Sobre Sabra em Capitão América 4 e o conflito Israel / Palestina
A mutante Ruth Bat-Seraph, conhecida como Sabra, será interpretada pela atriz israelense Shira Haas no MCU e está levantando questões bem importantes sobre antissemitismo, islamofobia e estereótipos. Mais uma para a sessão “NÃO META POLÍTICA NO MEU GIBIZINHO” (ou no caso, no meu filme de óminho)
Por GABRIELA FRANCO
Em setembro, durante o evento de apresentação de futuros lançamentos da Disney conhecido como D23 Expo, a gigante do entretenimento anunciou que a atriz israelense Shira Haas, conhecida por seu papel como Esty da série Nada Ortodoxa da Netflix, vai estar no próximo filme do Capitão América, batizado de Nova Ordem Mundial, que será lançado em 2024. Ela será a versão cinematográfica da super-heroína israelense chamada SABRA – aliás, “sabra”, além de ser o nome do fruto de um cacto, é o nome que se dá a judeus nascidos em Israel.
Lembremos que Sabra não é a primeira personagem judia da Marvel (editora que, aliás, teve seus pilares criativos fincados por dois judeus – Stan Lee e Jack Kirby). Personagens como Cavaleiro da Lua, Coisa, Lince Negra, Magneto, Wiccano, todos já assumiram pertencer à etnia, mas a personagem (que nos gibis é mutante, como os X-Men) é a primeira explicitamente israelense na história do MCU e a primeira explicitamente judia nas telinhas e telonas depois de Cavaleiro da Lua (por falar nisso, as cenas em que alegam uma suposta “representatividade judaica” do personagem na série foram beeeem mais ou menos).
Para aqueles que são apegados aos mínimos detalhes – as cenas de Magneto criança, manifestando seus poderes no campo de concentração, são de quando os X-Men pertenciam somente à Fox, portanto, não são do MCU.
De onde veio a Sabra, afinal…
Sua primeira aparição nos gibis foi nos quadrinhos do Hulk, edição 256 de 1981, criada por Bill Mantlo e Sal Buscema.
Ela já passou pelo título dos X-Men, já lutou ao lado do Homem de Ferro, Novos Guerreiros e X-Corp. Seu pseudônimo é Sabra, mas seu nome verdadeiro é Ruth Bat-Seraph (um nome bem judeu, eu diria) e todos os aspectos de sua identidade estão enraizados em seu passado judaico-israelense, desde o fato de ela ter nascido perto de Jerusalém até de ter servido como agente na Mossad. Entre seus poderes mutantes estão a superforça, supervelocidade, a capacidade sobrehumana de resistir a ferimentos de armas de fogo e o mais importante de todos: a transferência de sua energia vital a quem for preciso.
Sabra participou ainda de sagas importantes como Dinastia M, Guerra Civil, Invasão Secreta e ainda lutou ao lado do Cavaleiro Árabe (sim, praticamente o Capitão América da Arábia Saudita) na saga Torneio de Campeões, de 1982.
É claro, sempre existe a chance da Marvel não usar nada disso em Capitão América: Nova Ordem Mundial – lembremos que principalmente os personagens secundários acabam sendo BASTANTE modificados. Mas é provável que, apesar de não ser uma heroína uniformizada como nas HQs originais, pelo menos parte dessa identidade permaneça, considerando a escolha de casting da Disney por uma famosa atriz israelense. Portanto, eu diria que as chances de ver o espírito da Sabra original são bem altas. E talvez seja justamente ESSE o GRANDE problema.
Vamos falar sobre a Sabra, pois então
Os laços de Sabra com o governo israelense nos gibis dos anos 1980 fizeram muitos fãs da Marvel – judeus e não judeus – ficarem bem preocupados.
Para muitos judeus, a representação de nossa identidade pela Disney nunca foi lá muito boa, relembrando desde as reproduções claramente antissemitas em muitas animações antigas como em Lobo Mau e os 3 Porquinhos (onde o Lobo se veste de vendedor ambulante judeu tentando enganar os porquinhos) ou a subversão da história original de Bambi, que era sobre o crescimento do nazismo e acabou se tornando uma narrativa sobre preservação ambiental (não que isso seja menos importante, mas enfim). Isso se a gente não relembrar “aqueles” incômodos rumores de que Walt Disney simpatizava com o nazismo.
Fora, claro, a utilização recorrente do velho estereótipo divulgado por Hollywood do judeu branco/caucasiano, rico e dono da grande mídia, o que alimenta as mais mirabolantes teorias da conspiração antissemitas hoje em dia – mas que não é aqui uma exclusividade dos roteiristas da Disney, obviamente.
