. E com muito mais esperança. Ao perceber que a empresa é responsável por uma prisão emocional da qual não pode escapar, além de lhe roubar o que poderia ser um grande amor, o personagem de John Turturro calmamente pede a seus colegas: “Vamos queimar isso tudo até o chão”.

Esperança para além de 2023

São três obras no meio de tantas outras que chegaram até nós no ano que passou. Três obras onde de um lado foi colocada a opressão, a gana por controle máximo e a desumanização. E do outro, a engenhosidade dos desesperados, a inocência e a esperança.

Em Andor, um dos personagens mais filosóficos é o jovem Nemik (Alex Lawther), e é ele quem melhor define aquilo que fica entalado na garganta de muita gente. Que a opressão é “desnatural”, e precisa de constante trabalho. E é por isso que ela é frágil e quebradiça. É por isso que ela tem medo de desobediência, de gente alegre, e de pessoas unidas. 

Começou um ano novo cheio de esperança. Em que podemos olhar para essas histórias que povoam a cultura pop e entender nelas um sentido além de somente entretenimento. Podemos olhar para elas como G. K. Chesterton olhava para os contos de fadas, quando disse: 

“Contos de fadas são mais do que verdade. Não porque nos dizem que dragões existem, mas porque nos dizem que eles podem ser derrotados”.

Feliz ano novo a você!