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Quando um Pesadelo na TV reflete os demônios da vida real

Primeiro trampo solo de Victor Freundt numa parceria tipo casamento perfeito com a Escória Comix, a HQ Pesadelo na TV tem um quê de reality show do mundo bizarro pra falar sobre uma gente que definitivamente saiu dos esgotos

Por THIAGO CARDIM

Confesso que meio que já perdi a conta de quantos autores e autoras nacionais eu já entrevistei desde que tomei a decisão de abrir ainda mais as portas para os gibis brasileiros na imprensa, usando como vitrine os diversos sites nos quais trabalhei. Mas, apesar dos muitos papos incríveis que tive de lá pra cá, é sempre uma realização quando tenho a chance de dar espaço para um amigo. Assim, não um parça, colega, conhecido, camarada, pessoa querida. Amigo mesmo, aquele que você conhece há muitos anos, cujo crescimento e evolução acompanha desde sempre.

É o caso do Victor Freundt, que eu a vida inteira chamei (e continuo chamando) de Risada, apelido carinhoso que veio do seu sorriso largo, gostoso e espontâneo, desde a época em que ele era uma espécie de mascote do curso de quadrinhos que a gente fazia em Santos. Foi daquele núcleo, aliás, que nasceu A ARCA, meu antigo site de cultura pop, no qual o Victor desenhava as caricaturas dos integrantes. Lembrar daquela época e então receber em casa a apavorante e sensacional HQ Pesadelo na TV, que ele escreveu e desenhou pra editora Escória Comix, dá um quentinho no coração e um sorriso no rosto. Porque, da turma toda, foi justamente aquele mascote, o mais novinho, o que mais se distanciou dos gibis de hominhos, o que jamais desistiu e parou de produzir seus quadrinhos.

“Desenhar é algo que faço desde que me conheci por gente. Muito da arte vem do meu avô por parte de pai”, diz o Victor, neste papo pro Gibizilla com um velho amigo da época de infância. “Infelizmente ele não incentivou muito o meu pai na arte, então acho que meu pai quis compensar isso comigo. Ele diz que, com 2 anos, me deu um giz de cera na mão e não parei mais”. Levando em consideração que eu TAMBÉM conheço o pai dele, uma pessoa igualmente querida, garanto que esta história é absolutamente verdadeira.

A paixão que virou realidade

Bom, como talvez vocês não conheçam esta mistura de Angeli, Robert Crumb e Roger Corman tão bem quanto EU conheço, acho que vale aqui um tanto de contexto. Natural de Santos/SP assim como eu, Victor fez seu primeiro curso, ainda de desenho de caricatura, aos 9 anos de idade. Aos 10, participou de uma aula com uma turma mais velha e então foi paixão à primeira vista. Com 11, ele foi parar no curso de quadrinhos no Sesc local, sob a tutela do mítico José Leite Siqueira Júnior, figura lendária da mitologia caiçara, de quem virou meio que braço-direito. “Lá não só aprendi a desenhar, como fiz inúmeros amigos que tenho até hoje, adquiri muita cultura não só de quadrinhos como filmes, séries etc. Moldou caráter mesmo!”.

O rapaz chegou, aos 21, a ser inclusive assistente do professor, agora oficialmente – mas, com 23, subiu a serra e veio fazer curso de HQs na prestigiosa Quanta. Pouco depois, um professor da faculdade (o querido Alexandre “Bar” Barbosa, também quadrinista) o levou para ser professor na Escola Oficina de Santos. Enquanto se adaptava ao novo cargo, começou a ser publicado na MAD, como resultado de seus contatos na capital e do início de uma amizade com o editor Raphael Fernandes.