(Um parênteses importante aqui – lembremos que judeus não são brancos. Apesar de muitos serem lidos fenotipicamente como brancos, existem MUITOS judeus de muitas etnias: judeus negros da Etiópia, judeus marroquinos e de outros países árabes, judeus orientais e por aí vai)
Para alguns fãs judeus, Sabra parece uma mudança refrescante. Estamos sendo finalmente retratados como etnia válida e existente, política e culturalmente, e desta vez não há dúvidas ou ambigüidades nessa identidade. Sabra carrega uma Estrela de Davi no peitoral de seu uniforme azul e branco (a versão mais atual, que você vê ao longo deste texto, é beeeeeeem mais discreta). Mas, por outro lado, ela também é um símbolo de algo muito além de suas raízes: a perpetuação do ódio, estereótipos e a má representação de personagens árabes no cinema. E até mesmo uma visão restrita, rasa e unilateral do conflito Israel-Palestina.
A conexão de Sabra com o governo israelense é preocupante, assim como a forma como os personagens árabes foram retratados até hoje nas telas, e principalmente por produções estadunidenses – na maioria das vezes demonizados (os “terroristas” de plantão), bidimensionais, minimizados e regularmente tendo suas diversas etnias e identidades culturais apagadas sob a chancela da alcunha “árabe”.
“Se for seguir as HQs, esse filme não promete nada de positivo”, disse Yousef Munayyer, escritor e analista palestino radicalizado americano baseado em Washington. “Todo o conceito de transformar espiões israelenses em heróis é insensível e vergonhoso. A glorificação da violência contra palestinos, especificamente árabes e muçulmanos, de forma mais ampla na mídia de massa tem uma longa e feia história no Ocidente e tem um poder de permanência notável”, acrescentou ele.
Já Waleed F. Mahdi, autor do livro Arab Americans in Film, sobre a representação dos árabes em Hollywood, disse: “A aliança EUA-Israel na narrativa cinematográfica desde os anos 60 têm celebrado as forças policiais e de inteligência americanas e israelenses como boas forças comprometidas em dissuadir a violência que tem sido principalmente ligada a árabes e muçulmanos”.
Isso infelizmente é real. Aconteceu exatamente a mesma coisa com a representação dos russos na cultura pop durante a Guerra Fria. Vamos reforçar que, no caso das HQs, uma de nossas Vingadoras preferidas, a Viúva Negra, foi criada no auge dos conflitos políticos entre EUA e URSS (1964) e retratada sempre como inimiga, até “mudar de lado”. Existem dezenas de casos como estes.
E como fica a Sabra?
A Marvel ouviu todo o ruído que pintou nas redes e, claro, se manifestou a respeito. “Enquanto nossos personagens e histórias são inspirados pelos quadrinhos, eles são sempre reimaginados para as telas e para o público de hoje”, afirmou o estúdio em comunicado oficial para a Variety. “Os cineastas estão optando por uma nova abordagem para a personagem Sabra, que foi criada nos quadrinhos 40 anos atrás”.
Independentemente de suas conexões pessoais com Israel e se vão explorar a sua ligação com o governo israelense (em algumas histórias das HQs, aliás, ela já foi bem rebelde, agindo claramente contra ordens do governo, assim como fez a Viúva Negra, por exemplo) ainda existe um longo caminho a ser percorrido em termos de narrativa e desconstrução imagética para fazer de Sabra uma heroína.
Não importa o quanto eu pessoalmente queira ver uma mulher judia badass metendo porrada em geral, também entendo e concordo que muita gente não vai enxergá-la desta forma e com toda a razão.
É difícil estar sempre entre a alegria, a culpa e o temor toda vez que personagens identificados claramente como judeus, mesmo os que não têm laço algum com Israel, são representados na cultura popular. Existe sempre o receio de que eles sejam retratados “tomando partido” no conflito Israel/Palestina, sendo que o assunto é extremamente profundo e existem diversas posições nesse conflito, tanto entre judeus quanto entre palestinos – desde os mais radicais, contra, a favor e todos aqueles que estão no meio.
Como judeus, podemos ou não ficar felizes com a presença de Sabra em Capitão América; Nova Ordem Mundial? Aliás, esse subtítulo é o nome de mais uma teoria da conspiração antissemita, e talvez AÍ esteja um plot interessante.
Eu, pessoalmente, como jornalista especializada em quadrinhos, judia e fã da Marvel, quero muito que a adaptação de Sabra para as telas seja CORRETA: confronte a xenofobia, a desigualdade, a violência de ambos os lados e que faça a coisa certa, assim como Steve Rogers fez quando foi preciso: peitou seus superiores arcando com as consequências. Agora ainda temos Sam Wilson, que carrega um fortíssimo componente racial, como Capitão América. Espero sinceramente que a Disney dê muitas nuances e cores à ela e àqueles que serão considerados seus “inimigos”, pois nunca é justo deturpar os outros na tentativa de nos representarmos.
O jeito é cruzar os dedos e esperar personagens bem escritos, complexos e tridimensionais. E que Sabra seja uma pessoa DECENTE a ponto de ser considerada heroína, porque eu, sinceramente, adoraria fazer um cosplay dela 🙂