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Três olhares masculinos sobre mulheres no terror

A gente viu três produções de sabor indie estreladas por mulheres – X, Men e You Won’t Be Alone – e encontramos semelhanças e diferenças entre elas

Por GABRIELA FRANCO

Por muito tempo, o gênero do terror no cinema foi construído como sendo “masculino” ou masculinizado, tendo sido monopolizado por grandes diretores, roteiristas e protagonizado, em sua grande maioria, por homens na figura dos “heróis”.

Já para as mulheres, eram relegados os papéis de vítimas, figurantes histéricas estereotipadas ou das já manjadas “final girls”, as últimas sobreviventes da trama, que comumente eram mostradas quase moribundas, arrastando-se por alguma estrada, encharcadas de sangue e com mais um trauma na bagagem para conviver – como se ter nascido mulher neste mundo já não fosse difícil o bastante.

Esse cenário já tem mudado há um tempo,no entanto,  com mulheres se destacando no segmento tais como Nia DaCosta com sua nova versão de Candyman, Jennifer Kent e o seu elogiado O Babadook, Julia Ducournau dos incríveis body horrors Raw e Titane e, despontando brilhantemente nesse espaço, ainda temos as brasileiras Juliana Rojas (As Boas Maneiras) e Gabriela Amaral (O Animal Cordial), entre outras, apenas para dar alguns exemplos.

Os homens explicam tudo para mim

Mas obviamente, indo além da superfície do que classificamos como “medos universais”  a definição do que pode ser aterrorizante para nós mulheres é completamente diferente do que é para os homens. A origem e a personificação desses medos é bem distinta. 

Ainda assim, no mundo machista em que vivemos, os homens se sentem perfeitamente à vontade para discorrer sobre como mulheres se sentem com relação a seus traumas, inseguranças, terrores e ansiedades.

E é justamente sobre tais assuntos que três filmes recentes tendo mulheres como protagonistas e com roteiros embasados em temores intrinsecamente femininos – porém, os três dirigidos e escritos por homens – falam.

X – A Marca da Morte

 

O primeiro é o ótimo X – A Marca da Morte (EUA, 2022)  de Tie West, com Jenna Ortega e a mezzo-brasileira Mia Goth (Suspiria 2018, na versão de Luca Guadagnino). Trata-se de um slasher que homenageia os filmes do estilo com direito a todos os clichês do gênero, muito bem usados, aliás. O filme se passa em 1979 e acompanha um grupo de jovens que viaja até uma propriedade na zona rural do Texas para gravar um filme pornô amador.

A fazenda pertence a um casal de idosos que não faz a mínima ideia do que vai acontecer ali. Tudo parece estar dando certo, até que a anfitriã, uma senhora que parece sofrer de alguma enfermidade neurodegenerativa, descobre a atividade do grupo e reage de modo, digamos, “peculiar”. 

Fora toda a estética e clima que dão todo um charme e rendem belos enquadramentos e fotografias, a subtrama de X – A Marca da Morte é o que mais chama a atenção e merece destaque na película. Uma história que traz à tona a forma com a qual mulheres (e homens, por que, não?) lidam com a própria sexualidade, corpo e envelhecimento.

Questiona padrões de gênero, sexualidade e religiosidade sem perder o tom e sem deixar de ser um belo terror gráfico e climático. Não tem a pretensão de se aprofundar nos signos tampouco nos significados, mas, para bom entendedor, pingo é letra e isso anda em falta no cinema estadunidense ultimamente: filmes que abram a possibilidade de múltiplas interpretações, sem serem óbvios ou explicativos demais.

Ponto para Ti West, que pelo menos não faz malabarismos tentando compreender a mente das mulheres e questiona paradigmas que afetam a sociedade de um modo geral, mas a elas em especial.

West, cuja filmografia inclui A Casa do Demônio, Hotel da Morte e V/H/S inclusive já finalizou inclusive a filmagem de uma história prévia a X – Marcas da Morte, intitulada Pearl, que vai contar a história de origem da antagonista do filme. A produção deve ser lançada no próximo ano. Dos três filmes analisados, é o que menos dá bola fora no que se propõe. 

X – A Marca da Morte está nos cinemas em todo o Brasil.

Men – As Faces do Medo 

O segundo longa, produzido, dirigido e roteirizado por Alex Garland, que tem no currículo os ótimos Ex Machina, Aniquilação e A Praia (como roteirista), está arrancando elogios mundo afora. Ele conta a história de Harper (Jesse Buckley, de A Filha Perdida), uma mulher que viaja sozinha para um chalé incrível do séc XVII em um local ermo do interior da Inglaterra.

Na verdade, Harper quer se isolar e encontrar um pouco de paz depois de ter vivido uma experiência terrivelmente traumática com seu marido.