O mesmo Raphael que foi pra Editora Draco e carregou nosso Victor junto, dando-lhe a oportunidade de ser publicado em coletâneas como a ótima O Rei Amarelo e a poderosa podreira Despacho. Ao mesmo tempo, o artista foi pegando fôlego em uma série de HQs curtas com o parça Bruno Bispo, ao lado de quem chegou a publicar em Portugal (sendo até indicado ao Central Comix, considerado o prêmio HQ Mix de lá). Em 2015, saía Novembro, a primeira HQ independente da dupla – um duo que nunca, claro, teve a pretensão de apagar os trabalhos solo de cada um. No caso do Victor, rolou até uma chance de ser apenas roteirista na coletânea de terror VHS. “Fui tão controlador que até o esboço eu mandei, mas depois peguei confiança e fomos que fomos”. 

E então, começou o namoro com a Escória Comix. “Eu conheci o Lobo (Ramirez, editor da Escória) em uma Des.Gráfica (feira de autores independentes lá pra 2019 ou 2018”, relembra. “Tinha ido falar com ele a respeito do meu aluno, o Atópico, que estava fazendo um gibi jovem, com um menino que entregava pizzas pra sua avó junto com seu gato mágico, e que ia ter umas 80 páginas”. O professor orgulhoso achava que a parada tinha a cara da Escória – mas, quando ele chegou pra trocar ideia, o Lobo já sabia quem era ele e quem era o tal do aluno. Conexão imediata.

“Trocamos uma ideia e não lembro se ele me convidou ou eu me convidei, o fato é que ele tinha gostado do meu trabalho, e então ficamos nessa de fazer algo juntos”, explica. Na hora, veio a ideia de uma história que o autor tinha na manga, chamada Empório Vila-Rica: O Que Vocês Querem?. A semente tava plantada.

Como nascem os pesadelos

Pesadelo na TV
Pesadelo na TV

Enquanto o Victor era professor de HQs, período tarde e noite, ele aproveitava o começo do mês, com mais grana do bolso, pra dar um pulo, durante os intervalos, em um empório meio chiquetoso. “Lá, eu encontrava sempre o mesmo grupo: um professor de academia preto e algumas alunas e alunos (todos velhinhos e brancos). Eles ficavam ali fazendo altas piadas preconceituosas, todos rindo muito. E eu me perguntava o que fazia o professor rir daquilo”.

A indignação virou inspiração pra algo curtinho, meio como as histórias do Quotidiano Delirante, do espanhol Miguelanxo Prado. “A ideia era misturar reality show com Sai de Baixo, aquelas risadas do Chaves e uma pitada do seriado Rabbits, do diretor David Lynch”. O esboço foi feito em um papel qualquer e meio que esquecido. Veio a pandemia, muita coisa mudou e, quando surgiu a figura de Paulo “Galo” Lima, entregador e ativista antifascista, a perspectiva da história de Victor virou totalmente outra. “Eu vi que tinha nas mãos não só uma crítica, mas que, se bem-feita, seria uma HQ maior, com mais substância, e que caberia muito com minha insatisfação real do momento”. 

A HQ é sobre um programa “fictício” que se chama Empório Vila-Rica. Lá, os participantes têm como objetivo entreter uma plateia com as piadas mais escrotas possíveis – e quem não rir é morto. No caso de alguém do elenco morrer, vai ser substituído por alguém da plateia que não riu. “O dono do programa é uma mistura de tudo de pior da política mundial e do entretenimento televisivo de hoje em dia”.


Um pesadelo que teve tempo de descansar

E enquanto a trama repousava na caverna dos Freundt, Victor ouviu diversos podcasts com uma galera não só da esquerda, mas também da quebrada, como o próprio Galo, Mano Brown, Ferréz, Jones Manoel e as meninas do Lança a Braba. “Maturei muito o roteiro e então consegui ter uma história alinhada com a ideia inicial e acrescentar algo mais real”, revela o autor. “O que realmente me deu trabalho foram as falas, já que os absurdos nunca pararam. Mas chegou uma hora que não dava mais pra esperar”. 