O lugar é uma explosão de natureza embriagante, uma paisagem de sonho na qual Harper procura mergulhar para fugir dos fantasmas internos que a perturbam. A fotografia e os enquadramentos trabalhados na paisagem inabitada do interior inglês remetem a tempos ancestrais e selvagens, despertando sentimentos desconhecidos e antagônicos na protagonista.

Mas sua paz dura pouco – e logo ela começa a sentir-se assombrada e perseguida por um ser que se assemelha a um homem. Pior, em sequências que propositalmente misturam delírio e realidade, Harper pensa encontrar o rosto desse tal homem em todos os homens com os quais interage, fazendo emergir todos os seus traumas, culpas, inseguranças e medos mais sombrios. 

A tentativa é louvável, mas é pretensioso dizer que se trata de um filme sobre como uma mulher lida com suas angústias. Aliás, pelo contrário, porque o filme soa mais como uma mea culpa bem qualquer nota ante a todas as violências, em menor e maior grau, cometidas contra as mulheres.

Com figuras de linguagem surreais e arquetípicas que pretendem mostrar o quanto tais sentimentos são viscerais e verdadeiros, acaba caindo no erro crasso de culpabilizar a vítima, sendo entediante e presunçoso, tal qual um homem fazendo mansplaining e pedindo desculpas (nada sinceras) depois. 

É visualmente o mais bonito dos três, Jesse Buckley é sempre incrível, mas seu potencial dramático também foi ofuscado pela presença de um homem, no caso Rory Kinnear (O Jogo da Imitação e Penny Dreadful). Tentou encarnar Buñuel mirando num Mãe! do Aronofsky, mas acertou no reforço do estereótipo da mulher desequilibrada e na tentativa de explicação de como uma mulher lida com seus traumas por um viés pseudo-psicanalítico.

Obrigada por nada.

Men – As Faces do Medo tem estréia marcada no Brasi para 1º de setembro de 2022

You Won’t Be Alone

Um longa de folk-horror poético e filosófico dirigido pelo australiano de origem macedônia Goran Stolevski que arrebatou o Festival de Sundance em janeiro de 2022, levando a premiação principal mesmo sendo todo falado em macedônio. É a estreia de Stolevski na direção de um longa, já tendo dirigido diversos curtas, em sua maioria curiosamente focado em temáticas femininas.

Dos três filmes assistidos, foi o que mais me agradou pessoalmente, principalmente porque conta a história de um bruxa totalmente despida dos estereótipos e assessórios cristãos e bem próxima de como as lendas tribais descreviam tais seres.

Em uma aldeia isolada nas montanhas na Macedônia do século XIX, uma jovem mãe cujo bebê chora sem parar, acaba sendo visitada por um espírito antigo que se alimenta do sangue dos pequenos rebentos. Desesperada, a mãe barganha com o espírito para que não mate sua bebê, mas que a leve quando ela for mais velha. A bruxa aceita, não sem antes de marcar a pequena Bosilka (interpretada por Alice Englert quando pequena e por Noomi Rapace, de Lamb e Caranguejo Negro, quando adulta), tirando-lhe a voz.

Mais tarde Maria, a “bruxa comedora de lobos”, volta e leva a menina para si, transformando-a também em uma entidade sobrenatural capaz de assumir a forma de qualquer ser vivente, desde que lhe tire a vida e cumpra um ritual arrepiante.

A partir daí, o filme inteiro é uma jornada poética e sensorial através das percepções de Bosilka sobre a vida e o mundo compreendido através de diferentes corpos. O estilo de direção de Goran Stolevski lembra muito o do grego Yorgos Lanthimos (de A Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado), com histórias inusitadas que causam estranhamento no público pelas atuações frias e enigmáticas, câmeras com lentes muito abertas e enquadramentos e fotografia singulares com temas que geralmente criticam a sociedade. 

O ritmo é lento, os diálogos são ínfimos, a fotografia é de tirar o fôlego. O filme é praticamente todo narrado pela protagonista, que o usa como uma espécie de diário, relatando suas descobertas sobre a vida e o mundo de sua época em todos os níveis possíveis: físico, social, político, psicológico e espiritual. É uma estranha ode à vida, bucólica, insólita e arrebatadora. 

Se entre os três houvesse uma competição de filme que traduz as dores e delícias de ser mulher, eu diria que You Won’t Be Alone (ainda sem tradução em português) seria o ganhador. Menção honrosa à trilha incidental de Mark Bradshaw e à atuação de Anamaria Marinca (de 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias), a temível Old Maid Maria, protagonista da lenda que provavelmente deu origem às histórias de bruxas que conhecemos hoje.

Apesar de estar classificado dentro do gênero, não espere um filme de terror e sim um drama com cenas gore, nudez e crueza, pontuado por poesia e uma bela lição sobre a existência. Vale muito a pena.

You Won’t Be Alone estreou nos EUA em 1º de abril, mas a data de estreia no Brasil não foi definida.