Mas Victor diz que muita gente que leu achou, no começo, que a HQ era reaça. Ele explica que isso era proposital – ao mesmo tempo em que ela avança e você vai tendo a dimensão real de com quem ele quer falar e em quem quer bater. “Mandei a HQ pronta pra 4 amigos: o Atópico (vulgo Luan), que lançou Jimmy Pizza Come o Mundo com a Escória; Doug Firmino, artista e autor em coletâneas; Álvaro Maia, desenhista da Kriança Índia; e o Rafael Calça, que escreveu uma das minhas HQs nacionais preferidas (Jóquei) e as duas HQs do Jeremias da MSP”. 

Para ele, era muito importante ter o olhar de dois artistas negros, pessoas que estivessem dentro de contextos de quebrada, para que o roteiro não estivesse sendo ofensivo com a causa. “Sendo um gibi crítico a essa merda toda que está acontecendo pela retomada de extrema direita BRANCA do Brasil”.

Aí, Vitão convidou Calça e o Maia para assinarem os textos de abertura e encerramento da edição, ambos toparam, o que deu mais tranquilidade ao sujeito de que a HQ estava no caminho certo.

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E então o pesadelo tomou forma

Victor trabalhou com liberdade total dos caras da Escória – que, essencialmente, só pediram pra ele evitar a capa conceitual e chegaram numa pegada mais Eles Vivem, aquele filmaço do John Carpenter, além de repensar o título. Eis que surgiu Pesadelo na TV. “Nunca tive problemas com meus editores. Posso me considerar um cara de sorte”.

Mas por que demorou tanto tempo pra fazer um trampo sozinho, do começo ao fim, afinal? “Acho que foi o tempo necessário. Eu sempre desenhei e, desde que assumi a parceria com o Bruno, sempre fomos livres pra influenciar no trampo do outro. Falamos sempre que nosso trabalho é feito a quatro mãos. Acho que por isso eu sempre achei que escrevia também. As ideias vinham dos dois”.

Além disso, enquanto professor de quadrinhos, ele não queria ser conhecido só como o cara que desenha. A ideia era ser o pacote completo. “Então sempre aproveitei os encontros com o Bruno pra ele me explicar sobre estrutura de roteiro”. Pra completar, em 2016 ele foi numa das melhores fontes e fez um curso de Escrita Criativa com ninguém menos do que Lourenço Mutarelli. “Eu estava me separando na época e foi uma grande terapia pra mim. Ali eu comecei a achar uma voz de autor. Até ali, me bastavam as coisas que eu cocriava, mas depois dali eu descobri que tinham muitas coisas que só eu quero contar, sem interferência, coisas pessoais”.

E como foi o processo criativo desta vez? “Trabalhar sozinho exige muito mais da paciência, e foco, porque em dupla um puxa o outro, mas sozinho é mais fácil de procrastinar”, diz. “O foda é que eu sou obsessivo e controlador demais com o que eu escrevo, e me cobro muito”. Mas ele dá uma dica incrível – “é muito importante encontrar a sua frequência. É como se fossemos um rádio, prontos pra sintonizar na estação certa e receber as informações que estão à nossa volta”.

O editor do Gibizilla e o autor de Pesadelo na TV
O editor do Gibizilla e o autor de Pesadelo na TV

Temos mais pesadelos à vista?

A parceria com Bruno Bispo continua – e deve ir para o papel um trampo que eles estão planejando desde 2018. “Como uso muitas técnicas diferentes, está demorando um pouco, e o roteiro foi se modificando muito com o tempo”. O Victor quer lançar ainda uma HQ que fez pro seu primeiro Inktober, em 2019.

Além disso, ele está estudando e esboçando uma nova HQ, que se tudo der certo também sairá pela Escória, mas dessa vez será um folk horror, bem diferente do Pesadelo na TV. “Por fim, estou bem adiantado nos esboços de um projeto secreto com o romancista e roteirista Maurício R. B. Campos, envolvendo a visita de Aleister Crowley e sua Mulher Escarlate a Portugal, para se encontrar com o poeta Fernando Pessoa. Parece um assunto batido, mas garanto que ninguém fará algo parecido!”.

Em tempo – você compra a sua edição de PESADELO NA TV lá no site da Escória Comix. Clica aqui e ajuda este amigão da família Gibizilla! <3

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